Desporto e fé: O jogo que a Igreja não pode perder por falta de comparência
O fenómeno do desporto
A atividade desportiva, presente desde os alvores da história da humanidade, assumiu no nosso tempo, e como nunca antes, o caráter de um fenómeno de massa consolidado e invasivo capaz de envolver à escala planetária enormes multidões, superando barreiras geográficas, raciais, sociais, culturais, religiosas, políticas e económicas.
O nosso tempo é marcado pela omnipresença do desporto: o desporto é um ruído de fundo planetário, para outros uma música, que condiciona a perceção da realidade e de nós próprios. O desporto deve ser considerado, de facto, como uma nova referência antropológica, um persistente poder espiritual planetário, um modelo inspirador e metodológico para todos os âmbitos da realidade.
Apenas um exemplo: nas escolas universitárias a prática desportiva, dentro e fora da instituição de ensino, é hoje considerada uma experiência significativa para a aquisição das denominadas "soft life skills", ou seja, as competências para a vida, um conjunto de capacidades humanas adquiridas através de ensinamento ou experiência direta que são usadas para gerir problemas, situações e questões comummente encontradas na vida do dia a dia. Bastaria isto para reconhecer ao desporto um papel educativo.
O desporto, religião do nosso tempo
O desporto tem no espírito olímpico a sua matriz e referência mais relevante. Que valor podemos dar ao artigo 2 da Carta Olímpica? «O "Olimpismo" é uma filosofia de vida que exalta e combina num conjunto harmonioso as qualidades do corpo, a vontade e o espírito. Aliando o desporto com a cultura e a educação, o "Olimpismo" propõe-se criar um estilo de vida baseado na alegria do esforço, no valor educativo do bom exemplo e respeito pelos princípios éticos fundamentais universais.» O desporto, nas intenções de Pierre De Coubertin, não assume só um papel ao educar os jovens com a atividade motora, mas assume a conotação política de um utopista projeto de educação para a paz dos povos, das nações, de toda a comunidade internacional.
E sem meias palavras o desporto acentua também uma conotação religiosa, quando Coubertin afirma: «A primeira característica do desporto olímpico antigo como o do moderno é ser uma religião». Um conceito confirmado em 1972, durante os Jogos de Munique, por Avery Brundage, então presidente do Comité Olímpico Internacional: «Talvez o desporto, religião do século XX, com a sua mensagem de lealdade e retidão, tenha sucesso [relativamente à construção da paz e da harmonia entre os povos] onde outras instituições falharam».
O desporto surge hoje como a caricatura mercantil de uma religião universal: os seus acontecimentos mais emblemáticos assumem o caráter de uma celebração litúrgica diante de uma assembleia planetária. Foi sempre assim, desde os seus alvores nas Olimpíadas de Atenas até hoje: basta pensar na cerimónia de acendimento do sagrado fogo olímpico ou na publicidade da Liga dos Campeões em futebol. Manuel Vazquez Montalban, escritor espanhol e grande adepto do Barcelona, chegou a afirmar: «Numa época em que é evidente a crise das ideologias, em que é claro o redimensionamento da militância política, e onde até as atitudes religiosas sofrem de falta de perspetiva, o futebol é a única e grande religião praticável. Há neste desporto uma dimensão financeira, mediática, publicitária, mas não menosprezarei o seu lado litúrgico». O tema "desporto à luz da fé" arrisca-se a ser superado pelo conceito "desporto: nova expressão de fé laica".
O jogo, essência do desporto
Mas porque é que as pessoas gostam tanto do desporto? O desporto é uma evolução do jogo, e o jogo é uma experiência natural, instintiva, extremamente envolvente e fascinante. Johan Huizinga, no seu "Homo ludens", escrevia que o jogo é mais antigo que a cultura, é uma função que contém um sentido: no jogo manifesta-se um elemento imaterial na sua própria essência. O jogo é uma necessidade inata, faz evoluir as capacidades motoras, cria um ambiente desinibido e distendido, melhora a imagem corpórea, aumenta o sentido de segurança e a auto-estima, produz socialização e adaptação, faz nascer e desenvolver o uso da regra através de experiências diretas, regula o comportamento em relação aos outros, permite uma comunicação pessoal, restabelece o equilíbrio afetivo, permite experimentar papéis diferentes, facilita a tarefa do educador, que descobre estilos e modelos de comportamento da criança. «Pode descobrir-se mais de uma pessoa numa hora de jogo do que num ano de conversa», escrevia Platão.
