Faz hoje dois anos que recebi a mensagem, infelizmente já esperada, que me informava da morte do JdC. Terminava ali uma amizade próxima que se estendera por mais de 50 anos.
A minha amizade com o JdC - como acontecerá, aliás, com a generalidade das amizades - atravessou várias fases que se ligam, inevitavelmente, às várias fases da vida de cada um. Ser amigo de alguém aos 18 anos não é - ou pode não ser - o mesmo que ser amigo desse alguém aos 60. Somos afectados, não só pelas vicissitudes da vida, mas também por uma sensação de proximidade exclusiva que se vai esboroando. No entanto, apesar de todas estas inevitabilidades, mantive com o JdC uma amizade muito próxima seguramente até 2008, ano em que ele me recebeu no Zimbabwe.
Um dia destes, a conversar com alguém sobre um tema que me é caro, ouvia esta partilha: não tenho qualquer memória da cara do meu Pai. Já aqui escrevi sobre o que morre quando nos morre alguém. O que nos morre quando morre alguém cujo formato dos olhos, desenho da boca, implantação do nariz não perdura na lembrança dos que lhe foram próximos? É só uma questão de nitidez fotográfica que se vai esfumando, como um retrato demasiado exposto ao sol, ou é uma espécie de purga da alma?
Se o JdC tivesse morrido em 2008, o que teria morrido em mim? E o que morreu em mim pelo facto de ter morrido em 2023, quinze anos depois dessa minha breve mas impressiva estadia em África? Para muitos estas dúvidas não têm razão de ser, ou são meio patetas: lembrar uma pessoa é, na verdade, lembrar uma pessoa. Mas não é assim - melhor dizendo, não é sempre assim. Olho para a minha galeria de mortos: pais, irmão, filha, avó, sogros, cunhado, um ou outro amigo, familiares mais ou menos próximos. O que morreu em mim naquele minuto em que fecharam os olhos é, provavelmente, o que teria morrido em mim se tivessem fechado os olhos 15 anos depois. Com o JdC isso não acontece. Morreram em mim algumas coisas, mas morreu em mim, também, a memória de algumas coisas, ou de tempos que não voltariam, mesmo que ele tivesse vivido até aos 100.
Por estes dias sento-me a ler notícias, a ver telejornais, a programar viagens, a pensar na vida. Por vezes - talvez com muita frequência - lembro-me dele e da falta que me faz ou que me fez. Gostaria de ouvi-lo sobre a Ucrânia, sobre o conflito israelo-palestiniano, sobre o embaixador que está no Chile ou sobre uma ou outra preocupação mais prosaica. Era um homem bem informado, culto nos seus interesses, que discorria bem sobre os seus temas ou sobre alguns aspectos da vida.
Heráclito terá dito mais ou menos isto: Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem! Sendo isto verdade, talvez o seja, sobretudo, noutras áreas da vida onde algumas pessoas, todas voltadas para a memória e para o ritual, como eu, se confrontam com o fim das coisas, mesmo antes do fim das coisas. E alguma coisa do que foi não voltará, também porque já não somos os mesmos.
JdB
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