O filme «HANNAH ARENDT»(1) aproxima-se do documentário histórico – imperdível! – em torno da tese mais arrojada
e polémica de toda a carreira da filósofa alemã (1906-1975) que inspira o
título da película.
A
realizadora Margaretha von Trotta, também alemã, começou como actriz em filmes
famosos, assinados por Fassbinder, lançando-se depois na realização, onde já é considerada
a mais notável do cinema da nova vaga, no seu país. Esta obra confirma a sua
qualidade e extremo rigor. Nisso, condiz com Arendt, sendo por isso a melhor
forma de homenagear a genialidade do legado da grande filósofa, tão revolucionário.
A ponto de, num certo sentido, podermos dividir a história do pensamento
ocidental no antes e no depois de Arendt, nomeadamente, pelo salto qualitativo
do conceito trabalhado no filme: a banalidade
do mal. É discutível quem foi o autor da célebre expressão, entre Hanna e o
marido, mas a sua consagração pública coube por inteiro à filósofa(2).
Como todas
as ideias profundas, ainda que sintetizáveis em fórmulas concisas, também esta
foi fruto de anos de reflexão, tendo no epicentro o duplo estudo sobre os
totalitarismos de direita ou de esquerda e sobre o mal. Duas faces da
mesmíssima moeda, como intuiu Hanna, sempre inquieta em perscrutar e decifrar os
mecanismos do mal nas suas exteriorizações concretas. Importava-lhe lidar com a
realidade, concentrando-se no presente – o século XX –, sem se evadir em abstracções.
De origem
judia (os pais vinham da cidade de Kaliningrado, hoje russa), nasceu na
Alemanha, onde completou os estudos, tendo sido discípula de Karl Jaspers e de Heiddeger,
com quem teve uma relação afectiva tumultuosa (além de o mestre ser casado,
tinha bastante mais idade), o que a levou a pedir transferência para a
Universidade de Berlim. Com a subida de Hitler ao poder e a sua imediata oposição
política, antevendo com enorme lucidez o que aí vinha, foi presa pela Gestapo,
logo em 1933, conseguindo fugir para Paris, onde se radicou até as tropas nazis
invadirem França, em 1940. Nova retenção num campo de refugiados, que mais
parecia uma prisão, conseguindo outra vez fugir. Nova Iorque era agora o
destino, passando pela cidade livre e cheia de sol, que foi calcorreada por revoadas
de expatriados da guerra – Lisboa!
Com um
percurso itinerante, em slalom por
entre inúmeros perigos, o seu destino assemelhou-se q.b. ao do povo judeu. Mais
uma entre tantos, mas com final feliz. Nos EUA, refez a vida, acompanhada pelo
marido, judeu, radical de esquerda e ex-comunista, com quem tinha uma espantosa
cumplicidade intelectual. Era entre a elite académica e intelectual norte-americana
que circulava, gozando de enorme prestígio.
Quando, em
1960, o Estado de Israel raptou o ex-dirigente das SS, Adolf Eichmann, a viver
discretamente num subúrbio de Buenos Aires, para o julgar em Tel Aviv, Arendt
ofereceu-se ao The New Yorker para
assistir ao julgamento e fazer a cobertura jornalística...
…E aqui
começa o filme, com a reposta óbvia por parte do jornal, honradíssimo por ter
uma correspondente de luxo a cobrir o acontecimento mais badalado do ano, se
não da década! Em vésperas da partida para a Terra Santa, ainda assistimos aos
serões em casa do casal de berlinenses loucos (como Hanna e o marido eram, carinhosamente,
apelidados pela amiga escritora), onde o tom exaltado da discussão sobre a
legitimidade de tal julgamento, nos preparam para o que depois sucedeu. De
facto, face à argumentação comum dos judeus presentes, igualmente académicos,
motivados sobretudo pelo trauma de guerra e deixando-se embalar em
subjectivismos compreensíveis mas pouco conciliáveis com o discernimento que a
justiça pede, o casal objectava que o ponto de partida era ilegal e abusivo por
parte de Israel – o rapto. Quando os ânimos ficavam mais acesos, os amigos
judeus preferiam vociferar na língua materna – o alemão – deixando de fora os
convivas americanos que, em boa verdade, nem se tinham atrevido a entrar num
diálogo que remexia num passado de dor nacionalista. Cedia-se à tentação de elevar
o tema e toda a defesa a uma questão sacrossanta, como se estivesse em causa a
existência do povo judeu. Justiça, sobrevivência e revanche arriscavam,
perigosamente, a confundir-se. Qualquer abordagem que procurasse a máxima isenção
e racionalidade colocava-se nos antípodas. No limite, confundir-se-ia com diletantismo
provocatório, a resvalar para a traição, como se verá. Uma temática e todo um
modo de interpretar a realidade autenticamente fracturantes.
