“Eu e Tu”, “Tu e Eu”.
O ser e acontecer de cada um é, do ponto de vista da relação com o outro, confrontado com distintas atitudes e posturas desse outro, cuja natureza e consequências julgo merecerem alguma reflexão.
Nas acções ou omissões do outro temos vários graus de intersecção e / ou comparticipação que formam um largo espectro que me proponho evidenciar. (Aplicável, como todo o texto que segue, desde a relação amorosa à familiar, incluindo a de amizade e as de mero conhecimento ou de índole profissional).
Percorramos, pois, um breve itinerário das atitudes distintas perante o “ser e acontecer “ do outro.
Instrumentalmente, ficciono esse itinerário como uma escada cujos degraus ascendem da indiferença à cumplicidade, que são os extremos do espectro considerado.
No primeiro degrau da ligação ao ser e acontecer do outro, temos a ignorância, a indiferença, o alheamento. É ser-se cego, surdo e mudo.
No segundo degrau, assume-se a postura de mirone. Espreitamos o que acontece, de relance, com um ânimo de olhar sem registar, sem querer recordar, recusando outro efeito em nós que não distrair, apenas como paisagem banal e irrelevante que vai desfilando na estrada que vamos percorrendo, e que se apaga pela sucessão da próxima curiosidade.
No terceiro degrau, consideramo-nos testemunhas. Presenciamos o desenrolar do outro, com observação, com atenção, com interesse em ver e registar. Não somos neutros perante o acontecimento, queremos percepcioná-lo e aplicamos as nossas faculdades cognitivas a essa aquisição de conhecimento. No final, sentimo-nos habilitados e autorizados a discorrer e contraditar sobre os factos sucedidos, legitimados pelo “trunfo” de termos fotografado o evento.
No quarto degrau, entramos no ser e acontecer de outrem como conhecedores. Neste patamar interagimos com o outro, porque acresce, à qualidade de testemunha, a disponibilidade, interesse, vivência do acesso e conhecimento concreto das motivações, causas, efeitos, circunstâncias que são inerentes ao sucedido. Aceitamos a partilha de todo o mundo subjacente ao evento material. Passamos aos bastidores da obra apresentada, acedendo a todas as vicissitudes ocultadas do público em geral. Quando falarmos, poderemos narrar, tanto o “quê”, como o “porquê” do evento.
No quinto degrau, a atitude passa a ser de comparticipação. Deixa, pois, de ser acrítica, como nos degraus anteriores. Neste patamar assumimo-nos como tolerantes. Acresce, relativamente ao quarto degrau, uma reacção nossa de aceitação, de admissão, de conformismo, com o ser e acontecer do outro. Passamos de um "non facere" para um “facere”, que importa uma reacção nossa perante a acção do outro, ou seja, além de conhecer o acto, facto ou omissão, conferimos-lhe a nossa bênção, o nosso acolhimento.
No sexto degrau, a nossa intervenção sobre o outro cresce de importância, passamos a apoiantes. Neste estádio, afirmamos a nossa adesão, concordância, beneplácito ao ser e acontecer do outro. Sustentamos o seu devir com toda a disponibilidade para ajudar, auxiliar, viabilizar, concorrer para o evento. “Fazemos figas” para o sucesso, lançamos os foguetes, e, muito importante, estamos igualmente irmanados para a eventualidade do fracasso, da derrota, do infortúnio que ocorra no final. Estamos, para o bem e para o mal, companheiros de caminho, solidários e indefectíveis.
No sétimo degrau somos mais interventivos. Agimos a nível prévio da acção do outro, somos instigadores. Incitamos, estimulamos, induzimos o outro a ser e acontecer de certa e específica forma, premeditada também por nós. Queremos que as coisas sejam assim, e intervimos para a resolução do outro que seja necessária. A decisão é também nossa e, consequentemente, a acção, porque intencionalmente o determinámos ou concorremos para essa determinação. O evento que aconteça neste quadro de instigação é da autoria dele, mas tem a marca indelével da nossa força motriz que o animou.
