Atenhamo-nos numa parcela da estante de Marinela Muñoz Balducci, uma porteña de 67 anos, pernas finas e curtas, braços com tendência para o grosso, peito proeminente, olhos verdes e uma cara considerada de uma beleza rara e surpreendente. Digamos, ainda antes de nos fixarmos nos livros que são sua compra e sua herança, que à D. Marinela faz sentido vê-la de baixo a alto, porque se dá início à viagem com ligeiro desinteresse e se termina a mesma viagem com espanto.
Livros, então:
- Gymnopedies: há um Richard Strauss por trás de um Eric Satie?
- Música rock - um estudo comparado entre o movimento e o crime organizado;
- A ópera bufa: dos primórdios ao rap, sempre a descer;
- 100 librettos de óperas que tem de ler antes de morrer;
- Wagner - a intemporalidade de um homem para todas as ocasiões;
- A prevalência dos meios tons nas óperas alemãs, russa e italiana;
- Música clássica como auto-ajuda: uma visão holística e terapêutica.
Se uma estante fala mais de um indivíduo do que o seu cônjuge, de D. Marinela está tudo dito: é a ópera, a música clássica, o ódio ao rock e à modernidade e às atonias dos cantautores, o fascínio evidente - e algo maçador, porque imposto a quem a visita - pelo belcanto, pelos românticos, pelo minimalismo de Satie ou pela gravidade de Mussorgsky. Entre os livros há pequenos nadas, bibelots que confirmam, mas não se impõem: um postal de Bayreuth e de Salzburgo, uma dedicatória da Schwarzkopf, um busto de Beethoven em marfinite, uma fotografia com Jacqueline du Pré ou da sua récita no conservatório antes de uma variz, persistente e demolidora, a ter atirado para uma cama com vista de esguelha para o cemitério da Recolecta e, com isso, ter visto a cremação da sua própria carreira.
D. Marinela tem rotinas: de manhã são as óperas italianas, pela alegria; em dias de chuva e ventania conforta-se com os russos, cuja gravidade da voz lhe dá segurança e conforto perante a natureza em exibição. De tarde, nas tardes muito alegres, vai a um Lehar, não sem antes informar a empregada, uma índia da Bolívia que sorri numa vacuidade de dentes: é opereta, percebe a diferença? Nos dias certos de luto e saudade, corre os Requiem - ou música semelhante - por ordem alfabética: Berlioz, Brahms, onde se demora chorosa, Mahler, Mozart, durante o qual debica um alfajorre de maicena com os lábios espetados e os olhos a piscarem muito num ritmo de gula pecaminosa. Raramente, porque a arrogância é uma constante citadina não assumida, embora exibida, chama a boliviana e explica-lhe com acinte: está a escutar este Confuntatis? Notou a declinação latina? Sabe quem é o paráclito?
Às primeiras terças feiras do mês, qualquer que seja o clima, Marinela Muñoz Balducci sai de casa pela escuridão da noite, demorando-se na porta de entrada, perscrutando o horizonte silencioso de uma cidade que vai adormecendo. Apanha um táxi e o destino sai-lhe com um misto de tremor e convicção, porque em ambos os sentimentos não há incompatibilidade. Volta duas horas depois, chorosa e nostálgica, coxeando levemente porque a variz não lhe dá tréguas, muito pelo contrário. Olha para a estante: acerta o postal de Salzburgo com a esquadria da biografia de Mozart, ajeita o busto de Beethoven para que não tape a dedicatória da Schwartzkopf. Depois deita-se, rememorando tudo: os sons, os movimentos, o palco com a fotografia reconfortante ao fundo, a decoração do recinto e a memória do contacto com quem ainda sabe ensinar. Por fim, já de camisa de noite cor de rosa, muito abotoada e até aos pés, enrosca-se na cama abraçada à fotografia de Gardel e chora copiosamente, não porque a variz a incomode sobremaneira e a aula de tango e de milonga tenha sido exigente, mas porque o mestre já partiu, levando para o túmulo a sensualidade que a Lacrimosa não lhe dá. Reza uma avé-Maria sentida, lembra os seus mortos, as crianças que sofrem e os velhos abandonados e, antes ainda de adormecer, tem lucidez para cantar el dia que me quieras, sabendo que uma letra de música pode ser um prenúncio de desejo.
JdB
* publicado originalmente a 22 de Maio de 2017
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