12 novembro 2015

Textos dos dias que correm *

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Na vida da generalidade das pessoas, até uma determinada altura olha-se para o mundo – as pontes, a música, a pintura, os contratos de trabalho ou de arrendamento - com os olhos de uma relativa ignorância. As coisas agradam-nos, soam-nos bem, parecem-nos correctas. Há um primeiro olhar, digamos, não técnico. Vinga a nossa sensibilidade, a nossa perspicácia e também, nalguns casos, os genes que nos fazem dar mais atenção a alguns pormenores. No seguimento normal da vida das pessoas aparecem os cursos, as formações, a entrada no nosso cérebro de informação científica transmitida por quem se supõe saber mais. As doses de conhecimento são dadas gradualmente, de acordo com critérios pedagógicos, para que tudo fique retido e possa ser aplicado posteriormente.

A partir de uma dada altura já não olhamos para as mesmas coisas com os mesmos olhos: o engenheiro atravessa a ponte sabendo os cálculos que foram feitos para suportar as cargas previsíveis. A ponte deixou de ser uma bonita obra de arquitectura para passar a ser um conjunto de cálculos, uma sucessão enorme de equações matemáticas onde entram a resistências dos materiais, a predominância dos ventos e das correntes, a circulação estatística das viaturas multiplicada por um coeficiente de segurança. 

A partir de uma dada altura, para assemelharmos a frase ao raciocínio, o músico já não ouve apenas uma peça musical. Para ele, e sobretudo para ele, que estudou essas matérias, há notas dominantes, influências identificáveis no tempo, melodias que o naipe de metais ressalta, os instrumentos de corda abafam, os coros sublinham. Deixou de ser apenas uma peça audível, para ser o produto da técnica da composição e da criatividade do autor.

Há, portanto, uma dimensão científica, profissional, académica, que só os iniciados encontram naquilo que observam – seja uma ponte ou uma sinfonia.

Como é que um padre olha para uma mulher? Existe seguramente, na mente de muitos, uma injustiça ao nível do entendimento versus acesso. A partir do momento em que se forma na escola do direito, o outrora universitário, agora licenciado, olha para o contrato, entende-o, domina-o, converte-o em benefício do seu cliente, não esquecendo a ética profissional. Com o entendimento (também) vem o acesso, a possibilidade de uso, sendo que a expressão tem aqui a sua dimensão mais nobre. É fácil entender que esta aproximação de ideias se aplica ao músico ou ao engenheiro, este na construção da ponte, aquele na composição da sinfonia.

Onde está, então, a injustiça? Enquanto não profissional, digamos assim, o sacerdote pode fruir a mulher, tendo dela o entendimento e a compreensão que a maturidade lhe confere. Ao aceder ao nível superior, isto é, ao estudar a matéria que lhe permite o entendimento da alma humana e, assim, da mulher, ainda que com as especificidades inerentes, é-lhe retirado, gradualmente, o acesso ao objecto estudado. O engenheiro é-o na sua plenitude legal e afaga o ferro com que se construirá a ponte. Estabelece-se entre ambos uma relação próxima, íntima, sem mais segredos do que aqueles que advêm de algum desconhecimento que sempre existe.

O sacerdote, ao contrário, faz votos, estabelece imediatamente uma distância entre si e o corpo daqueles que são a sua preocupação primária. O músico passa os dedos por uma partitura, corre o arco sobre as cordas do violoncelo, retira-lhe o som sublime da tristeza. O padre, por seu lado, conforta a alma, que alguns afiançam não existir, outros sustentam não ter opinião, havendo um número significativo que crê nelas. No entanto, a alma não se palpa, por não ser corpórea. 

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António Costa Carlos, in Subsídios para a Materialidade das Profissões (2012, edição do autor)

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