Por fim, no oitavo degrau somos cúmplices do outro. A cumplicidade é ser-se co-autor do sucedido, é ter-se tomada como própria a acção do outro, é a fusão de vontades e de execuções que tornam o evento numa amálgama em que é impossível distinguir, entre ambos, quem fez, porque fez e como fez.
Trata-se da unicidade de vontades e agires que anulam a distinção das individualidades que antes se destrinçavam. O que está feito não foi feito por ambos, mas feito por um ente que é a soma, melhor, a fusão dos dois.
A cumplicidade é a hábil transformação dos “laços” em “nós górdios”
A cumplicidade transforma egoísmos compatíveis em altruísmos abnegados.
A cumplicidade é, pois, a linha no horizonte que sucede no crepúsculo, e em que é impossível saber que parte da claridade vem do sol que nasce, e que parte vem da lua que adormece, ou vice-versa. É, pois, o abraço dos astros, que nem as estrelas deslindam, quanto mais os homens.
Temos assim identificados, pelo menos, oito degraus de acção e reacção, perante o ser e o acontecer do outro, todos eles enunciados pelo respectivo verso, quando podiam (deviam) também ter sido feitos pela referência ao respectivo inverso, o que só tornaria este texto inaceitavelmente longo, já que o contrário de cada degrau enunciado também é, evidentemente, uma opção e, pelo que a seguir direi, crítica e fundamental.
Conhecidos os degraus, reputo de fundamental para uma relação consciente, séria, construtiva, verdadeira, e com futuro, que cada um, em todas as ocasiões, em que o outro “é” e “acontece” lhe comunique, o faça interiorizar, consciencializar, sem dúvidas ou incertezas, qual é a acção / reacção com que conta e que lhe dá.
Sem erros nem equívocos, no nosso ser e agir todos temos o direito de saber com o que contamos do outro, se com o degrau um se com o dois o três… ou o oito.
É um dever de quem nos partilha e, na iminência do suceder a nossa opção e vivência, ou até nesse sucedimento, sabermos qual o papel (degrau) que o outro quer desempenhar nesse tempo, espaço e acontecimento, sem reservas, nem cautelas, com verdade, lealdade e coragem.
A tripulação de cada viagem conta-se à largada do navio.
É pois egoísmo, cobardia, má-fé, desamor e desinteresse por pessoas e projectos, não intimar o outro com a afirmação do degrau em que nos posicionamos à largada do navio: somos adeus no cais, visita de desembarque antes da partida, privilegiados com barco de apoio para fuga, passageiros de bilhete comprado e salvação assegurada, tripulantes, ou companheiros de campanha até ao fim, se for o caso.
Entenda-se aqui o direito / dever à oposição, que deve ser exercido no tempo e modo convenientes, com franqueza, firmeza, e fiabilidade. Dizer não, se é não. Quantos Alcácer -Quibir colectivos e pessoais teriam sido evitados…
Mas, e como corolário, se ousámos, livre e conscientemente, firmar-nos nos degraus mais elevados da comparticipação (quinto, sexto, sétimo, oitavo) então, em caso de borrasca e até de naufrágio, é pura indignidade abandonar o navio, como os ratos o fazem na iminência da desdita.
Tudo visto, numa relação temos o direito e o dever de nos posicionarmos no degrau que entendermos mais adequado, justo, possível, desejado, conveniente, e tudo o mais, numa perspectiva do interesse próprio, do interesse do outro e do interesse comum.
Mas, concluído esse posicionamento é de honra transmiti-lo.
E, de dever sagrado cumpri-lo.
O mais é desdenho e traição.
ATM
O ser e acontecer de cada um é, do ponto de vista da relação com o outro, confrontado com distintas atitudes e posturas desse outro, cuja natureza e consequências julgo merecerem alguma reflexão.
Nas acções ou omissões do outro temos vários graus de intersecção e / ou comparticipação que formam um largo espectro que me proponho evidenciar. (Aplicável, como todo o texto que segue, desde a relação amorosa à familiar, incluindo a de amizade e as de mero conhecimento ou de índole profissional).
