06 maio 2021

Textos dos dias que correm

«O Senhor não está no ruído»: 

O silêncio jaz, como os textos, arqui-orais, à espera que o acorde (o ressuscite) algum passante ou legente. Aparentemente, o silêncio não é um ato comunicativo: espera a sua vez, a sua fala, enquanto memória figurativa do corpo e superfície de inscrição de emoções (luto, suspense, reprovação, anuência, desabamento, júbilo). Se me volto para alguém, se o interpelo, e esse alguém não se voltar para mim, não me responder, o seu silêncio tem em mim um efeito passional, intrigante, interpretável como recusa, desprezo, abandono. Se peço silêncio, interrompo a fala do outro; obrigar o outro a calar-se: “Cala-te!” é utilizar uma injunção fortemente modalizada: “eu quero” (que te cales), “tu deves” calar-te. O silêncio, na interação social é a ausência de fala. Enquanto modo de representação, o silêncio prende o sujeito emissor ou recetor, criando uma relação nova com o espaço e o tempo em que evolui. O silêncio nesta área pode ser dividido em três categorias (Bruneau, 1973): mental, social, ou ambas, sendo definidas segundo o tempo, o contexto e a perceção. Há quem fale do silêncio surdo, isto é o silêncio que não sonoro mas gestual, próprio dos surdos para quem fazer silêncio – ou calar-se – no mundo visual que é o seu, se mostra quando deixa de mexer as mãos como outros deixariam de abrir a boca (onde encontramos o corpo enunciante). Fisiologicamente, o silêncio é o resultado de hesitação, autocorreção, ou de deliberada interrupção da fala com o fim de clarificação ou de processamento de ideias. Há silêncios curtos e silêncios longos, em intensão e em extensão. O silêncio interativo manifesta-se nas funções interativas, reativas, ou de dar lugar à fala do outro. Mas há o silêncio incapacidade de responder, recusa, significante musical (suspiro, pausa), esvaimento da linguagem diante do inefável. E há o mutismo como perversão do desejo quando “le silence même de la vie est contaminé et la source de la parole polluée”, escreve D. Vasse.

Há o intervalo entre o apelo da voz que se faz ouvir no interior do corpo e a sua proferição sob forma de oração, de meditação, de “monólogo interior”, de mutismo, de ressentimento. Uma mente silenciosa, liberta do ruído do pensamento é uma finalidade e um importante passo no desenvolvimento espiritual. Esse “inner silence” não é ausência de som; pelo contrário, é entendido como o pátio que permite o contacto com o divino, a realidade última, ou a verdade de cada um. Muitas tradições religiosas implicam a importância de estar quieto e mesmo no pensamento e no espírito em vista ao crescimento espiritual transformador. No Cristianismo existe o silêncio da oração contemplativa, ou de meditação cristã; no Islão, há a sabedoria dos escritos dos Sufis que insistem na importância de encontrar o silêncio dentro de si. No Budismo, o silêncio permite que a mente se torne silenciosa em função da iluminação espiritual. No Hinduísmo, incluindo os ensinamentos do Advaita Vedanta e os passos do yoga, os mestres insistem na importância do silêncio para o crescimento interior. Em algumas tradições do Quakerismo (ramo do Cristianismo), o silêncio é uma parte presente nos serviços da oração e um tempo que permite que o divino fale ao coração. Que é a meditação senão um «pensamento acompanhado por reflexão que procura com prudência a causa e a origem, o modo e a utilidade de cada coisa»? A meditação que isola a alma da azáfama das atividades terrestres precisa do silêncio como a sua antecâmara, como condição da sua potenciação. O primeiro gesto do silêncio é a expulsão do mundo e do ruído, conforme está escrito: “O Senhor não está no ruído” (1 R 19,11). A casa é o dentro. O invólucro do silêncio como movimento imóvel. E é porque se associa o silêncio associa ao espírito que a matéria pode aparecer como obstáculo ou trampolim. Há o silêncio que acompanha a recitação e que opera uma rutura no fio da praxis enunciativa – a oração, v.g., ou a pausa numa partitura musical, ou ainda a interrupção da fala numa situação interlocutiva. Para o autor de “La voix nu”e a leitura da “lectio divina” é uma “épreuve de nudité”. (…)

O silêncio é uma estratégia de comunicação, um fazer, como se verá adiante no relato da mulher que se ajoelha aos pés de Jesus e lhe unge os pés, e que lemos como uma parábola no decurso de um discurso. O corpo fala, o silêncio é um gesto significante, afetivo. Há silêncios prenhes: Jonas, no ventre da baleia, é o símbolo de Cristo silencioso no seio da mãe e, ao mesmo tempo, a figura reduzida ao silêncio e que depois renasce, falando. Thomas Merton falava de vida religiosa como vida silenciosa. O que a vida religiosa exige é que se deixe instalar o silêncio para que Deus fale, que se entre no silêncio de si para aí ouvir a Palavra. Quando amamos alguém, procuramos a sua presença: basta então que aquele que procuramos esteja lá, mesmo que nenhuma palavra se troque: essa é a verdade do silêncio interior. Nesse silêncio escuta-se o que vive em nós, a palavra. O silêncio da presença faz apelo a um presente radicalmente outro. S. Agostinho coloca a questão de fundo: lembramo-nos do passado, antecipamos o futuro, mas o presente? E contudo, não podemos definir o passado e o futuro senão relativamente ao presente. O silêncio faz parte da observância regular recolhida da tradição por S. Domingos. Entre os elementos da vida regular e que constituem a vida dominicana, por exemplo, destaca-se o silêncio. No nº 46 do Livro das Constituições e Ordenações lê-se: «Os irmãos devem diligentemente guardar o silêncio, sobretudo nos lugares e tempos destinados à oração e ao estudo; é, com efeito a defesa de toda a observância e contribui sobremaneira para a vida religiosa interior, para a paz, para a oração, para o estudo da verdade e para a sinceridade da pregação». (…)

