01 julho 2009

Largo da Boa - Hora


Fascinam-me os móveis contadores, com as suas dezenas de pequenas gavetas alinhadas simetricamente na frontaria, adivinhando mistérios e memórias guardados nesses sacrários.
A minha imaginação transporta-me para o interior de cada gaveta, que sei ao alcance de um gesto, cuja memória fechada posso desvendar num suave deslizar da cada uma, bisbilhotá-la, absorvê-la, e voltar a devolvê-la à quietude do silêncio, resguardo e perenidade pelo gesto inverso.
Este poder de abrir, conhecer, e, depois de saciado, devolver ao tempo o que por instantes detive, faz-me sentir amo da História.
A curiosidade em abrir cada uma das gavetas transtorna-me e envolve-me num frenesim compulsivo de percorrer todas e cada uma delas, na busca de encontrar tudo o que quero saber, conhecer ou rever.
Cada gaveta deste meu contador é uma lâmpada de Aladino que me basta afagar para libertar a vida que nela foi encerrada e adormecida até este dia de revisitação.
Este “meu” contador é um desvario no qual ficciono que cada gaveta contém os dados de cada etapa da minha vida, da minha história, dos meus passados e memórias, dos meus sucederes e aconteceres.
Como bom e sólido contador, este móvel que me "guarda" tem tantas gavetas quantos os tempos que a minha vida foi tendo ao longo daquilo que já passou.
Todavia, e ao contrário de um negligente baú, o contador "arquiva" cada tempo acontecido de forma sistemática, ordenada e cronológica, de modo que não se encontra uma amálgama indistinta e desordenada de informação, mas antes, em alinhamento perfeito e por gaveta, tudo quanto releva em cada ciclo vivido.
Abrir cada gaveta é, pois, mergulhar num tempo e num espaço bem delimitado e preenchido com aquilo a que cada fase do vivido corresponde, sem misturas com o antes e o depois dessa vivência.
Esta segregação, por gaveta, de cada fase da vida, não é mais do que um método certo de arquivo do passado, não "se pronuncia" sobre as causas dos eventos guardados e, muito menos, nega a evidente relação de continuidade, de causa efeito, que sempre sucede nos factos que, encadeando-se uns nos outros, são interdependentes, e que no seu conjunto formam a "vida" de cada um, como um único e complexo trajecto percorrido.
O contador e as suas gavetas encerram, de modo ordenado e estanque, ciclos, etapas. São arquivo, e não fonte de explicação dos porquês do que guardam, dos seus circunstancialismos, causas e efeitos. São "museu" e não "História".
Cada passo que damos é marcado pelo passo anterior que demos, e é influenciado por aquele outro que queremos dar. Todos têm de ser vistos em conjunto para avaliar a caminhada, mas cada passo é também, por si só, um instantâneo com vida própria que merece ser destacado, guardado e, sendo caso disso, revisto.
Voltemos, pois, às gavetas.
O primeiro espanto vai para o número de gavetas com que me confronto no "meu" contador. Não tinha ideia de ter vivido tantos ciclos, tantas etapas, tantas épocas susceptíveis de serem compartimentadas para efeitos de arquivo e revisitação.
Estou estupefacto, como seguramente qualquer um ficará quando olhar para o "seu" contador e vir as gavetas que a sua vida gerou.
Amores, amigos, locais, hábitos, pensamentos, convicções, ambições, desejos, interesses, ocupações, hobbies, coisas, casas, viagens, lazeres e actividades profissionais e culturais, entre tantos outros, dão lugar a tantas gavetas no contador, porque nasceram, viveram e desapareceram, formando, por isso, um ciclo específico susceptível de ser guardado numa gaveta própria como passado, vencido por novas vivências substitutivas ou modificativas.
As vidas cumulam variações radicais, a par, naturalmente, de constâncias e perpetuidades.
É espantoso o que ao longo de uma vida vai mudando, como se sucedem os epicentros da nossa existência, os focos da nossa concentração, os espaços e modos do nosso estar, as nossas inspirações e aspirações, as prioridades e urgências, as adaptações e aceitações ao que vai surgindo e o conformar com o que vai desaparecendo.
Em suma, o firmamento de cada um é povoado por muitas estrelas cadentes.
Não existe valoração negativa nesta modificação permanente, de que só nos consciencializamos olhando para o nosso contador e vendo as gavetas alinhadas que guardam cada fase.
A vida é mesmo assim: na aparente continuidade de um repetido quotidiano, vão-se imperceptivelmente tecendo as malhas de um novo destino, de um novo estar e ser, de modificações profundas que só a respectiva consumação e exercício as torna, então, perceptíveis e dominantes.
Mas o espanto não se esgota no número de gavetas; a maior surpresa é, na verdade, o conteúdo de cada gaveta.
De facto, quando de memória, por retrospectiva sensorial, revemos o ciclo contido em cada gaveta, surge-nos uma imagem, uma visão desses tempos e acontecimentos, que é completamente distorcida relativamente à "verdade" que está encerrada e que é libertada quando abrimos o espaço em que foi fechada.
A gaveta guarda o "filme" da realidade, e esse não é coincidente com a imagem recordatória que hoje temos.
As "coisas" não foram assim, não aconteceram do modo que as percepcionamos hoje.
As "coisas" foram como estão guardadas na gaveta que encerra a verdade, porque aí estão fixadas as circunstâncias de tempo, modo, lugar em que ocorreram, as causas e os efeitos, os estados de vida, de alma, os sentimentos e emoções vividos realmente.
Sem a gaveta, ou seja, de memória, distorcemos o passado, porque o observamos com os olhos do hoje, cedendo a parcialidades, conveniências, desejos, interesses, conformando esse passado a uma realidade histórica pretendida – hoje – e não coincidente com aquela que realmente foi e aconteceu.
Idealizamos o passado – convenientemente – exaltando o banal, menosprezando o excepcional, lembrando o acessório, esquecendo o principal, extremando ora o bem ora o mal, protagonizando quando fomos figurantes, secundarizando quando fomos decisivos, absolvendo culpados e condenando inocentes, relativizando o crucial e sublimando o indiferente, imputando à sorte ou má fortuna o que ao mérito ou demérito pertence, vendo direito no que foi dádiva, ou conquista no que foi graça, omitindo e esquecendo culpas e erros próprios, recordando e enfatizando os dos outros (reais ou imaginários), negando ou afirmando o contrário.
Em resumo, reescrevemos para sustentar e credibilizar o hoje que pretendemos, o que não é o mesmo que revisitar o passado como ele sucedeu.
Essa revisitação só é possível abrindo cada gaveta do "contador" de cada um. Por isso, aliás, é que ele se chama "contador".
Aqui chegados, concluo: há muitas vidas na vida de cada um, o passado que esteja e fique na gaveta de cada contador para revisitação objectiva, e não se use a traiçoeira e tendenciosa memória para justificar o presente, ou para limitar a esperança e confiança no futuro.