Percorramos, pois, um breve itinerário das atitudes distintas perante o “ser e acontecer “ do outro.
Instrumentalmente, ficciono esse itinerário como uma escada cujos degraus ascendem da indiferença à cumplicidade, que são os extremos do espectro considerado.
No primeiro degrau da ligação ao ser e acontecer do outro, temos a ignorância, a indiferença, o alheamento. É ser-se cego, surdo e mudo.
No segundo degrau, assume-se a postura de mirone. Espreitamos o que acontece, de relance, com um ânimo de olhar sem registar, sem querer recordar, recusando outro efeito em nós que não distrair, apenas como paisagem banal e irrelevante que vai desfilando na estrada que vamos percorrendo, e que se apaga pela sucessão da próxima curiosidade.
No terceiro degrau, consideramo-nos testemunhas. Presenciamos o desenrolar do outro, com observação, com atenção, com interesse em ver e registar. Não somos neutros perante o acontecimento, queremos percepcioná-lo e aplicamos as nossas faculdades cognitivas a essa aquisição de conhecimento. No final, sentimo-nos habilitados e autorizados a discorrer e contraditar sobre os factos sucedidos, legitimados pelo “trunfo” de termos fotografado o evento.
No quarto degrau, entramos no ser e acontecer de outrem como conhecedores. Neste patamar interagimos com o outro, porque acresce, à qualidade de testemunha, a disponibilidade, interesse, vivência do acesso e conhecimento concreto das motivações, causas, efeitos, circunstâncias que são inerentes ao sucedido. Aceitamos a partilha de todo o mundo subjacente ao evento material. Passamos aos bastidores da obra apresentada, acedendo a todas as vicissitudes ocultadas do público em geral. Quando falarmos, poderemos narrar, tanto o “quê”, como o “porquê” do evento.
No quinto degrau, a atitude passa a ser de comparticipação. Deixa, pois, de ser acrítica, como nos degraus anteriores. Neste patamar assumimo-nos como tolerantes. Acresce, relativamente ao quarto degrau, uma reacção nossa de aceitação, de admissão, de conformismo, com o ser e acontecer do outro. Passamos de um "non facere" para um “facere”, que importa uma reacção nossa perante a acção do outro, ou seja, além de conhecer o acto, facto ou omissão, conferimos-lhe a nossa bênção, o nosso acolhimento.
No sexto degrau, a nossa intervenção sobre o outro cresce de importância, passamos a apoiantes. Neste estádio, afirmamos a nossa adesão, concordância, beneplácito ao ser e acontecer do outro. Sustentamos o seu devir com toda a disponibilidade para ajudar, auxiliar, viabilizar, concorrer para o evento. “Fazemos figas” para o sucesso, lançamos os foguetes, e, muito importante, estamos igualmente irmanados para a eventualidade do fracasso, da derrota, do infortúnio que ocorra no final. Estamos, para o bem e para o mal, companheiros de caminho, solidários e indefectíveis.
No sétimo degrau somos mais interventivos. Agimos a nível prévio da acção do outro, somos instigadores. Incitamos, estimulamos, induzimos o outro a ser e acontecer de certa e específica forma, premeditada também por nós. Queremos que as coisas sejam assim, e intervimos para a resolução do outro que seja necessária. A decisão é também nossa e, consequentemente, a acção, porque intencionalmente o determinámos ou concorremos para essa determinação. O evento que aconteça neste quadro de instigação é da autoria dele, mas tem a marca indelével da nossa força motriz que o animou.
Por fim, no oitavo degrau somos cúmplices do outro. A cumplicidade é ser-se co-autor do sucedido, é ter-se tomada como própria a acção do outro, é a fusão de vontades e de execuções que tornam o evento numa amálgama em que é impossível distinguir, entre ambos, quem fez, porque fez e como fez.
Trata-se da unicidade de vontades e agires que anulam a distinção das individualidades que antes se destrinçavam. O que está feito não foi feito por ambos, mas feito por um ente que é a soma, melhor, a fusão dos dois.