Embarcamos
com Hanna para um país em construção, invadido pela areia seca e amarela do
deserto do Médio Oriente. Gente apressada e pouco arranjada cruza-se com a
viajante de Manhattan, nas ruelas de traçado sinuoso, típicas das povoações tradicionais.
Apercebemo-nos que ali se pisam caminhos muito antigos, cheios de ecos de
gerações recuadas, onde se sente o peso da história. A par do entusiasmo febril
de uma nação recém-formada, hostilizada pelos países vizinhos e alimentada
pelas hordas de imigrantes hebreus que a vão povoando, finalmente acolhidos na
Terra Prometida. A filósofa observa tudo, entre curiosa e algo distante, pois
apreciava a abordagem racional que a atmosfera reinante não favorecia. Os
encontros com os amigos judeus, que conhecera na Alemanha e em França, são
muito calorosos. Porque a notável argúcia intelectual de Hanna em nada perturbava
a sua afectividade riquíssima e híper esclarecida. Mesmo nisso é fundamentada até ao tutano, como o prova
a relação profunda e livre com o marido. Como só eles sabiam vivê-la, serenamente
e de forma – dir-se-ia – tão positiva para ambos.
No
julgamento, onde a realizadora intercala com imagens de arquivo factuais, para
assistirmos ao que Arendt viu, Eichmann está resguardado da exaltação do
público numa redoma de vidro, com uns auscultadores para acompanhar a versão
traduzida dos testemunhos em hebraico. Tudo no filme decorre nos idiomas
originais, ora inglês, ora alemão, ora hebraico. Igual à realidade.
Os 3 juízes
do processo são todos fluentes em língua alemã, para não ficarem sujeitos a eventuais
lapsos de tradução. Nesse sentido, é tudo muito profissional. Estranha-se o aspecto
tão mediano do réu. As suas afirmações, sempre a repisar que se aplicava no
cumprimento estrito de ordens superiores, por mais abstrusas que fossem, causam
perplexidade. Um mangas-de-alpaca é tudo o que não se esperaria num carrasco,
apenas empenhado em obedecer – garante! – com zelo afinal robótico, às
instruções mais desumanas. A pergunta sobre a sua avaliação das ordens que
cumpria foi formulada, pelos juízes, de todos os ângulos possíveis, quase
incrédulos perante tanta aparente docilidade burocrática que, ao pactuar com um
projecto de destruição, deixa todos desconfortáveis. Ou incrédulos. O olhar
sobressaltado e estupefacto de Hanna, permite-nos acompanhar um pouco a sua
reflexão intensa sobre aquela personagem algo inédita, que, a seus olhos, abre
uma caixa de pandora sobre a memória do passado. À medida que a tese da
filósofa vai tomando corpo, percebe-se que antevê no rosto daquele funcionário
medíocre e cumpridor uma nova modalidade de malignidade, própria de quem decide
adoptar um comportamento acéfalo. Trágica e comodamente acéfalo, prescindindo
de pensar! Parecia estar ali uma combinação insólita e feia de puro burocrata,
misto de brioso e irracional (tudo o
que não calha!), passivo a receber ordens mas ardiloso e empreendedor na sua
execução, acrítico com a engrenagem infernal onde se integra mas voluntarista
no papel que lhe cabe desempenhar para a manter, tacanho e inconsequente a
interiorizar ordens repugnantes mas q.b. elaborado na sua concretização. Enfim,
a pior das misturas. Não obstante, também não seria o agente do mal demoníaco e
de contornos apocalípticos. Pelo contrário, esta é a via mais acessível ao
comum dos cidadãos, como personificou Eichmann, aos olhos de Hannah. Por isso, é
levada a rejeitar a ideia consagrada sobre a grande conspiração satânica onde se inseririam todos os colaboradores
nazis. Segundo ela, aquele colaborador estava longe de ser o diabo à solta ou o algoz pérfido que
todos esperavam encontrar, embora tivesse praticado actos pérfidos. E, como a
maioria não esperava aquilo que viu, teria acabado por não conseguir ver o que
não esperava…
O homem medíocre que se teria deixado
despersonalizar para ser peça perfeita de uma máquina de destruição, como os totalitarismos,
sustentados pelo profissionalismo de gente comum, tornada supérflua.
