01 fevereiro 2023

Vai um gin do Peter’s ?

 MONSTROS OU HERÓIS - O QUE TRANSFORMA CIDADÃOS COMUNS? 

Com a autoridade de ser judeu e de ter sido o Procurador Chefe no Tribunal de Nuremberga, onde altos responsáveis nazis foram julgados, Benjamin Ferencz não hesitou em identificar o fenómeno que, a seu ver, mais transfigura os seres humanos, podendo levá-los às maiores bestialidades: a guerra. Naturalmente, que um período especialmente ilustrativo da horrenda desfiguração humana foi a Segunda Guerra Mundial. «Law, not war» era uma das recomendações deste advogado-escritor-pensador lúcido e bondoso, que teve a coragem de não diabolizar nenhum povo nem nenhuma geração, percebendo quanto a maldade e a bondade são opções ao alcance de cada ser humano. Daí a abordagem invulgarmente isenta e discernida com que reflecte sobre as causas do Holocausto. Entre os muitos testemunhos deixados (https://benferencz.org/), segue o da entrevista dada à CBS, aos 97 anos de idade: 

«HOW COULD ORDINARY MEN BE CAPABLE OF SUCH EVIL? 
THE LAST NAZI PROSECUTOR HAS THE ANSWER

In an interview with the last living Nuremberg prosecutor, 97-year-old Ben Ferencz (BF), Sixty Minutes’ Leslie Stahl (LS) asked him a question that gets to the heart of what is so unfathomable about the Holocaust. Ferencz was the chief prosecutor for the U.S. Army at the Einsatzgruppen trial, one of the 12 war crimes trials held in Nuremberg, Germany, after the end of World War II. He helped prove the guilt of a group of German SS officers accused of participating in mobile death squads in which over a million men, women and children were shot dead in their own towns and villages across Eastern Europe.

LS - How could ordinary people commit such extraordinary evil? Did you meet a lot of people who perpetrated war crimes who would otherwise in your opinion have been just a normal, upstanding citizen?
BF - Of course, is my answer. These men would never have been murderers had it not been for the war. These were people who could quote Goethe, who loved Wagner, who were polite (even these men who had committed these horrible atrocities – who had shot down more than a million innocent people – were normal, ordinary men)  

LS - What turns a man into a savage beast like that?
BF - He’s not a savage. He’s an intelligent, patriotic human being. 

LS - He’s a savage when he does the murder though. 
BF - No. He’s a patriotic human being acting in the interest of his country, in his mind. 

LS - You don’t think they turn into savages even for the act? 
BF - Do you think the man who dropped the nuclear bomb on Hiroshima was a savage? Now I will tell you something very profound, which I have learned after many years. War makes murderers out of otherwise decent people. All wars, and all decent people.» 

Ferencz em 2017, fotografado por Robin Utrech, da AFP.

Exemplos de bestialidades na Guerra de 1939-45 são incontáveis. Basta lembrar as atrocidades cometidas por muitos (quase todos os) nazis e combatentes japoneses, mas igualmente por alguns aliados, quando deixaram um rasto de barbárie escusada. Foi o caso do avanço do Exército Vermelho sobre Berlim, saqueando, violando e matando civis indefesos e inocentes, no seu percurso até ao coração do Reich.

Ferencz não disse, mas a guerra também produz o oposto, quando instiga bravura e heroísmo em graus épicos. Poderão ser casos mais raros e com certeza mais discretos, quase sempre a fluir no anonimato. Mas nem por isso merecem menos destaque do que a perversão à solta. Foi o caso de uma família polaca pobre, do povoado de Markowa – os Ulm, com 7 filhos (o mais novo ainda na barriga da mãe) – assassinada pelas SS, em Março de 1944, por se ter atrevido a dar guarida a uma família judia, apesar de estar ciente do risco que corria e das dificuldades financeiras que tinham. A generosidade dos Ulm, até ao martírio, foi reconhecida e homenageada pelo Vaticano como acto heróico de autêntica santidade. Por isso, numa decisão histórica, toda a família, incluindo o bebé por nascer (inédito!), foi beatificada. A nota publicada pelo Dicastério para a Causa dos Santos, em Dezembro de 2022, indica o motivo (na tradução disponível, em inglês): «Venerable Servants of God Jozef and Wiktoria Ulm and their seven children († March 24, 1944). A married lay couple with seven children, murdered out of hatred of their faith on March 24, 1944, who, although aware of the risks and financial difficulties, hid a Jewish family in their house for a year and a half. When discovered, they were all murdered, including the child in Victoria’s womb.» 

Quatro das crianças Ulm.

Os pais Jozef e Wiktoria e os seus 7 filhos: Stanisława de 7 anos, Barbara de 6, Władysław de 5, Franciszek de 4, Antoni de 2, Maria de 1 e o bebé ainda na barriga da mãe grávida de 8 meses.

Continuamos a acompanhar, em directo, uma guerra selvática em solo europeu, causada por uma invasão ilegal, injusta e incrivelmente violenta, que permanece indiferente à mortandade do povo ucraniano, mas também da juventude russa, para além da devastação material e do deslocamento forçado de milhões de ucranianos. Quando este pesadelo terminar, haverá mais distanciamento para se analisarem as atrocidades cometidas, a par dos gestos heróicos que coabitaram com a maldade mais grotesca. 

Possa a guerra na e contra a Ucrânia – felizmente no foco dos media – servir de lembrete ao horror hoje perpetrado noutras geografias mais esquecidas e remotas, como na Síria, na Etiópia, em Cabo Delgado no Norte de Moçambique, na Nigéria, etc. No fundo, dói que continue a ser ignorado o alerta lapidar e sábio de Ferencz sobre a distorção humana (talvez para a maioria) que a guerra favorece.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

1 comentário:

Anónimo disse...

Trazer esta realidade para a nossa memória é meritório merecendo laudes.
Misturar realidade com ignomínias politiqueiras, não é.

cumprimenta

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