A cumplicidade é a hábil transformação dos “laços” em “nós górdios”
A cumplicidade transforma egoísmos compatíveis em altruísmos abnegados.
A cumplicidade é, pois, a linha no horizonte que sucede no crepúsculo, e em que é impossível saber que parte da claridade vem do sol que nasce, e que parte vem da lua que adormece, ou vice-versa. É, pois, o abraço dos astros, que nem as estrelas deslindam, quanto mais os homens.
Temos assim identificados, pelo menos, oito degraus de acção e reacção, perante o ser e o acontecer do outro, todos eles enunciados pelo respectivo verso, quando podiam (deviam) também ter sido feitos pela referência ao respectivo inverso, o que só tornaria este texto inaceitavelmente longo, já que o contrário de cada degrau enunciado também é, evidentemente, uma opção e, pelo que a seguir direi, crítica e fundamental.
Conhecidos os degraus, reputo de fundamental para uma relação consciente, séria, construtiva, verdadeira, e com futuro, que cada um, em todas as ocasiões, em que o outro “é” e “acontece” lhe comunique, o faça interiorizar, consciencializar, sem dúvidas ou incertezas, qual é a acção / reacção com que conta e que lhe dá.
Sem erros nem equívocos, no nosso ser e agir todos temos o direito de saber com o que contamos do outro, se com o degrau um se com o dois o três… ou o oito.
É um dever de quem nos partilha e, na iminência do suceder a nossa opção e vivência, ou até nesse sucedimento, sabermos qual o papel (degrau) que o outro quer desempenhar nesse tempo, espaço e acontecimento, sem reservas, nem cautelas, com verdade, lealdade e coragem.
A tripulação de cada viagem conta-se à largada do navio.
É pois egoísmo, cobardia, má-fé, desamor e desinteresse por pessoas e projectos, não intimar o outro com a afirmação do degrau em que nos posicionamos à largada do navio: somos adeus no cais, visita de desembarque antes da partida, privilegiados com barco de apoio para fuga, passageiros de bilhete comprado e salvação assegurada, tripulantes, ou companheiros de campanha até ao fim, se for o caso.
Entenda-se aqui o direito / dever à oposição, que deve ser exercido no tempo e modo convenientes, com franqueza, firmeza, e fiabilidade. Dizer não, se é não. Quantos Alcácer -Quibir colectivos e pessoais teriam sido evitados…
Mas, e como corolário, se ousámos, livre e conscientemente, firmar-nos nos degraus mais elevados da comparticipação (quinto, sexto, sétimo, oitavo) então, em caso de borrasca e até de naufrágio, é pura indignidade abandonar o navio, como os ratos o fazem na iminência da desdita.
Tudo visto, numa relação temos o direito e o dever de nos posicionarmos no degrau que entendermos mais adequado, justo, possível, desejado, conveniente, e tudo o mais, numa perspectiva do interesse próprio, do interesse do outro e do interesse comum.
Mas, concluído esse posicionamento é de honra transmiti-lo.
E, de dever sagrado cumpri-lo.
O mais é desdenho e traição.
ATM
4 comentários:
Bom dia ATM,
Devo dizer-lhe que a sua escrita tem um grau de excelência que ultrapassa a simples clareza que na malha das suas interrogações procura caminhos e certezas. É muito mais - é a de um homem bom e sério comprometido com a vida, com os outros, cujo rosto como já algures escrevi, se perfila sempre vigilante.
Obrigada por este momento.
Sublime. Fico sempre maravilhada perante as suas ideias, a forma como as desenvolve e, acima de tudo, a forma como as transpõe para o papel. Ao comentar o seu post, estou a interagir consigo aqui e agora, correcto ? Pelo que, deduzo, já subi ao 4ª degrau da sua escada :-)
p.s. tive de ir ver ao diccionário o significado de "górdio" !
"Step by step", assim se constroem relações e se alimentam afectos.
Delicioso percurso. Fantástica prosa.
moc
ATM,
Esta semanafalta-me inspiração para fazer um comentário, mas não queria deixar de fazê-lo.
Pois, este não deixa ninguém indiferente....
Até para a semana.
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