O tempo da receção vive-se antes de mais no silêncio. Acolher o dom do amor do Outro passa pelo silêncio da escuta. Ou não fosse o silêncio o pai da palavra, como dizia Domingos de Gusmão. O místico Jean Tauler, evocando o “Dum medium silentium” da liturgia, escreve: «É no meio do silêncio, no momento em que todas as coisas mergulham no maior silêncio, em que o verdadeiro silêncio reina, que se ouve o Verbo, porque se queres que Deus fale, é preciso calares-te: para que ele entre, todas as coisas devem sair». Receber a palavra não é receber uma mensagem a transmitir, é reconhecer esta palavra num corpo, como palavra da vida. É pelo corpo que passa a receção: não há palavra sem interação. Não há praxis enunciativa sem um corpo que responde a outro corpo. Mesmo que seja virtual: afinal, pensar, recordar, são operações virtuais, não há traços visíveis que as colham, ao contrário da escrita.

O texto de João diz-nos que o gesto de dom tecido na verdade do silêncio é um mais pregnante do que qualquer outro, calculista, dominador, masculino. Como anunciar aquele que nos tocou sem pronunciar uma palavra só? Estando Jesus em Betânia, à mesa, chegou uma certa mulher que trazia um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro de alto preço; partindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus (Mc 14,3). Uma mulher coloca um gesto em silêncio: quebra um frasco de perfume e derrama-o na cabeça de Jesus. Gesto que os discípulos não entendem. Jesus assinala a distância entre o gesto e o efeito que criou quando lido e interpretado. As palavras dos discípulos não entendem a perda senão em termos de descodificação. Jesus dirá que ela «fez uma boa obra». Ela não perfuma o corpo morto, mas um corpo à mesa. «Em qualquer parte do mundo onde for proclamado o Evangelho, há de contar-se também, em sua memória, o que ela fez» (Mc 14, 9). O seu gesto é transformado em palavra de anúncio. O perfume derramado transforma as aparências e aquilo que se diz delas, abrindo um outro espaço. O vaso quebrado assinala a dissociação entre as palavras e as coisas (as aparências) em que diz algo diferente da relação ao outro: este corpo vivo como “coisa” visível não deve ser tido por aquilo que parece ser, transporta um outro tempo e um outro espaço nele: «O filho do Homem será entregue, sofrerá, morrerá e ressuscitará ao terceiro dia». O frasco partido rasga as aparências e faz intervir uma palavra que vem de algures, do fundo das Escrituras. A unção pode ser vista como um gesto colocado sobre o corpo: um corpo morto pede que sobre ele se coloquem gestos de embalsamento. Este gesto é uma porta que abre para um corpo a vir, inscrevendo nas margens do visível o invisível da vida e da morte. O gesto da mulher adverte para a ilusão de poder absoluto sobre o mundo, sobre si e o outro. A palavra nasce do silêncio. O silêncio da mulher é um silêncio prenhe: o da palavra silenciosa, da palavra do corpo que fala. Esta mulher fala por gestos, não por palavras: prefigura o triunfo da morte. Pode este perfume útil para a conservação do corpo morto servir para a conservação da palavra? De que fala esta fratura do vaso senão do ato de proclamação e da economia, dom do amor que só na brisa ligeira se percebe – que é discreto, silencioso – e nos leva a desconfiar da impostura da língua e dos grandes gestos. O dom da mulher passa por um perfume evanescente que passa numa brisa ligeira e é o seu gesto de derramar este perfume que Jesus associa ao anúncio do evangelho. Jesus não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu ato vale pela palavra: o seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra. Deus é percetível como um perfume quando o confessamos e celebramos: “Respire in te paululum” (Conf. XIII). «Eis onde estás! Respiro um pouco em ti quando derramo sobre a minha alma num grito de alegria em que ressoam ares de festa celebrada» (Agostinho).

De acordo com as normas culturais, o silêncio pode ser interpretado como positivo ou negativo, por defeito ou por excesso. Enigmático é o rosto do silêncio que denuncia o exílio da palavra e do encontro. Os monges inventaram técnicas de suspensão, práticas de interrupção da fala. No meio Metodista Cristão, a organização da fé e do silêncio, bem como a reflexão durante os sermões deve ser apreciada pela congregação, enquanto numa igreja Baptista do Sul, o silêncio pode significar desagrado relativamente àquilo que está a ser dito, ou talvez desconexão da comunidade congregada. Diz-se que só temos uma experiência completa do silêncio na morte. O silêncio completo é quando não se sente o mínimo ruído. Nos laboratórios, os animais submetidos a uma total falta de ruído mostram sinais de mudanças de comportamento e de agressão. Na religião ortodoxa o culto do silêncio tem um lugar de destaque. A excelência espiritual do hesicasta é silenciosa e contemplativa. A evidência do divino vivo, tal um oceano de luz, é doçura e dá-se não ao raciocínio, mas ao coração e à sensação: o «tudo sentir em Deus» de Isaac o Sírio torna-se o culto da “sensação de Deus” que recusa as palavras e se afasta da lógica da teologia. A apófase é o cúmulo desta teologia negativa que nega a limitação conceptual de Deus: nem valor, nem conceito, nem representação, Deus é o inacessível, o mistério sem fundo. (…) Através do trabalho da ausência, do luto, do vazio, sempre pulsional, não é o silêncio a manifestação de um indizível?


José Augusto Mourão
In Didaskalia
Publicado pelo SNPC em 05.05.2021

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue