30 agosto 2021

Das semelhanças entre quem é diferente

Tudo se joga no coração dos Homens.

***

Tenho o privilégio sociológico de ter uma actividade voluntária muito internacional, isto é, interajo com pessoas de muitos países. No board da associação na qual sou presidente há um sul-africano, um zimbabweano, uma espanhola e uma chilena, uma canadiana e uma australiana, um neozelandês e um malaio. Fora isso, trabalho muito frequentemente com uma filipina, uma austríaca e um chinês de Hong-Kong. Nos últimos meses interagi muito com gente dos Estados Unidos da América e do Canadá.

Por motivos que não veem ao caso e que seria fastidioso explicar, estamos todos envolvidos numa discussão muito complicada, com tiques de agressividade e de exigências desproporcionadas de uma das partes. A outra parte, que é a minha, junta-se à volta de uma mesa virtual e toma decisões, discute motivações e comportamentos. Há um grupo mais pequeno que discute estrategicamente o que deverão ser os passos seguintes, que tenta ver um pouco além do desfocado e da espuma do imediatismo. Somos, ambos os fóruns, uma espécie de Nações Unidas, com representações de uma dúzia de países.  

Aprendemos que somos o que somos e a nossa circunstância ou que somos fruto da genética e do meio ambiente. Ora, um dias destes, na sequência de mais uma ronda de conversas por causa do problema referido acima, dei por mim a pensar: se eu tapasse os olhos, se todos falássemos uma língua comum sem sotaque, não conseguiria identificar a proveniência de cada um dos intervenientes, isto é, não saberia dizer quem é espanhol ou malaio, quem é filipino ou africano. Ou seja, na forma de reagir somos, acima de tudo seres humanos: a chilena é igual ao malaio, eu sou igual ao homem do Zimbabwe, não há diferença entre a austríaca e a filipina. O que nos distingue? De uma forma simplista, o feitio de cada um: há quem seja mais diplomático, mais racional, mais impulsivo, mais reservado ou com horror ao conflito.

Quando comecei nestas lides ouvia muito: atenção que ele é chinês, ou percebe-se logo que é americano ou ainda é natural, são africanos... Acima de tudo somos seres humanos, com desejos de sermos amados, com necessidades de poder ou de auto-estima, com uma obsessão para que tudo seja feito de acordo com as regras. Talvez as nacionalidades se identifiquem melhor na forma de reagir, dizem-me, isto é, um americano reagirá como reage a bélica América, que se sente dona do mundo. Nem nisso estou certo. E talvez tenha percebi isto: no fundo no fundo, somos todos muito mais parecidos do que possa imaginar-se.      

Ouvi a frase que encima este texto ontem, na homília da missa em que participei. Se tudo se joga na coração dos Homens, então tanto faz de onde vimos, porque o importante é o que temos dentro de nós. E isso, de alguma forma, é independente da nossa nacionalidade, porque gente boa há em todos os cantos do mundo.

JdB

29 agosto 2021

XXII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 7,1-8.14-15.21-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
reuniu-se à volta de Jesus
um grupo de fariseus e alguns escribas
que tinham vindo de Jerusalém.
Viram que alguns dos discípulos de Jesus
comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.
– Na verdade, os fariseus e os judeus em geral
não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos,
conforme a tradição dos antigos.
Ao voltarem da praça pública,
não comem sem antes se terem lavado.
E seguem muitos outros costumes
a que se prenderam por tradição,
como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –.
Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:
«Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos,
e comem sem lavar as mãos?»
Jesus respondeu-lhes:
«Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas,
como está escrito:
'Este povo honra-Me com os lábios,
mas o seu coração está longe de Mim.
É vão o culto que Me prestam,
e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos'.
Vós deixais de lado o mandamento de Deus,
para vos prenderdes à tradição dos homens».
Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão
e começou a dizer-lhe:
«Ouvi-Me e procurai compreender.
Não há nada fora do homem
que ao entrar nele o possa tornar impuro.
O que sai do homem é que o torna impuro;
porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:
imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, cobiças, injustiças,
fraudes, devassidão, inveja,
difamação, orgulho, insensatez.
Todos estes vícios saem lá de dentro
e tornam o homem impuro».

26 agosto 2021

De Harare para Chiredzi (publicado hoje, mas há 13 anos)

