LIMITES DO HUMOR NUMA SOCIEDADE BARALHADA
Significativamente, os alicerces dos regimes autoritários, mesmo sem chegar aos extremos dos totalitarismos, lidam mal com o humor, com a crítica lúcida e o efeito de distanciamento que lhe estão subjacentes. Cedo ou tarde, qualquer tiranete acaba por se desembaraçar dos autores das tiradas cómicas, começando pelas de ressonância política. Nesse sentido, o humor serve de termómetro ao estado de saúde de uma democracia. No seu drama «O Rei Lear», Shakespeare começou por retratar um soberano invulgarmente tolerante com o bobo da corte, bem depois de ter calado as demais vozes da corte. Mas o avançar da cegueira no poder acabou por votar também ao silêncio a voz incómoda do divertido jogral.
Na sátira do Rei Tigre, um Marajá foi avisado, em profecias, que a sua morte chegaria com o centésimo tigre que caçasse. Para retardar o seu fim, o Marajá avisou os tigres que a caça aos felinos adquirida uma conotação de protecção régia. A lenda indiana retrata o egocentrismo característico dos governantes e a escalada de alheamento da realidade, tudo sendo distorcido e adaptado aos interesses de quem manda. À medida que a percepção da vida se obnubila, cresce a megalomania e concomitante usurpação do poder, prestando-se a toda a sorte de alucinações, em nome da legítima defesa. Mal se sentem em risco (demasiado frequente nas ditaduras), o recurso à força apresenta-se-lhes como legítimo, pelo que dificilmente reconhecem excessos, resvalando para doses de violência desproporcionadas. Neste círculo vicioso, é comum embarcar-se na realidade paralela em que estes comportamentos desviantes colocam o sujeito. E, por azar, são muitos os governantes (mais ainda, em regimes despóticos) que acabam por se mover por razões pessoais, confundindo a sobrevivência e os interesses pessoais com os da sociedade que lhes caberia servir.
Chesterton realçou a importância vital do humor na vida, até pelo distanciamento necessário para discernir a realidade e uma auto-avaliação saudável. Na sua novela tragicómica «O Napoleão de Nottinghill» comentou que na origem da loucura está a perda do sentido de humor, sempre que alguém descola da vida e perde o pé: «Madmen are always serious; they go mad from lack of humour».
No âmago da questão joga-se a ligação à verdade que, uma vez ferida, favorece o avanço insidioso da tirania. O humor é simplesmente das formas mais incisivas e digeríveis de denúncia e de alerta, com notável capacidade de disseminação. Avisava George Orwell: «In a time of deceit – telling the truth is a revolucionary act. (…) If liberty means anything at all, it means the right to tell people what they do not want to hear.» Outro político, Bill Clinton, observava com acerto: «The road to tyranny, we must never forget, begins with the destruction of the truth».
Hoje, no Ocidente é indisfarçável e preocupante o boom de justicialismo que se tem instalado, sob a bandeira da justiça para todos. Habilmente, colou-se-lhe o negócio muito próspero dos escritórios de advogados, para alimentar uma indústria de casos e casinhos em tribunal. Acabando por legitimar o lápis azul, disfarçado de lei justa, tornou-se num modo sub-reptício de impor o discurso e o comportamento autorizados –– i.e., o famoso ‘politicamente correcto’. Em paralelo, cresce o vício de exigir indemnizações para quem melhor se vitimizar, desde que tenha músculo financeiro para a onerosa consultoria jurídica que este jogo exige.
Começámos por assistir ao crescer desta onda nas produções importadas de Hollywood. Entretanto, o surto de processos mediáticos envolvendo gente conhecida, fez chegar a onda ao lado de cá do Atlântico e espraiar-se neste jardim à beira-mar plantado. Bastou beliscar interesses de réus poderosos. De seguida, contagiou-se como fogo na pradaria por cidadãos menos famosos, mas suficientemente abonados. É ilustrativo o insólito pedido de indemnização à humorista Joana Marques pelo duo Anjos. Pouco importa o montante e a discutível qualidade da interpretação do hino nacional, entoado com especial liberalidade num encontro de motards. Diz tudo, o post divertido da comediante portuguesa, com excertos daquela interpretação, ter alcançado mais sucesso do que alguma das actuações do grupo. Segundo observava Rui Ramos, explicando de forma meridiana a falácia deste processo judicial: alguém imagina que a Joana Marques pudesse ter sabotado a carreira de Amália? Indo mais longe e exemplificando com lendas do rock: quem ficaria penalizado, se alguém gozasse com as actuações dos U2 ou de Bruce Springsteen ou de Tina Turner ou de Bob Dylan, etc. –– os músicos ou o/a comediante?... Sabemos quão ácido é o estilo humorístico de J.Marques, criticável e nem sempre apreciado por todos. Mas, ironicamente, a queixa bizarra dos Anjos em nada ajuda a balizá-la, tendo-a antes reforçado com uma onda solidária anti censuras, face à desproporcionalidade e à falta de cabimento do processo judicial que a visou.
Infelizmente, este caso português não é único e está longe de ser o pior. Quer nos EUA, quer no Brasil, comediantes de renome estão a ser silenciados. Na Terra de Veracruz, o processo está a ganhar proporções graves, com ameaça de prisão para um cómico que afronta o politicamente correcto, de modo discutível, por vezes roçando a rudeza e a falta de humanidade. Mas isso não justifica a pena de prisão.
Sabemos como o wokismo tem instituído a censura, já em níveis insanos nalguns temas, em especial nas ‘questões fracturantes’. Naturalmente, nunca ajuda o zelo e as vistas curtas da generalidade dos manuseadores do lápis azul de todos os tempos. Um bom retrato do grau de perseguição descabelado a que se chegou é traçado pelo sketch escrito por Bruno Nogueira (aqui, especialmente certeiro). Um grupo de bons comediantes portugueses dá corpo ao texto, destacando-se o excelente desempenho da actriz que protagoniza a Comissão definidora dos limites do humor (!), numa mistura explosiva de paternalismo, autoritarismo e doses cavalares de burocracia kafkiana, com boas pitadas de um subjectivismo cavernícola. Mau demais para o humor, mas bom demais para revelar o desnorteio de parte da sociedade, por azar, dos que pontificam e mais impactam no dia-a-dia de todos:
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