Diário de Amália, dia mundial da previsão meteorológica,
A menina do boletim meteorológico já tinha alertado, apontando, com um ar sabedor, as isóbaras e os anti-ciclones que se deslocavam no ecrã a uma velocidade perturbadora, enrolando-se sobre si próprios como um bichinho de conta; os jornais enchiam primeiras páginas com títulos a negrito e corpo de letra grande e ameaçador, entrevistando especialistas na matéria e reproduzindo artigos científicos publicados nas maiores universidades; os ministros da tutela afadigavam-se em conferências de imprensa a horas certas, revelando, com orgulho, a acção atempada do governo. O tom era grave, a voz séria, o semblante carregado.
Por todo o país – das grandes empresas à pequena indústria, dos impérios financeiros às lojas de bairro – a preocupação era una e inequívoca. Pela primeira vez desde o Euro de Scolari, a nação irmanava-se num desígnio colectivo, como se entre o Minho e o Algarve (considerando que Timor já pertencia a outro campeonato) se juntasse o povo todo no cais das colunas a soprar na direcção das velas que se enfunam.
De norte a sul, das Câmaras Municipais às paróquias, passando por seitas religiosas, ONG’s, instituições de solidariedade social, clubes desportivos, a linguagem era uma só, com uma gravidade inequívoca, abordando o tema que abria telejornais e provocava o encerramento tardio dos matutinos.
Por aqui e por ali, empreendedores perspicazes reuniam-se para explorar nichos de mercado, oportunidades de negócio, novos canais de distribuição. O país andava e repousava ao ritmo de uma informação forte, pesada, preocupante, tórrida:
Espera-se, nos próximos dias, uma vaga de calor invulgar, que obrigará a cuidados especiais em grupos de maior risco, nomeadamente a camada da população mais sensível e fragilizada, os velhos e as crianças.
Aqui, nesta fábrica da ilusão, o prenúncio de temperaturas raras e profundamente incomodativas também se fez sentir, porque o calor não só dilata os corpos, como preocupa as mentes. As meninas, estas operárias do prazer, deitaram-se mais amiúde aos banhos, como se a transpiração fosse consequência, também, daquilo que se imagina. Reforçou-se o stock de águas e de gelo, escreveram-se normas de execução permanente relativamente à higiene de uma actividade deste género, fizeram-se recomendações várias e precisas. De dentro do seu gabinete, numa labuta avaliadora dos potenciais efeitos da vaga de calor no negócio da Casa, a Dr.ª Clara gritou, num exercício de autoridade e previdência que não deixava margem para dúvidas:
- Amália! Chame-me a empresa do ar condicionado para uma revisão urgente da instalação.
O dia seguinte amanheceu quente, não augurando frescura pela tarde. Talvez já fosse a tal vaga a invadir o país, secando fontes e enchendo praias. A revisão dos aparelhos começou de manhã cedo, desalojando as meninas que se agitavam num frenesim enervado. A Dr.ª Clara distribuía ordens para a esquerda e para a direita, retirando-me do sossego da recepção e obrigando-me a coxear numa maratona dolorosa.
A menina do boletim meteorológico já tinha alertado, apontando, com um ar sabedor, as isóbaras e os anti-ciclones que se deslocavam no ecrã a uma velocidade perturbadora, enrolando-se sobre si próprios como um bichinho de conta; os jornais enchiam primeiras páginas com títulos a negrito e corpo de letra grande e ameaçador, entrevistando especialistas na matéria e reproduzindo artigos científicos publicados nas maiores universidades; os ministros da tutela afadigavam-se em conferências de imprensa a horas certas, revelando, com orgulho, a acção atempada do governo. O tom era grave, a voz séria, o semblante carregado.
Por todo o país – das grandes empresas à pequena indústria, dos impérios financeiros às lojas de bairro – a preocupação era una e inequívoca. Pela primeira vez desde o Euro de Scolari, a nação irmanava-se num desígnio colectivo, como se entre o Minho e o Algarve (considerando que Timor já pertencia a outro campeonato) se juntasse o povo todo no cais das colunas a soprar na direcção das velas que se enfunam.
De norte a sul, das Câmaras Municipais às paróquias, passando por seitas religiosas, ONG’s, instituições de solidariedade social, clubes desportivos, a linguagem era uma só, com uma gravidade inequívoca, abordando o tema que abria telejornais e provocava o encerramento tardio dos matutinos.
Por aqui e por ali, empreendedores perspicazes reuniam-se para explorar nichos de mercado, oportunidades de negócio, novos canais de distribuição. O país andava e repousava ao ritmo de uma informação forte, pesada, preocupante, tórrida:
Espera-se, nos próximos dias, uma vaga de calor invulgar, que obrigará a cuidados especiais em grupos de maior risco, nomeadamente a camada da população mais sensível e fragilizada, os velhos e as crianças.
Aqui, nesta fábrica da ilusão, o prenúncio de temperaturas raras e profundamente incomodativas também se fez sentir, porque o calor não só dilata os corpos, como preocupa as mentes. As meninas, estas operárias do prazer, deitaram-se mais amiúde aos banhos, como se a transpiração fosse consequência, também, daquilo que se imagina. Reforçou-se o stock de águas e de gelo, escreveram-se normas de execução permanente relativamente à higiene de uma actividade deste género, fizeram-se recomendações várias e precisas. De dentro do seu gabinete, numa labuta avaliadora dos potenciais efeitos da vaga de calor no negócio da Casa, a Dr.ª Clara gritou, num exercício de autoridade e previdência que não deixava margem para dúvidas:
- Amália! Chame-me a empresa do ar condicionado para uma revisão urgente da instalação.
O dia seguinte amanheceu quente, não augurando frescura pela tarde. Talvez já fosse a tal vaga a invadir o país, secando fontes e enchendo praias. A revisão dos aparelhos começou de manhã cedo, desalojando as meninas que se agitavam num frenesim enervado. A Dr.ª Clara distribuía ordens para a esquerda e para a direita, retirando-me do sossego da recepção e obrigando-me a coxear numa maratona dolorosa.
Quando cheguei ao fim do dia, exausta da cabeça e do corpo, olhei para a rua onde estava a carrinha da empresa de manutenção. Não consegui deixar de sorrir perante o anúncio que enfeitava a lateral da viatura. Numa associação mental excepcionalmente rápida para o cansaço em que me encontrava, fui à procura do técnico. Vi então um homem novo, invulgarmente bonito, com um corpo que faria inveja a qualquer atleta, e um cabelo impecavelmente penteado para o lado. Sorriu-me e despediu-se, estendendo-me uma mão forte, mas bem tratada. Olhei para o corredor que dava acesso aos quartos e tenho a certeza de ter visto algumas raparigas com um ar particularmente bem-disposto. Riam, cochichavam, empurravam-se umas às outras. Talvez fosse do calor, não sei.
Lá fora, a carrinha desaparecia numa curva, revelando, ainda, uma frase no mínimo curiosa – ou elucidativa.
Na ar condicionado Baptista, cada técnico é um artista
Cumpriu-se mais um dia.
MTS
1 comentário:
EHe, lá MTS! Essa dos sorriso das meninas é forte. Repare no plural. O Baptista deveria ser mesmo um artista. Vivó calor.
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