19 fevereiro 2018

Do globo reflector

M. C. Escher

Não sou muito dado a visitas guiadas, e essa característica já me garantiu graçolas ou críticas. As pessoas lêem o meu ar vagamente abstraído como desinteresse, mas não é. Acontece que a maior parte dos guias nos brinda com uma profusão de informações - datas, tendências, autores - que eu não consigo fixar. Nunca fui dado a pormenores, tenho dificuldades em fixá-los e, por isso, acho preferível olhar para um conjunto de obras e perceber uma atmosfera, uma mancha, uma impressão. Não fixo de quem é este ou aquele quadro, não decoro as datas. Apanho uma ideia geral - e não quero mais do que isso.

Vem este intróito a propósito do quadro acima, constante de uma exposição sobre M. C. Escher que recomendo fortemente, e que está patente no Museu de Arte Popular até fins de Maio, parece-me. Em frente a este quadro ouvi a explicação dada por um telefone que reproduzia o que teria dito o guia. Não me lembro do que disse, pelo que não sei se serei original no raciocínio que segue.

Do conjunto de dezenas de obras, esta foi uma das que mais apreciei, embora outras houvesse mais "criativas", nas quais não sabemos se as escadas sobem ou descem, porque parecem fazer o mesmo simultaneamente. Mas esta dá azo a um devaneio: o que vemos com os nossos olhos é inferior àquilo que vemos reflectido através dos olhos dos outros. Ou seja, o espelho reflecte o meu mundo, enquanto eu só vejo o espelho.

Não sei que explicação M. C. Escher deu a este quadro, e não fixo, distraído que sou nestas coisas, o que o guia disse através de um telefone moderno. Mas talvez a ideia principal seja a da necessidade de vermos o mundo através de uma imagem reflectida: a opinião do outro, a partilha do outro, a ideia do outro. Quando Escher olhou para o globo só viu o globo. Mas depois viu melhor, mais atento - talvez até tenha visto com os olhos que temos nos ouvidos, e não só no coração como diria uma certa raposa. E nesse minuto, com todos os sentidos atentos - apenas os sentidos que bebem no / do exterior, é certo - viu Escher, que é ver-se a si próprio, viu quadros, viu um conjunto de sofás e cadeiras. Os olhos do globo mostraram a Escher o mundo que era dele, enquanto Escher só via o globo.

Não somos nada sem outro; talvez não sejamos nada sem o outro, e cada um é livre de escolher esse outro significativo - o significant other, uma expressão adulterada pelo mundo moderno que lhe inclui parceiro, animal de companhia, cônjuge ou companheiro de sacramento. Olhar é ver dotado de alma; mas ver reflectido é discernir mais, porque é ver o nosso mundo todo, é ver o que está por trás de nós como se tivesse à nossa frente. M. C. Escher sabia o que fazia.

Onde está o meu globo?

JdB


1 comentário:

ACC disse...

Belíssima exposição e belíssimo texto. Talvez Escher tenha incluído na imagem apenas o que seria o seu mundo. O que seria para ele importante de um mundo onde não vive só ele. A esfera da nossa palma reflecte o que queremos ver e se tivermos alguém ao nosso lado para enumerar os objectos, talvez tenhamos surpresa, porque há uma cadeira com 5 pernas escondida por detrás de um sofá que só tem 3.

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