28 fevereiro 2018

Vai um gin do Peter's?

A ARMA QUE DESARMA A MÃE DE LUTO E EM FÚRIA JUSTICEIRA. ATÉ VALE ÓSCARES.

Com "TRÊS CARTAZES À BEIRA DA ESTRADA"(1), aterramos e já não saímos da América profunda, num lugarejo perdido do Missouri, rodeado de campo e bosques frondosos. Na povoação, os prédios baixos formam uma orla contínua de ruas amplas, ordenadas numa quadrícula simétrica por onde circulam jipes empoeirados e fords velhíssimos e agigantados. As bandeiras nacionais balançam ao vento, patrioticamente, cabendo a maior à super esquadra do sítio - repositório da ordem e da segurança. Respira-se alguma confiança. 

A parvónia pacata onde nada acontece…
Nos arredores, pululam as casas de madeiras em estilo pré-fabricado, com pequenas quintas imersas no arvoredo, no meio de nenhures. Percebe-se a tentação da arma, para legítima defesa, mas ao preço exorbitante da liberdade, que permite assistir a tenebrosos desvirtuamentos de um hábito antigo e perigoso.   

Um descampado atravessado por uma estrada vazia.

Ebbing - cenário do filme de Martin Donagh (candidato a Óscar) -- pertence à América rural e remota, mais próxima do faroeste do que de Manhattan. Trocando os carros pelos cavalos, pouco mais haveria a adaptar. Os cafés são sucedâneos dos saloons, em versão desengraçada; as lojas continuam a vender tudo o que faz falta; o espaço superabunda com uma escala agigantada nas casas, nos jardins, no estacionamento, etc. Acima de tudo, as pessoas sabem que podem fazer a diferença, pelo que se batem assertivamente por aquilo em que acreditam. .

Ebbing e esta comédia negra valem pelas pessoas, num despique de desfecho imprevisto.
Progressos tecnológicos à parte, talvez o maior avanço para se chegar ao faroeste actual tenha ocorrido no plano da justiça, com efeito directo no aumento da confiança comunitária, exigido por uma democracia participativa. Daí, adveio segurança, previsibilidade e maior igualdade de oportunidades no acesso e na aplicação da justiça. Vieram também ganhos para a economia, a saúde pública e a qualidade de vida. Longe ficou a figura do xerife de antanho, solitária e acossada na missão impossível de conter a lei da bala, quando pontificava o pistoleiro mais rápido e certeiro. Desse legado, ficou-lhes o voluntarismo e a tentação da justiça por mãos próprias, mas já contrariados por uma legislação e fiscalização robustas. Não por acaso, falamos da maior superpotência mundial (ainda), onde nem o ambiente provinciano de Ebbing escapou a um certo avanço das mentalidades, antevisto por Alexis de Tocqueville (1805-1859), mal desembarcou no novo país do outro lado do Atlântico.

Remontando ao ADN norte-americano: a consciência da individualidade e dos direitos vem da fundação da nacionalidade, prevalecendo o estilo reivindicativo de toque excessivo e até rude para o padrão europeu. Os sucessores dos cavaleiros solitários continuam a rondar, embora estejam mais balizados. No filme, as personagens são o expoente desse voluntarismo exacerbado, em especial a protagonista Mildred (interpretada eximiamente por Francis McDormand, candidata a Óscar e já muito premiada), cuja filha fora assassinada há um ano, enquanto o culpado tardava em ser identificado. Inaceitável para aquela impaciente mãe-guerreira.


Viciada em xeque-mates como se Ebbing fosse um mega tabuleiro de xadrez.
No argumento de Donagh, os múltiplos volte-faces começam bem ancorados nas mensagens telegráficas e sequenciais dos três cartazes encomendados por Mildred. Lembram a argúcia dos contos de Somerset Maugham, de enredo muito amadurecido e imprevisível, imune, quer aos simplismos, quer aos rendilhados espúrios de uma certa literatura feita de truques formalistas que camuflam a falta de reflexão profunda.

Uma sequência explosiva, numa via secundária, mais barata. Porém, deu tanto brado, que a estrada ganhou afluência e mediatismo.










Em "TRÊS CARTAZES…", o contexto humano é lúgubre e desleixado, o vestuário feio, as posturas quezilentas, a linguagem em vernáculo indigesto, acentuando a aspereza do dia-a-dia nos povoados periféricos. Mas não tenhamos ilusões de que aquele microcosmo de aspecto grotesco apenas escancara as feridas que as comunidades sofisticadas tão bem sabem esconder, arrastando-se na conhecida paz podre! Não será mais pernicioso um mal camuflado, menos fácil de diagnosticar e combater?

