Termas do Luso, Setembro de 2018 |
Estou perfeitamente convencido de que até uma determinada altura um hotel era um microcosmos sociológico fantástico. Ali, como numa fábrica, não há só equipamento, maquinaria, mão de obra indistinta ou especializada, controlo de custos, medição de eficiências e gestão de espaços. Por um hotel, ou por uma fábrica, passam pessoas, há tensões humanas, vidas em circulação com hábitos de arrumação de roupas num armário ou num cacifo que dizem muito sobre a espécie humana. Num certo sentido, a observação de um cliente a entrar pela primeira vez num quarto diz muito sobre ele: o que vê ou faz em primeiro lugar, a que dá importância, a forma como (não) desmancha uma mala ou dispõe os produtos de higiene numa bancada de mármore, como circula pelo lobby ou interage ao pequeno almoço.
Tenho para mim que os grandes hotéis, concomitantemente com o embaratecimento do turismo, mataram este microcosmos; no fundo, tal como a vocação dos países para o serviço, em detrimento da indústria, matou os microcosmos fabris. Por um hotel não circula hoje gente, mas uma horda de gente; não há sossego, vagar - no fundo, não há a lentidão que permite o prazer do olhar ou da sensação. As multidões não só não são estranhas porque estão irmanadas no mesmo sentimento e função: tirar selfies nos sítios, recolher provas de uma presença física, circular, circular, circular, ver mas não olhar, falar e não escutar, comprovar e não sentir.
A ideia, de alguma forma romântica, de um tipo de hotel, chegou-me por via da Agatha Christie e dos romances policiais do Poirot: uma certa elegância, os hábitos que se repetem dia após dia porque as mesas são as mesmas, as pessoas são as mesmas, os olhares que se detêm fazem-no sobre as mesmas pessoas; homens e mulheres em relação aos quais se imaginam vícios e virtudes, formas de rir ou de tomar banho, desejos sexuais ou impulsos desviantes, adições e fantasmas do passado. Seres humanos fragilizados que frequentam as termas para curar achaques através da ingestão de comida sem sal e águas benfazejas a horas certas. Ou, pura e simplesmente, que desejam descansar da rotina extenuante do quotidiano. De certa forma, pese embora todas as diferenças, o que senti quando visitei de passagem as termas no Gerês.
Termas do Luso, Setembro de 2018 |
Passei dois dias no Grande Hotel do Luso, sobre o qual não me debruçarei muito porque pouco há a dizer - quase tudo é irrepreensível. Ora, tomei dois pequenos-almoços no hotel, jantei no primeiro dia no hotel. Vi gente que entrava e saía, que se levantava para se servir de peixe, de doce ou de uma torrada. Seguramente por deficiência minha, não identifiquei ninguém, a não ser uma certa massa informe de gente incaracterística sobre a qual não se consegue construir uma história, imaginar um desejo ou uma frustração. Vi jogadoras portuguesas de andebol, ingleses num circuito de cricket, grupos grandes de franceses vindos dos arredores de Lyon, um ou outro casal com filhos pequenos. Talvez me tenha chamado a atenção uma senhora que se sentou sempre (pelo menos em três refeições) na mesma mesa, fruto, talvez, de uma habituação no hotel e da amabilidade dos empregados. Talvez sobre ela se adivinhasse qualquer coisa, mas achei-a terrivelmente transparente, sem espessura de vida que valesse a pena decifrar.
Das duas uma: ou, de facto, os hotéis estão a tornar-se o destino da invisibilidade de uma certa espécie humana, ou o meu olhar precisa rapidamente de um novo par de óculos. Sei onde está a verdade, mas prometi não a revelar.
JdB
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