30 setembro 2024

De uma certa simplicidade

Um dia, a conversar sobre solidão, dizia-me alguém que tem uma companhia esporádica: sabes, sinto-me muitas vezes sozinha@. Nem sempre tenho com quem conversar. Respondi-lhe que sim, que percebia muito bem a situação, mas que, no caso desta pessoa, havia promessa de beijos, significando que havia a expectativa de chegar alguém.  

A expressão promessa de beijos é uma expressão bonita. É um verso de um poema mais comprido intitulado Uma casa Portuguesa. Cito um excerto: 

Quatro paredes caiadas
Um cheirinho a alecrim
Um cacho de uvas doiradas
Duas rosas num jardim
Um São José de azulejo
Mais o Sol da primavera
Uma promessa de beijos
Dois braços à minha espera
É uma casa portuguesa com certeza
É com certeza uma casa portuguesa 
 

O poema é singelo - há nele uma dimensão muito popular. O ponto que quero realçar é o encanto de dois versos num texto menos interessante. Uma promessa de beijos / dois braços à minha espera contam uma história. Na minha opinião não seria preciso muito mais nada. 

***

Tive um pensamento peregrino - e dei um salto quântico - e já falei disto neste estabelecimento. 

No seu livro A Pesca à Linha - Algumas Memórias, António Alçada Baptista diz ter tido um extraordinário abalo quando soube, por um livro de António Ferro, que Salazar tinha no seu escritório o soneto de Plotin intitulado Le bonheur de ce monde

Avoir une maison commode, propre et belle,
Un jardin tapissé d'espaliers odorants,
Des fruits, d'excellent vin, peu de train, peu d'enfants,
Posséder seule, sans bruit, une femme fidèle. 

N'avoir dettes, amour, ni procès ni querelle,
Ni de partages à faire avec ses parents,
Régir tous ses desseins sur une juste modèle,
Se contenter de peu, n'espérer rien des gens. 

Vivre avec franchise et sans ambition,
S'adonner sans scrupule à la devotion,
Dompter ses passions, les rendre obéissantes. 

Conserver l'esprit libre et le jugement fort,
Dire son chapelet en cultivant ses entes,
C'est attendre chez-soi bien doucement la mort

***

A tradução abaixo é minha, forçosamente imperfeita. 

Ter uma casa cómoda, limpa e bonita,
Um jardim coberto de espaldeiras perfumadas,
Fruta, excelente vinho, algum ar, alguns filhos,
Ter sozinho, sem ruído, uma esposa fiel.

Não ter dívidas, amor, processos ou quezílias,
Não ter partilhas com parentes,
Gerir os propósitos de forma justa,
Contentar-se com pouco, nada esperar de ninguém.

Viver com franqueza e sem ambição,
Dedicar-se sem escrúpulos à devoção,
Dominar as paixões, torná-las obedientes.

Manter o espírito livre e o juízo forte,
Rezar o terço cultivando as raízes,
É esperar suavemente, em casa, a morte.

Qual a relação entre os dois versos de Uma Casa Portuguesa e o soneto que decorava o gabinete de Salazar? A simplicidade que conta uma história. O raciocínio não é óbvio (e sabe Deus se está correcto). A simplicidade de um propósito e a simplicidade de uma história. Talvez Salazar, apesar de tudo, tivesse trauteado a canção, fixando-se na promessa dos beijos e dos braços que o esperariam.

JdB  

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue