29 março 2018

Vai um gin do Peter's?

COMO A CATEDRAL SURFOU MODAS E REVOLUÇÕES

Reviravoltas de regime, modas e revoluções deixaram marca na Catedral de Estrasburgo – ex-libris da capital da Alsácia-Lorena. Situada num enclave especialmente rico e erudito da Europa ocidental, cidade e templo apanharam-se no epicentro da rivalidade franco-alemã, em zona de fronteira demasiado elástica, reivindicada à espada por germânicos e franceses.

O exemplo mais caricato do choque de poder com ecos na Catedral de Estrasburgo ocorreu durante a Revolução Francesa. Naqueles anos de terror e mortandade sem freios, os republicanos gritavam por «igualdade, liberdade e fraternidade», enquanto se afanavam em usar a guilhotina, massificando o homicídio. Especializados em destruir, propunham-se fazer tábua rasa do património histórico e artístico de França, derrubando estátuas, rasgando telas, queimando palácios e igrejas, ou reduzindo-os a funções menores, humilhantes.

Demasiado visível e imponente no planalto fronteiriço, a Catedral alsaciana transformou-se em alvo a abater. Consideravam-na o expoente da sobranceria e uma afronta ao igualitarismo, com aquela torre octogonal muito esguia – a mais alta do mundo, até meados do séc. XIX.


A parte superior da catedral é visível a kilómetros de distância

Ao saber que o templo encabeçava a lista negra, o hábil mestre serralheiro Stultzer conseguiu convencer a turbamulta de que seria mais útil aproveitar a altura da torre para mostrar aos estrangeiros os méritos da Revolução, uma vez que era avistada de território germânico. A proposta foi bem acolhida, tendo ficado decidido enfiar no campanário um gigantesco barrete frígio, em cor púrpura, a replicar o dos revolucionários. 

Medalha da revolucionária Marianne com o gorro frígio

Durante nove anos, a ridícula cobertura manteve-se em posto, entrando de imediato para o anedotário dos locais, que o cognominaram em língua ininteligível para os republicanos: «Kaffeewärmer» (abafador de cafeteira/bule). Sabendo-lhes a pouco, em 1793, transformaram-na em «templo da deusa da razão». Ainda saquearam inúmeras imagens e fundiram os metais para fabricar canhões, que depois serviram às tropas napoleónicas. Só em 1801 voltou ao culto católico, recomeçando o restauro, em 1813, até cair em mãos alemãs, a mando de Bismarck – 1870.

Os mistérios que rondam a catedral, estendem-se à inexistência de uma segunda torre; à coqueluche tecnológica instalada logo na primeira construção gótica – o gigantesco relógio astronómico; à riqueza acumulada nos cofres da pequena e poderosa Capela de Nossa Senhora durante o primeiro quartel do séc. XV; à longevidade invulgar dos vitrais da rosácea na fachada ocidental – jóia do arquitecto mais antigo de Estrasburgo que apaixonou Goethe e Claudel – Erwin (séc. XIII). Nem um toque isotérico lhe falta, por causa de um misterioso raio verde, que aponta à uma imagem do Crucificado num dos púlpitos, duas vezes ao ano, nos equinócios de Março e de Setembro, pouco depois do meio-dia. A pontualidade do feixe verde surpreende, percebendo-se que emana do pé da figura de Judá pintada num vitral. Só não é certo se o efeito era intencional ou feliz coincidência. 


O feixe dos equinócios da Primavera e do Outono

O Cristo iluminado pelo reflexo verde

Além do divertido raio verde, há outras notas de humor como os cães esculpidos em nichos estratégicos ou monstros exóticos em poses desconcertantes, que não chegam a assustar.

O sentido cívico dos estrasburgueses perpassa na escolha das figuras homenageadas nas estátuas gigantescas, que não privilegiou reis nem conquistadores, mas os maiores obreiros da Catedral. Excepção para o libertador de Estrasburgo – Rodolfo de Habsburgo (1218-1291) –, que lhe concedeu o estatuto de «Cidade Livre». O grande arquitecto Erwin até mereceu ter a sepultura num patamar intermédio da torre, para espanto de Goethe, que o elegeu como seu herói medievo.


