Uma imagem forte está, compreensivelmente há anos, a percorrer as redes sociais. Menos compreensível são as conotações quase opostas a que se tem prestado, tirando partido do seu enorme impacto, pelos vistos muito versátil.
Se dúvidas houvesse sobre a elasticidade da expressão humana para influenciar a carga de significado de determinada mensagem, a história da divulgação da fotografia que se segue, é a melhor prova desse potencial, por vezes, a poder rasar alguma manipulação.
Hoje, sublinha-se o problema das «fake news» como se a mentira fosse um fenómeno novo e não acompanhasse a humanidade desde o início, estando logo no epicentro da parábola do jardim do Éden. São, geralmente, lançadas com intencionalidade manipulativa, por governantes e gente do poder (mas não apenas) no afã de pontificarem sobre o rumo dos acontecimentos. Exemplos óbvios: Nero, Calígula, Filipe o Belo, Elizabeth I, Richelieu, Bismark, Rasputine, Lenine, Mussolini, Hitler, George W. Bush no caso da invasão do Iraque, etc.
A tal imagem tão glosada parte de um jogo infantil comum, pelo menos no Médio Oriente pobre, de desenhar a giz, no chão, os desejos e os melhores sonhos. Foi nesse contexto que uma pequena orfã se aconchega, poeticamente, no coração da mãe querida que desenhou e ali adormece. Consta que nem terá chegado a conhecê-la, mas pouco é explicado sobre as circunstâncias daquela morte, se de doença, guerra, acidente (só na repescagem recente se atribui à guerra, que vem insinuada mas não provada nas citações mais antigas e próximas da fonte). Segundo o costume muçulmano, a criança entra descalça em solo sagrado, porque assim concebe o interior dos contornos da figura maternal gravados no chão:
Em 2013, a imagem circulou como crítica à invasão e desmantelamento do Iraque pelas tropas norte-americanas a mando de George W.Bush, embora continue por esclarecer a causa da morte daquela mãe, por hipótese – ainda que menos provável – alheia ao conflito militar. De todos os modos, isto em nada diminui a tragédia da guerra, per se. A legenda clarifica o objectivo do divulgador: «No Compassion. Only ambition».
Em 2014, a imagem continuou a correr no mesmo registo político e acusatório, mas desta vez com o dedo apontado ao Presidente dos EUA em funções – Barack Obama – que proferira um discurso a referir os êxitos obtidos no Iraque:
Em 2015, surgiu num blog de espiritualidade oriental, integrado num conjunto de fotografias semelhantes, passando a um contexto de exaltação da capacidade humana de superação. A tal ponto vale a apologia, que termina com um cartoon sobre o valor determinante da perspectiva com que se encara a realidade, mesmo a mais adversa. Desse modo, coloca a tónica no olhar e na atitude com que se escolhe lidar com os factos (última imagem desta sequência), sendo que o cartoon apenas mostra a opção positiva adoptada pelos dois protagonistas, apenas diferentes na localização:
LEGENDA: «This picture broke my heart and made me appreciate my life a lot more» |
Ao menos, em sonhos, aproximam-se da casa acolhedora que lhes faltará. |
Apesar do perigo em que estão, ambos preferem fixar-se nos motivos que merecem ser festejados. |
Em 2017, reapareceu de forma neutra e sem legendas num artigo sobre apoio a menores abandonados, valendo-se da sua eloquência para evidenciar a dor indizível de uma inocente vulnerável.
Mais recentemente, emergiu em redes sociais brasileiras, readquirindo conotação positiva e maior carga poética enquanto corporização da saudade:
Na saudade, o desenho da pequenina iraquiana ganha uma dimensão próxima da perspectiva da autora-criança. Nesse sentido, torna-se especialmente verdadeira. Sem se negar a validade dos alertas sobre o horror da guerra e o flagelo da orfandade, a legenda brasileira devolve autenticidade ao gesto magnífico da minúscula artista plástica, que fez arte talvez sem saber. À simplicidade da sua pintura juntou uma coreografia genuína e plena de significado, que alavancou a força daquela mensagem visual. Da saudade, cantaram poetas-escritores brasileiros, que também navegam na língua de Camões dando-lhe, em geral, um colorido caloroso: «Ela estava triste. Não era uma tristeza difícil. Era mais como uma tristeza de saudade. Ela estava só. Com a eternidade à sua frente e atrás dela.» (Clarice Lispector – I); «Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.» (C. Lispector – II); «Guarda estes versos que escrevi chorando / Como um alívio a minha saudade / Como um dever do meu amor / E quando houver em ti um eco de saudade / Beija estes versos que escrevi chorando.» (Machado de Assis).
Com razão clamava Pessoa que o melhor do mundo são as crianças, capazes de atingir um patamar de verdade condensada, que as aproxima das estrelas. Não por acaso, também a obra-prima da menina iraquiana só se deixa ver e perceber a partir de cima… do céu, onde habitará a presença mais invisível da sua representação, retratada com sorriso suave e olhos atentos. Naquele recorte em giz onde adormeceu a criança rodeada de eternidade (segundo Lispector), ficou igualmente desenhada a ligação da terra ao céu com passagem pelo coração gigantesco daquela pequenina, que se ofereceu para pulsar com vida no lugar do coração de uma mãe inalcançável à vista, mas pressentida através do olhar interior. Percebe-se por que quis tirar os sapatos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
2 comentários:
Agradeço o post tão comovente.
Onde habita a criança? A Saudade...o vazio de afectos...a necessidade de um colo apenas imaginado... a segurança delimitada da completude...
Afinal, queixamo-nos de quê e para quê face a situações como as das imagens como as publicadas.
Concordo 100%!
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