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Naturalmente,
que a interpretação do depoimento de Eichmann pela filósofa é discutível e
poderá não ser o exemplo mais convincente para ilustrar a sua tese sobre a
banalidade do mal, pois há boas hipóteses de aquele pretenso funcionário
rotineiro ser um cínico manipulativo. Mas isso não retira validade à tese de
Hannah, aplicável a muitíssimos agentes comezinhos e anónimos dos regimes
totalitários, que os serviram com brio e sem querer medir o impacto dos seus
actos, causadores de tanto horror.
Assim, o
diagnóstico arrojado de Arendt revelou-se incrivelmente revelador sobre a nossa
forma de percepcionar a realidade e os mecanismos vulgares de que males
tremendos se podem alimentar, como os totalitarismos, que tornam o ser humano
supérfluo ao subtrair-lhe a capacidade de reflexão, para melhor o
instrumentalizar. Revelador e insidioso – o artigo de Arendt (1963) suscitou de
imediato uma reacção violenta. Além da novidade do conceito, sobre a banalidade
do mal, levantou ainda uma segunda celeuma, sobretudo entre os judeus, ao
referir a cumplicidade de alguns chefes da Cruz de David com as elite nazis e
os guardas dos Campos de Concentração. Claro que esses estavam entre os sobreviventes…
A bomba rebentou e os efeitos não se fizeram esperar. Perdeu muitos amigos e
coleccionou milhares de inimigos. Mas ganhou o combate da história, pois
enriqueceu a forma de raciocinar das gerações seguintes.
O rigor foi-na
salvando, em cada novo desafio. Aplicava-o, sobretudo, na linguagem, onde o
domínio da palavra lhe facilitava a capacidade de ajuizar as diferentes
posições humanas. Exemplos: ao israelita que veio de Tel Aviv para a «avisar»
que desistisse da publicação controversa a propósito de Eichmann, responde desarmando-o:
isso não é um aviso mas uma ameaça;
na conversa com o amigo que a acusa de não gostar do seu povo, explica: Não amo o povo, só consigo amar os meus
amigos. E a ti amo-te; ao aluno que a questionou se atacar os judeus
equivalia a atacar a humanidade, clarificou: mas claro, porque os judeus são homens, pelo que resulta num ataque à
humanidade (note-se que não disse: ‘a toda’ a humanidade).
No filme – que
espelha o sucedido – Hanna esclarece bem que não está a ilibar Eichmann mas a
explicar o tipo de erro cometido: «O
pior mal no mundo é o cometido por pessoas vulgares, o mal cometido sem
motivos, sem convicções, simplesmente por pessoas ordinárias que renunciaram à
sua dignidade humana. (…) Não escrevi que defendia Eichmann. Tentei
estabelecer o laço entre a mediocridade chocante do homem com o horror dos
factos. (...) Trata-se de compreender,
não de perdoar.»