«Quer eu jogue com outra pessoa ou sozinho, verifica-se uma interação recíproca. Sou eu o protagonista do jogo, mas o resultado do jogo surpreende-me. No jogo recebo um novo eu próprio», explicava o bispo Klaus Hemmerle, fundador, com Chiara Lubich, da Escola Abbà, o centro de estudos do Movimento dos Focolares. «O jogo é mais alta forma de pesquisa» (Albert Einstei); «O homem é inteiramente homem só quando joga» (Friederich Schiller); «O jogo não leva a lado nenhum; quem joga já chegou» (Rubem Alves); «O homem não para de jogar quando envelhece, mas envelhece quando para de jogar» (G.B. Shaw); «A vida é muito mais que um jogo e jogar é uma bela maneira, divertida e apaixonante, para aprender a vivê-la a sério», escreveram, no livro sobre a filosofia do râguebi, intitulado "Olhar para a frente, olhando para trás", Mauro e Mirko Bergamasco.
A bola pode ser vista como o emblema do jogo. Dorothee Solle, socióloga e teóloga alemã, assim exprimiu, de maneira eficaz, a procura da felicidade: «Como explicarei a uma criança o que é a felicidade? Não lhe explicarei: dar-lhe-ei uma bola para o fazer jogar».
O valor biológico do jogo
Os comportamentos lúdicos devem oferecer vantagens do ponto de vista biológico, de outro modo a seleção natural tê-los-ia eliminado. Há várias teorias que explicam a utilidade biológica do jogo: "válvula de escape" das energias em excesso (um contrassenso); robustecer-se para treinar-se para a vida adulta (em contradição com o facto de que o jogo decresce na aproximação à idade adulta e os estímulos são insuficientes para esse propósito); treinamento para as dificuldades (o jogo não é a cópia em tamanho pequeno dos comportamentos adultos).
Sabemos que o tempo dedicado ao jogo é diretamente proporcional às dimensões cerebrais do animal e inversamente proporcional à sua especialização. Não existe na natureza um animal que dedique tanto tempo ao jogo como o ser humano, o animal mais imaturo ao nascimento do ponto de vista neurológico: este aspeto aparentemente limitador toma o nome de neotenia. O ser humano é o desajeitado cósmico, o desajeitado da criação: tendo um cérebro "incompleto", precisa de um suplemento de jogo, e o jogo é o meio mais poderoso para fazer amadurecer e adaptar o cérebro neoténico imaturo ao ambiente, selecionando as conexões, as sinapses, que garantem esquemas motores e comportamentos eficazes para adaptar-se ao ambiente. Através do jogo, uma desvantagem imediata para o indivíduo, como a neotenia, que o torna dependente e frágil, torna-se uma vantagem a longo prazo.
Mesmo do ponto de vista biológico, podemos por isso afirmar que a atividade motora e desportiva representam uma experiência formativa, um percurso que se funda não sobre o introduzir, mas sobre o e-ducar (e-ducere), sobre o fazer florescer o que vive na pessoa.
Jogo, desporto e corporeidade
O ponto de vista da biologia abre o olhar à corporeidade e ao seu valor, a que fazemos apenas um aceno, ainda que seja precisamente o crescente, e muitas vezes distorcido - valor dado ao corpo que tornou tão difundida e popular a atenção à atividade física. «O ser humano - escreveu o cardeal Danneels, de Bruxelas - não é um fragmento de "corporeidade", habitado por um momento por uma centelha espiritual. Ele é antes de tudo espírito, pessoa única e livre, e é através do corpo que o seu espírito abre um caminho na matéria e na história. (...) Assim o corpo humano torna-se a exteriorização da alma. Algo que é completamente diferente de uma roupa que se veste». «O desporto consiste em delegar ao corpo algumas das mais elevadas virtudes da alma», escrevia Jean Giraudoux, escritor francês.
A manifestação ritualizada e organizada da expressões do espírito na corporeidade é o desporto, definido como «jogo locomotivo para orientação motivacional intrínseca», ou seja, experiência que procura e desenvolve competências físicas, psicológicas e relacionais fundamentais para a formação da personalidade. Nesta perspetiva o desporto é "askesis", é experiência ascética, isto é, exercício de transformação do corpo e da alma. E é "paideia", quer dizer, educação global. Vitórias, medalhas e dinheiro vêm depois.