Das poucas rosáceas originais que ainda se preservam, em França.

Num gesto de precocidade democrática, desde o séc. XIII que a administração da catedral passou a ficar confiada a um leigo, incumbido de prestar contas, regularmente, ao conselho dos cidadãos. Era recrutado com critérios de alguma meritocracia, pelos dotes artísticos e aptidões na gestão e na contabilidade, conforme reza nos documentos de época. Curiosamente, enquanto na catedral mandava um leigo, a autoridade máxima do município era exercida pelo Bispo. 

Sucederam-se 3 relógios astronómicos, todos eles proezas tecnológicas e artísticas do seu tempo: o da fundação; o do matemático Conrad Dasypodius (1570); e o que persiste, desde 1842, mantendo o invólucro do quinhentista repleto de imagens que se movem a horas determinadas. O seu mecanismo astronómico permitiu prever o eclipse de 2006

Se a sofisticação cultural e tecnológica da cidade impregnou a Catedral até ao âmago, como o demonstra o extraordinário relógio astronómico, também os preconceitos e segregações ressoaram templo adentro. Descontando o vandalismo dos exércitos conquistadores que não poupavam a Catedral, é lamentável a tradição anti-semita, que recorria a um dos 16 sinos – em geral, o que também tocava às 10h da manhã – para avisar a comunidade judaica da hora de abandonar a cidade, mal o sol descia. A cada poente, o repique metálico soava por más razões, que se prolongaram por longos séculos, até ao último quartel do séc. XVIII. Também uma imagem feminina representativa da Sinagoga, aparece de olhos vendados e posição curva, espelhando como se encarava o judaísmo.

Antes de concluir, uma referência ao enigma da torre única: quando a catedral gótica começou a ser erigida sobre um antigo templo românico (início séc.XIII), inspirou-se na Notre-Dame de Paris, absorvendo o novo estilo pontiagudo, de arcos quebrados, fachadas gigantescas com grandes rosáceas, frestas avantajadas para entrar a luz, abóbadas, colunatas, naves. Os trabalhos de aperfeiçoamento estenderam-se por três séculos, acompanhando as últimas modas, a ponto de ficar conhecida por «laboratório artístico» do Ocidente. Nesses primórdios, teve duas torres de tamanho médio que, por motivos de segurança, foram absorvidas por um módulo central a preencher o intervalo entre as duas. A meio do séc. XIV, houve a intenção de abrilhantar a fachada demasiado quadrangular, dotando-a de novas torres descomunais. A encomenda dada ao alemão Ulrich d’Ensingen resumia-se a «transparence et jusqu’au sommet». Numa acrobacia arquitectónica e de engenharia, o mestre edificou a altíssima torre octogonal, depois terminada por Jean Hültz, em 1439. Entretanto, veio a Reforma, a conquista de Luís XIV, a Revolução, o I Reich e uma segunda torre tornou-se inviável. Até por este handicap, a Catedral manteve-se fiel a coleccionar singularidades.     


O maior desafio e segredo do sucesso da torre residiu na distribuição do peso colossal

Quando as armas foram depostas e a bandeira suástica banida, Estrasburgo e a sua catedral respiraram, finalmente, em paz. Num gesto generoso e pleno de simbolismo, o Conselho da Europa fez questão de contribuir para o restauro do templo, oferecendo-lhe (1956) o vitral de Nossa Senhora, incrustado na fachada oriental. Um carisma especial, a Catedral ter conseguido acumular sete séculos de presentes… em pedra rendilhada, vidrilhos coloridos, pinturas murais, tapeçarias e peças decorativas em metais nobres. 

«Vierge en majesté», de Max Ingrand, rodeada dos Apóstolos no mural a nascente
Votos de Santa Páscoa a todos, com um presente muito europeu, inclusive na sua fragilidade!

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)

2 comentários:

Anónimo disse...

Pronto, vá lá... Tinha que ser...

Maria Zarco mostra, neste post, o que é capaz de fazer. O muito bom, o excelente.
Educativo, acima de tudo nos pormenores.

Cumprimenta, com admiração,
eo

Anónimo disse...

Muito obrigada pela generosidade do comentário. Votos de Santa Páscoa, MZ

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