09 julho 2018

Da escuta do corpo

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / eu era feliz e ninguém estava morto.

Gosto desta frase de Álvaro de Campos. No tempo em que eu era feliz e ninguém estava morto (a primeira morte impactante surgiu-me numa idade adulta) as receitas para o emagrecimento eram claras - e, arrisco, únicas: comer menos. Lembro-me de raparigas que bebiam sumo de limão em jejum, mas não sei se isso tinha algum efeito vagamente positivo para o efeito pretendido. Estou certo de que faria mal. Comer menos - nada menos e nada mais do que isso.

Na minha memória, foi com Demis Roussos que tudo isto se alterou: a quantidade já não era limitadora - o problema estava nas misturas. O cantor (que não me lembro se emagreceu) afirmava que se podia comer um frango inteiro - desde que não houvesse acompanhamento. Hoje, quem quer emagrecer tem uma panóplia de opções: dietas do paleolítico, em função do horóscopo, do tipo de sangue, assente na proibição de um tipo de alimentos ou na absoluta permissão desses alimentos proibidos, na absoluta troca de horas das refeições, etc. Passados 45 anos de ver, pela primeira vez, gente a beber sumo de limão em jejum, a minha teoria assenta no conservadorismo mais impenitente: comer menos. Mas comer de tudo.

Alguém me diz, no decurso de uma conversa sobre alimentos: o meu corpo está a rejeitar carne... O que faz essa pessoa? Muito naturalmente (porque, lá está, é o corpo a falar) não come carne. O corpo já rejeitara o leite e a pessoa deixara de beber leite. Eu, que tenho um corpo santo, que não rejeita nada a não ser o que não gosto, desconfio desta importância que se dá ao corpo, como desconfio da importância que se dá à opinião de algumas crianças.  

Não sou adepto de seguir o que o corpo diz. Sou mais adepto de dizer ao corpo como se faz. O meu argumento é muito válido, porque tenho esta ideia (pouco científica, reconheço) que estes corpos que falam muito são corpos de vocabulário limitado ou enviesado: rejeitam muitas coisas, como a carne, o leite e alguns vegetais, que são importantes, mas não rejeitam inutilidades gastronómicas como o coco, as tripas, os pezinhos de coentrada ou as cartilagens das aves. Devemos ouvir o nosso corpo? Depende. Ouvir um corpo cheio de intolerâncias é como atribuir a mediação da paz a um colérico.

O corpo deve ter uma voz limitada, porque seguir-se fielmente o que as nossas entranhas dizem é regressar a um certo primitivismo no qual vingavam os impulsos: dormir, comer, e outras coisas de que se fala com parcimónia neste estabelecimento. O corpo deve educar-se a ter hábitos e rotinas saudáveis. Não sou a favor destas teorias modernas de escuta muito activa, mas de uma democracia mais musculada. Ainda lá não estou, infelizmente: o meu corpo vive em regime libertário, na mais absoluta roda livre.

JdB   

1 comentário:

ACC disse...

Pois, mas há corpos que nunca rejeitam nada nem as doses exageradas.
O que se come importa, o que se consome do que se come, é ainda mais importante.
A vida sedentária, o sofá apetitoso, o comando que faz o zapping e o rabo que teima em pesar são comportamento amiguinhos do corpo que se pretende disciplinar.
Vamos lá encontrar um equilíbrio. Vejam-se fotografias dos anos 60 e 70. Não havia jovens obesos (excepção para os doentes ou filhos de certas pessoas para quem os meninos só eram saudáveis gordinhos). Andava-se a pé, bebia-se água, comia-se maçãs com casca e brincava-se na rua. Hoje as crianças começam a ver televisão aos 3 meses e quanto mais quietinhos ficarem melhor. Continuam a comer de 3 em 3 horas, as doses dos anos 60 e 70, com mais acuçar e farinhas refinadas e não se mexem, para bem dos paizinhos que degluetm cheetos e as séries da TV.

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