19 janeiro 2024

Do slow e da identidade de género

Usemos a música A Whiter Shade of Pale (1967), dos Procol Harum, como exemplo para o argumento. 

Na altura em que terá chegado a Portugal, as músicas que se dançavam dividiam-se basicamente em ye ye (ou pop) e slow - umas eram mais agitadas e o par dançava separado, as outras eram mais lentas e o par dançava agarrado. Fruto de uma tradição cuja origem desconheço, mas que imagino antiga, nas músicas slow o comando estava atribuído implicitamente ao homem. Isto é, para o melhor e para o pior, era o homem que guiava a mulher. Ou, para me remeter a esse (meu) tempo, era o rapaz que conduzia a rapariga, competindo-lhe a ele marcar o ritmo, mostrar a versatilidade, o sentido de rotação da dança, a coreografia (que era, na verdade, paupérrima, pouco mais do que um ligeiro movimento corporal). Talvez lhe competisse a ele, na pureza dos anos 70, a tomar a iniciativa de uma maior aproximação dos corpos.

Estou em crer que a música slow (ou qualquer outra música em que o par dança agarrado) tem tendência para desaparecer, sobrevivendo nas verbenas, nas danças de salão e nalguns casamentos. A música slow, stricto sensu, caiu em desuso, porque me parece que também a música entre pares caiu em desuso. Hoje dança-se em grupo. 

O fim natural da música slow resolve um problema criado pela igualdade de género e, mais ainda, pelas novas teorias de identidade de género. Vejamos algumas situações:

1. Ainda é politicamente correcto entendermos que, ao dançar A Whiter Shade of Pale, cabe ao homem conduzir a mulher, ou vamos contra a igualdade de género? 

2. Se duas / dois homossexuais dançarem esta música, quem conduz quem? 

3. Se me acontecer estar dançar com uma pessoa do sexo feminino, mas que se identifica como sendo do género fluido, o que devo fazer? Perguntar primeiro e, nessa altura decidir se me atiro à pista, não vá ela entender ser um homem naquele momento?     

O fim do slow foi providencial. Já basta a crise da habitação, da dependência dos ecrãs, da virtualidade de tudo e da carga fiscal para atirar a civilização para um momento de crise. Não queremos, além disso, remeter a dança a dois - uma coisa tão interessante e tão fora de moda, infelizmente - para uma espécie de complicação adicional que suscite atritos entre pessoas que, no fundo no fundo, só queriam um contacto humano durante 4 minutos.

JdB 

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