Shakespeare (Hamlet, Acto V, Cena II)
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Atiremo-nos ao silogismo: se A = B e B = C então A = C. Atiremo-nos agora ao devaneio: se os comunistas não jogam aos dados e os puritanos não jogam aos dados, então os comunistas são puritanos. Ou vice-versa.
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Alguém me dizia, um destes dias, que gostava de conhecer o camarada Jerónimo de Sousa. A vontade, vinda de um cavalheiro com alguma idade, não tem por trás um qualquer interesse em discutir o fracasso da primeira internacional, a incapacidade de Marx em ter uma conjugalidade civilizada ou mesmo os encantos de viver em Pirescoxe. Há um interesse quase zoológico, sem desprimor pelo visado, em querer almoçar com este operário metalúrgico em quem se descortina qualquer coisa de simpático ou de educado.
Há em mim uma dimensão socialmente curiosa. Quando os ventos internos correm de feição, gosto de conhecer gente diferente. Por vezes muito diferente, categoria em que enquadraria o secretário-geral do PCP. O meu temor é sempre um, formulado em duas perguntas: terão interesse? Irão maçar-me? Quando respondi que não e que sim às perguntas anteriores (a ordem dos factores não é arbitrária) percebi que devia dizer ao cavalheiro com alguma idade para não se meter nisso. Porquê? Porque nos comunistas o riso é algo de burguês que deve ser usado o menos possível em público - talvez mesmo combatido ferozmente em público. Dentro de cada comunista (englobando-se, neste sentido, a rapaziada do Bloco de Esquerda) há um frade assassino do mosteiro d' O Nome da Rosa, descrente que Aristóteles tenha, de facto, escrito um tratado sobre o riso, ou se o fez, foi para provar a menoridade da comédia face à tragédia - esta última sim, próxima do sublime. Um comunista não ri, porque a seriedade da vida e a luta de classes não o permitem, nem sequer o suscitam. O divertimento não monta barricadas, não alimenta o campesinato faminto, não faz cantar os amanhãs - o riso é contrário aos ideais da revolução. Os comunistas não serão, assim, boas companhias de almoço.
Foi com base nesta ideia que me debrucei - ou talvez me tenham debruçado, sei lá eu - sobre os puritanos, esses protestantes radicais de confissão calvinista, vestidos de preto e detentores de faces patibulares nas quais não se esboça um sorriso - ou nem sequer se esboça a possibilidade de um sorriso. Talvez eles, como os comunistas, não sorriam, porque a vida é difícil e o riso é indutor de luxúrias e insultos à paixão do Senhor, que nunca riu, talvez nunca tenha sequer sorrido muito. E depois soube que os puritanos não jogavam aos dados, esse jogo que pratiquei muito no quartel porque nunca me chamaram para a guerra, mas sim para a messe de oficiais. E depois achei que era pelos mesmo motivos que os comunistas não sorriam (e talvez os comunistas eruditos não reconheçam em público que jogam aos dados) porque não agrada ao Senhor ou não agrada à memória dos fundadores do movimento operário. E, nesse sentido, puritanos eram iguais a comunistas (ou vice-versa): se A = B e B = C então A = C.
Fui elucidado pelos versos de Shakespeare que encimam este devaneio. Pode ler-se o parágrafo, mas deve fixar-se a frase a negrito: há uma providência especial na queda de um pardal. Isto é, nada há de fortuito e a mão de Deus está por trás de tudo - até da queda de um pardal. Ora, se assim é, a proibição do jogo de dados torna-se, para os puritanos, de uma elementar clareza indiscutível. Se perdermos aos dados foi a mão de Deus - e para os puritanos esta mão está por trás de tudo - que entendeu assim. Se ganharmos, o raciocínio é o mesmo. Contudo, o mundo está repleto de problemas bem mais graves do que não sair o terceiro valete à segunda jogada. Lançar dados é, por isso, obrigar Deus a desviar o Seu olhar das necessidades prementes, para se ater nos divertimentos frívolos. É obrigar o Santíssimo a horas extraordinárias. E os puritanos não o fazem, entregando-se mais ao treino das caras sérias.
O que separa os puritanos dos comunistas (ou ice-versa)? O verso de Hamlet, nada mais do que o verso de Hamlet, pese embora o interesse díspar que exibam pelos pardais. Quando alguém vos disser que, se A = B e B = C então A = C, desconfiem. Sobretudo se nas premissas houver gente que não ri.
JdB
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