A incredulidade
com que reage às críticas ferozes de que é alvo também dão nota da sua pureza
de carácter, algo naïve na busca dos factos, sem prever as repercussões
mediáticas das suas afirmações. Sedenta de seguir num trilho de verdade e de o aprofundar,
sem hesitações, ficou magoadíssima com os ataques de ordem pessoal (quase
todos), de quem nem sequer lera uma linha do que escrevera. Não pôde, portanto,
contar com críticas construtivas. Mas não se coibiu de fazer uma séria auto-avaliação,
assumindo que cometera um erro. Havia uma contradição no seu postulado: os termos «banalidade» e «radicalidade» não eram
compatíveis, porque o mal não é radical,
apenas extremo. Só o bem pode ser profundo e radical.
O
sentido de humor, muito acutilante e carregado de ironia, é bastante característico
do seu tipo de perfil psicológico e intelectual, somando coragem à craveira
intelectual. Os exemplos multiplicam-se, no filme e na introdução à reedição do
seu livro, em 2007, que está disponível online (link:
http://malomil.blogspot.pt/2013/02/arendt-em-jerusalem.html9 de Fevereiro de
2013 ). Num desabafo com o marido sobre as razões
por que as outras professoras universitárias faltam tanto, observa: dizem que por se terem
divorciado, enfim, estas coisas de americanas. Certeira
também no comentário à última declaração de Eichmann, depois de lido o veredicto
de pena capital:
O condenado à
forca – «Em breve, meus senhores, voltaremos a ver-nos. É esse o
destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria.
Jamais as esquecerei!».
Hanna – «Perante a morte,
ele não encontrou senão o cliché
usado na oratória funerária. No patíbulo, a sua memória pregou-lhe a última
partida; ficou ‘extasiado’ e esqueceu-se de que estava no seu próprio funeral. Foi
como se naqueles últimos minutos ele condensasse a lição que o seu longo
percurso de perversidade humana lhe tinha ensinado – a lição da terrível banalidade do mal, desafiadora da
palavra e do pensamento.»
Impossível não terminar
com as palavras da filósofa, que nos ensina a observar e a discernir, para
nunca nos privarmos de ser humanos: «Exercer uma
influência, eu? Não, o que quero é compreender. A necessidade de
compreender tomou conta de mim desde muito nova.» Daí a sua enorme
bravura a encarar a realidade, pura e dura…
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2
semanas)
_____________
(1) FICHA TÉCNICA
(2) É na carta de um filósofo amigo de Arendt que
se alude ao facto de a designação poder ter sido inventada pelo marido de
Arendt, que se penitenciaria por ter sido a causa involuntária da avalanche de
ataques que se abateu sobre a mulher. Mas, como rezava na carta, pouco
importava a autoria da expressão, pois fora responsável pela sua fundamentação
e disseminação, espalhando-se como um rastilho e enorme estrondo! Nesse
sentido, era inequívoco que lhe pertencia em pleno.
Título original:
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HANNAH ARENDT
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Título traduzido em Portugal:
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HANNAH ARENDT
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Realização:
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Margaretha von Trotta
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Argumento:
|
Margaretha von Trotta e Pam Katz
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Produzido por:
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Fotografia:
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Banda
Sonora:
|
André Mergenthaler
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Duração:
|
113 min.
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Ano:
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2012
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País:
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Alemanha
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Elenco:
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Barbara Sukowa – Hanna
Axel Milberg – marido de Hanna, Heinrich Blüscher
Janet McTeer – a amiga indefectível de Hanna, Mary
McCarthy
Klauss Pohl - Heidegger
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Local das filmagens:
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Israel,
Luxemburgo e Alemanha (Westfália)
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Site oficial:
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http://www.zeitgeistfilms.com/film.php?directoryname=hannaharendt
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Prémios
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Prémio Lola (óscar alemão) para Melhor
actriz dado a B.Sukowa, e Medalha de Prata dos galardões Lola para Melhor
Filme.
No Festival de Denver recebeu prémio de
Melhor Argumento e Melhor Som.
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No filme, a pose blasée, de cigarro em riste,
característica dos anos 50-60.
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