ATM

6 comentários:

atirana disse...

Que comparação tão bem feita!
Bem vindo! Já tinha saudades.

Anónimo disse...

Brilhante descrição das gavetas dos nossos "contadores" e da perspicácia necessária para as abrir, incondicionalmente.
Mais uma vez o meu aplauso.
moc

cris disse...

ATM,

Gostei. Todos temos os nossos "contadores", o seu é muito arrumado.
Eu pessoalmente, sou um pouco desarrumada, e tenho a eterna gaveta, onde vou arrumando tudo.
Quando tenho um ataque de arrumação, abro a tal ou tais gavetas, e, sento-me....
Vivo tanto e sinto tanto, que por vezes acaba o tempo da tal arrumação, porque, tenho um compromisso, e fica tudo na mesma...
Mas não interessa, vivi, isso sim é importante.
Até para a semana

Ana CC disse...

Boa ATM. Sabe qual é o problema do contador? Tem um número limitado de gavetas. Nós (não todos) analisamos, caracterizamos, comparamos e agrupamos, pessoas, vivências, experiências, alegrias, desgostos, and so on. Depois, como o contador tem um número limitado de gavetas, arrumamos as memórias por temas ou por etapas. O que acontece? Há informação importante que se dilui, outra que se contamina. É por isso que concordo consigo quando diz "e não se use a traiçoeira e tendenciosa memória para justificar o presente, ou para limitar a esperança e confiança no futuro."
Não sei se consigo, mas tento que o meu contador tenha um número infinito de gavetas.
Até para a semana.

maf disse...

E o cheiro, ATM ? Aquele cheiro caracteristico que surge, cada vez que se abre uma das gavetas ? (E aqui falo no contador como móvel real e não metafórico.) O contador faz parte da minha infância. Em local de destaque, lá estava ele " o contador indo-português ou indo-chinês ou indo-qq coisa" onde se guardavam os passaportes, as cartas da bisavó, as fotografias tipo passe, algum pingente que acidentalmente caía do lustre do tecto, o tinteiro de prata do Avô, a faca para abrir envelopes, etc.. etc... Sempre que me transporto à infância, encontro-me com o contador :-)
ATM, se me permite, é da minha vista ou V.Exa. anda a poupar nos sinónimos ? Será da crise ? rs

DaLheGas disse...

eu adorava enfiar-me debaixo do contador. e não me deixavam mexer nas gavetas :(( estúpidos! agora não gosto de arrumações

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