Os diálogos assumem um peso crucial (no tal linguajar cru), enquanto extensão natural do indivíduo que se comunica aos demais. Fluindo num argumento inteligente, as deixas estão recheadas de humor, embora muitas crivadas de sarcasmo. Domina uma combatividade agreste, de sabor amargo, num patamar de ferocidade próximo dos Coen.

Intencionalmente, é a miúda de pouca idade, parcos neurónios e nenhuma cultura que cita a frase mais sábia sobre a ilusão de lutar pela paz com as armas da guerra: a raiva só suscita mais raiva. Por ser tão burra, tem de aguentar a piada cómica, mas corrosiva, do pretendente-anão, que estranha o termo sofisticado da frase - "she said begets?" [suscita]. Uma situação duplamente caricata, que se aproveita dos limites óbvios da vítima, para depois desmontar os preconceitos e a pesporrência erudita dos que a atacam. O próprio gracejador fraquejava no papel de galã, destoando no restaurante caro. Aí, brilhava a ignorante de grandes olhos azuis.

Única vez em que a destemida Mildred estava visivelmente intimidada.
Em formato de comédia negra, expõe-se até ao tutano a massa frágil de que todos somos feitos, embora também haja amiúde ocasião para sublinhar os méritos únicos de cada um, nalgum momento.

O tipo de duplicidades irónicas - que se auto-vigiam e anulam - são recorrentes no filme, quer nas cenas de agressividade extrema, quer no erro assumido com coragem e no perdão logo oferecido com generosidade. É gente genuína e frontal, no melhor dos americanos, que interage abundantemente entre si e, por essa via, estimula no outro novas atitudes, mudanças. Ou não fossem os States a pátria onde não é suposto furtar-se a ir a jogo.

A mãe enlutada não se fica pelas lágrimas, quando urge fazer justiça. O polícia preconceituoso não assiste impávido às transgressões, esforçando-se por endireitar o mundo segundo o seu entendimento obnubilado pela fúria. O chefe da esquadra não pode deixar de responder aos ataques de que é alvo, ainda que de justeza discutível. E de que maneira reage, apesar de estar gravemente doente. Por junto, é transversal a toda a comunidade uma reactividade em cadeia, sem semelhança no padrão menos assumido do europeu da margem continental, onde a voz individual se atreve menos por falta de protecção e de transparência nas regras sociais. 

A grande jogada psicológica acabou por ser protagonizada por esse chefe da esquadra doente, visado nos cartazes. Desarmado, desarmou os mais arruaceiros de Ebbing. Bastou-lhe uma interpelação pessoal e muito amiga, que teve a sorte de ser reforçada pelo sucessor no cargo, a assumir a autoridade com o mesmo sentido de serviço público. Que exótico para este lado do Atlântico, uns agentes de autoridade mais pedagogos que fiscalizadores; mais paternais que punitivos!  No American way of life, o indivíduo antecede o distintivo que exibe. Sobretudo, se for mais graduado. Um general é convidado a elevar-se a herói para merecer em pleno as insígnias do cargo; o professor a corporizar a melhor combinação de entertainer e PT para merecer a atenção dos alunos.


Expectável, os dois zangados da vida acabarem por entrar em rota de colisão.
Sem estragar o suspense do filme: cabe ao primeiro chefe as mensagens incisivas dirigidas aos casos indomáveis  da comunidade, ambos de uma crueza a roçar o grotesco. Fiel à missão de paz, o xerife quis estendê-la para além da morte, aproveitando essa hora derradeira para aumentar o impacto de um gesto último.

Quem diria que os dois durões aceitariam abandonar os métodos mortíferos e anti-sociais para começar a cooperar construtivamente com os demais, abstendo-se de continuar a submetê-los a um julgamento impiedoso?

Quem diria que uma carta a recomendar "amor" [sic] no trabalho de detective encontraria eco num tipo virulento, precipitado e de ar primitivo? Até a falta de letras desaconselhariam recados escritos… Ou tê-lo-íamos subestimado?

O bom "xerife" era incansável a tentar demover uma e a conter outro. 
Quem diria que o alvo de determinada acusação truculenta se disporia a alimentá-la contra si, para amansar uma mãe cega pela dor? Empedernida e em rédea solta, tornara-se selvática aprisionada na própria espiral sanguinária.

O efeito pós-carta é surpreendente, pois os dois destinatários alteram o foco, o olhar, o comportamento. Percebemo-lo na maior abertura aos outros, largando as respostas ríspidas e cortantes. Vislumbra-se num arrependimento que pede perdão na hora de maior vulnerabilidade. Mas fica especialmente claro na viagem justiceira a outro Estado, quando colocam dúvidas sobre a melhor opção a tomar, eles que antes avançavam para a guerra, sem hesitar.