Esta sua natureza deveria tutelá-lo "a priori" de qualquer instrumentalização. O desporto esforça-se para ser, ou para aparecer, como realidade em si mesma, sem ligações de fé religiosa, de interesses económicos e políticos. De facto, pelo menos ao nível das altas prestações, subjaz a estas interferências. As económicas e mediáticas são conhecidas: o desporto é hoje o negócio mais florescente do mundo e o produto que melhor se vende. Da instrumentalização do desporto para fins ideológicos está a história chega: do "panem et circenses" para distrair as multidões ao nazismo e ao fascismo, da ditadura argentina dos mundiais de futebol aos direitos humanos na China das Olimpíadas, da cisão da ex-Jugoslávia ao Qatar destes meses.
O desporto à luz da doutrina cristã
Os pensadores cristãos não se concentraram tanto na relação entre fé e desporto, mas sobretudo nas questões éticas entre mansidão cristã e a dimensão competitiva da prática desportiva. As referências à primeira carta de Paulo aos Coríntios oferecem interessantes pontos de reflexão, mas não podem esgotar a nossa aproximação ao desporto.
Original e estimulante é a perspetiva oferecida pelo pastor anglicano Lincoln Harvey de desporto como «celebração da nossa contingência», isto é, do sentido fugaz e, ao mesmo tempo, eterno do nosso ser criatura.
O ponto de vista do papa Francisco do desporto enquanto «metáfora da vida» abre certamente interessantes pontos de reflexão. A passagem das competências sobre o desporto do Conselho Pontifício para os Leigos para o Conselho Pontifício da Cultura é uma mensagem clara, uma inversão de rota que abre interessantes e, até agora, inexplorados horizontes. O congresso sobre desporto e fé "O desporto ao serviço da humanidade", que teve lugar no Vaticano em outubro de 2016 (...), representou uma pedra angular neste sentido. O evento ocorreu pouco tempo depois da primeira participação do Vaticano, através de uma delegação, não de atletas, nas Olimpíadas do Rio de Janeiro. Foi, como desejava o cardeal Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, uma ocasião de encontro, para debater juntos, crentes e não, os grandes desafios da sociedade contemporânea, os interesses partilhados das comunidades desportivas e religiosas do mundo.
A missão foi clara: «Lançar um movimento que inspire a pensar e agir segundo a "Declaração dos Princípios do Desporto ao Serviço da Humanidade", um conjunto de valores orientadores que articulam a influência combinada de desporto e fé». Compaixão: partilhar o poder e as vantagens do desporto para dar força àqueles que são pobres e desfavorecidos. Respeito: respeita os teus adversários, compreende-os e à sua cultura mais profundamente. Condena a violência no desporto, dentro e fora de campo. Amor: amar o desporto, o desporto é para todos; ajuda todos a participar no desporto, permite a todos competir em condições iguais. Iluminação: o desporto tem o poder de transformar a vida e construir o caráter. Equilíbrio: em cada fase da vida joga por divertimento, pela saúde, pela amizade. Alegria: o desporto, antes de tudo, é alegria. Há muito mais na prática desportiva do que no vencer, mas quando estás em competição dá sempre o melhor que podes.
Emerge como evidente que chegou o momento, em particular para quem é cristãmente inspirado, de realçar e promover a beleza do desporto, a sua "estética", antes ainda que a sua ética, contexto ao qual durante demasiado tempo o pensamento foi relegado (ou se relegou). Certo é que o desporto é um fenómeno com o qual não é possível não se confrontar. As perguntas, para os cristãos, estão sobre a mesa: que valor deve ser reconhecido ao mundo do desporto? Como relacionar com os praticantes a atividade desportiva, da atividade juvenil ao profissionalismo? Quais são as expressões fé no desporto? Há desportistas cristãos? Como explicar manifestações de fé, superstições e exorcismos presentes no desporto? Há uma fé incarnada no desporto: quais os pressupostos?
Paolo Crepaz
Médico de equipas nacionais de Itália, professor universitário
Fonte: Sportmeet (Movimento dos Focolares)
Trad.: SNPC
Publicado em 28.05.2018
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
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