25 junho 2025

Histórias dos dias que correm *

“Se a Vida são Dois Dias o que Raios me Acontece Quando Saio à Noite?”

Vítor Sertório tem 35 anos. É alto e magro debaixo de um longo cabelo encaracolado que lhe cobre as orelhas e grande parte da testa. Tem o nariz equilibrado a despontar entre dois olhos escuros e tristes, uma boca bem desenhada que revela, dizem-lhe, “uma sensualidade perturbante”. As maçãs do rosto salientam-se numa pele pouco mais do que imberbe.  Tem umas mãos finas e compridas, numa expectativa de pianista que não houve. 

Há nele um apego às rotinas: o banho quente e poupado, a escolha criteriosa da roupa, o pequeno almoço rápido num desinteresse de fastio repetido, o beijo ao que sobra da família, o afago na cabeça fugidia do gato. Sofre o caos do trânsito e a alegria radiofónica de gente que se identifica pela voz, como se fossemos todos cegos, tacteando com os ouvidos. Trabalha: repreende e é repreendido, manda e é mandado, motiva e qualquer coisa por aí. Retorna a casa no silêncio do fim de dia, porque cavalo que sente cocheira não carece de estímulo para lá regressar. Saúda o que sobra da família e bichana ao Eros, que foge para cantos onde só o espanador chega. Depenica um jantar porque há a estética, a roupa que não estica, um enjoo constante aos condimentos, um certo asco aos odores.

Na contabilidade de alegrias e frustrações, Vítor Sertório equilibra-se nas contas finais. Conhece vidas felizes plenas de viagens, carros novos, rostos sorridentes; identifica as muitas outras que deprimem e convidam ao desespero. Tem 35 anos, e quando olha em frente o sorriso não lhe esmorece na face.

À quinta e à sexta-feira sai pela noite, integrado num grupo que se movimenta ruidoso pela capital, gargalhando e soltando piropos provocatórios. Cantam, acenam, empurram-se, contam histórias brejeiras que fazem rir e corar. Nesses dois dias Vítor Sertório é Anabela: encheu um soutien de algodão, pintou os lábios de um vermelho que torna a sensualidade desesperante, tingiu de carmim umas maçãs do rosto que sobressaem imberbes. O cabelo que agora lhe destapa as orelhas de onde pendem brincos provocantes, e a elegância nos saltos altos, suscitam inveja e admiração.

Para Vítor Sertório, que também é Anabela (embora não se saiba quem nasceu primeiro) a vida são estes dois dias. Quando lhe perguntam o que faz quando sai à noite, denuncia uma possível timidez num trejeito feito de vida escondida e responde, afagando um brinco: “sonho com os próximos dois dias”.  

JdB

* publicado originalmente a 7 de Janeiro de 2014  


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