Era no terreno da Justiça que se digladiava a maior preocupação de ambos, pelo que enfrentavam ali o maior desafio para inovarem. No afã de exigirem uma Justiça em estado puro, acabavam por a descarnar do mais leve frémito de humanidade, comprometendo o fim maior por que algemavam. Esse erro fora bem diagnosticado pelo xerife. Não obstante, como fora possível instigar tamanha transfiguração? Primeiro, revestira-se de uma dose colossal de paciência para a árdua tarefa os perceber a fundo, até conseguir apanhá-los pelo lado positivo. Fora a pedra de toque para gizar ensinamentos tão personalizados, capazes de responder à ânsia principal que fervilhava descontroladamente num e noutro.

Outro encontro benigno, caído do céu, rasgou uma brecha no horizonte negro de Mildred, inundando-o de frescura e bondade. Junto aos cartazes, surgiu um gamo que se aproximou dela com uma naturalidade enternecedora. Comoveu-a até às lágrimas, tal presença suave e inocente, que não a evitava como os outros. Antes procurava a sua companhia. Um momento simbólico, que lhe relembrou uma harmonia maior, inalcançável através dos esforços humanos. Uma beleza incrível que reacordou nela um pouco de Esperança (disse-o), revelando também a medida curta dos seus estratagemas. 

Uma graça pacificante, que fez Mildred chorar como uma criança.
Mais gente seguiu as pisadas do animado Willoughby no esforço de acreditar nos dois casmurros, para lá das aparências. Espantaram, inclusive, quem está do lado de cá do ecrã. O caso mais paradigmático correspondeu ao segundo chefe da esquadra, que também pautava o trabalho pelo serviço ao próximo. Conhecia todos pelo nome. Dispensava a mesma atenção cuidada a cada um, acabando por afinar o olhar até conseguir ver para além da evidência palpável, dispondo ainda o coração a confiar acima do "admissível". Quantas vezes estes xerifes educativos tiveram a sabedoria de desvalorizar certas transgressões, quando não consideravam didático o castigo a aplicar? Assim aconteceu no ataque esparvoado às instalações da esquadra, ou na agressão ao dentista, percebendo bem quem os tinha perpetrado. Dois corajosos, que assim cumpriram a missão mais ousada de reabilitar os insurrectos. Uma modalidade de fé muito cívica e transfiguradora. Mesmo a propósito, na semana do Domingo da Transfiguração.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)

_____________
(1) FICHA TÉCNICA:
Título original: THREE BILLBOARDS OUTSIDE EBBING, MISSOURI  (candidado a Óscar)
Título traduzido em Portugal: TRÊS CARTAZES À BEIRA DA ESTRADA
Realização: Martin Mc Donagh (candidado a Óscar)
Argumento: Martin Mc Donagh
Produtor: Daniel Battseck
Banda Sonora Cartel Burwell
Duração: 115 min.
Ano: 2017
Países: EUA
Elenco: Francis McDormand (a temível Mildred Hayes; candidata a Óscar)
             Lucas Hedges (o filho de Mildred),
             Sam Rockwell (o polícia descontrolado; candidato a Óscar)
             Woody Harrelson (Willoughby, o chefe de polícia didático) 
              Clarck Peters (o novo chefe de esquadra), etc.
Local das filmagens:  EUA - Carolina do Norte: Sylva, Asheville, Black Mountain; Magie Valley.
Site oficial:           http://www.foxsearchlight.com/threebillboardsoutsideebbingmissouri/
Prémios:                   Baftas do Melhor Filme de 2018, da Melhor Actriz para McDormand e do Melhor Actor Secundário (Sam Rockwell, o outro zangado); arrecadou 4 dos principais Globos de Ouro (Melhor Filme, Melhor Argumento, Melhor Actriz e Melhor Actor Secundário); galardão máximo pelo desempenho (Outstanding Performance) atribuído pela associação de actores de Hollywood - o importante  "Screen Actors Guild Awards"; inúmeras nomeações para Óscares (só conhecidos no próximo Domingo)

OBSERVAÇÕES:
Nível de violência exacerbado e doses homéricas de calão.

TRAILER:





2 comentários:

Anónimo disse...

Como 'marca da casa': Muito Bom!
De Nome de Família obliterado pelo nossos reis (são os Câmara, há séculos) Maria, felicito-a.
eo

Anónimo disse...


Très humblement,

gostei muito, obrigada.




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