Explicar o caminho de Harare para o nosso destino, neste caso a 450km, não é, em termos de orientação, como informar as estadas a seguir quando se vai de Lisboa para Santarém. A nossa capital tem duas saídas principais – para Norte e para o Sul -, mas não passaria pela cabeça de ninguém instruir o viajante da seguinte forma: - sobes a Fontes Pereira de Melo, continuas pela Avenida da República, apanhas a Estados Unidos da América e, chegando ao fim, viras à esquerda para subir a Gago Coutinho. Fruto, seguramente, da organização da cidade em termos de saídas, o facto é que abandonar Harare passa por uma explicação semelhante. Posso afirmar a tendência, porque é a segunda vez que comprovo. Ir da capital do Zimbabué até a Chiredzi, a terra mais próxima do Nduna Safari Lodge, é conhecer várias Áfricas: - a África de que nos apercebemos em Harare, e que já descrevi por duas ou três vezes; - a África dos subúrbios: Chitungwiza, por exemplo, uma espécie de margem sul semi-industrializada, com dezenas e dezenas de pessoas nas ruas, nas estradas, pedindo boleias, apanhando camionetas, migrando para aqui e para ali naquilo que me parece, ignorantemente, uma diáspora desorganizada, caótica, sem destino definido.
- a África das pequenas cidades rurais, construídas em cima de duas ou três ruas, se tanto, um ou dois pequenos estabelecimentos comerciais com ar decadente e, na generalidade, fechados; nalgumas terras maiores, um posto de polícia pode conferir ao lugarejo uma maior importância. - por último, mas não menos relevante (com maior intensidade à medida que caminhamos para sul), a maior predominância da África profunda e tribal, onde as casas, tal como nós as concebemos, mesmo que pobres, são substituídas por aglomerados de cubatas, e as regras de convivência e de organização se modernizam à velocidade das coisas quase imóveis.

São cerca de 4,5 horas de um caminho que se faz num instante, no entretenimento de uma paisagem que é sempre fascinante, sempre diversa, nunca monótona: o capim, mais alto aqui e ali, bordejando uma estrada que serpenteia muito suavemente; os tons de verde e castanho, que predominam nos nossos olhos, salpicados por manchas de um acobreado escuro; um ar que cheira permanentemente a seco, porque a época das chuvas é de Novembro a Março ou Abril; numa determinada zona da jornada, macacos aos bandos, saltando, vendo os carros que passam, subindo às árvores, comendo mansamente no meio do capim. Por último, mas não menos importante, o espaço – essa coisa imensa, infinda, inalcançável. Sempre tive algumas dúvidas – que se baseiam na estética do olhar, mais no que na evidência da certeza - que a terra fosse verdadeiramente redonda, ainda que achatada nos pólos. Aqui, como no Alentejo (numa ínfima parte quando comparado com a realidade que vivo), o que deixa de se ver não pode estar relacionado com a esfericidade do globo terrestre, mas com a limitação da visão humana. Com efeito, que bom seria vermos a África toda de uma vez só, do Atlântico ao Índico, apercebendo-nos da savana, do mato, da organização das populações, da proximidade do animal selvagem.

Não há palavras, seguramente as minhas, para descrever o que é a beleza sufocante e exaltante de um espaço sem limites, nalguns casos de uma planura que parece tirada a regra e esquadro, noutros com uma elevação suave e pouca; árvores surpreendentes que se erguem do meio do nada, como se tudo não fosse mais do que a natureza a proteger-nos do hipnotismo do lugar. Sou um turista essencialmente urbano, atraído pelas casas, igrejas, palácios, ruas movimentadas, praças povoadas de gente que se senta e levanta, conversa, ri, cumprimenta quem está ao lado e sobre as quais posso inventar histórias. Encontro facilmente beleza no equilíbrio arquitectónico de Praga, na estética organizada de Paris, na esquadria do arranha-céus em Nova Iorque. Aqui tudo parece ser desorganizado, espontâneo e isento, quase sempre, da mão artificial do homem. E, no entanto, há um extraordinário equilíbrio do todo face ao possível desarranjo das partes. Talvez aqui, como noutras partes do mundo, o encanto não esteja no detalhe. Nesta África rural e profunda, parece-me, a maravilha está naquilo que os nossos olhos abarcam globalmente, e que tem de ser visto dessa forma. O campo nem sempre está arranjado, ordenado, emparcelado, fruto da desordem política ou da cultura local. Mas, o que se vislumbra aos nossos olhos, é a imensidão – e essa nem sempre carece de uma grandeza organizada. O relógio rondava a uma da tarde quando chegámos ao Nduna Safari Lodge. O resto da descrição fica para amanhã, para que o repouso dos sentidos e a contemplação do espaço infinito não sejam perturbados. Nada me daria maior satisfação do que provocar saudades nos que por cá passaram, e curiosidade nos que olham África com desconfiança.

Adeus, até ao meu regresso...

24 agosto 2021

De como se conhece cá olhando de lá

 


Há uns anos escrevi para um exercício académico:

O emigrante, o turista, o peregrino ou o exilado fazem tudo para se sentirem em casa: o festejo da passagem do ano pelo fuso português, a colocação de artesanato alegórico barcelense nas varandas dos países da emigração, os estabelecimentos da restauração com as bicas e os pastéis de nata; mas também o acto de ir pelos campos aprendendo com os pés, ou, olhando para a paisagem envolvente, vislumbrar a sua casa.

“O facto de ter passado em Porto Rico as minhas primeiras semanas de Estados Unidos fará com que, daí por diante, eu encontra a América em Espanha. Assim como o fato de ter visitado muitos anos mais tarde, a primeira universidade inglesa no ‘campus’ de edifícios góticos de Dacca, no Bengala oriental, leva-me agora a considerar Oxford como uma Índia que tivesse conseguido controlar a lama, o mofo e os excessos da vegetação.”. 

Neste trecho do livro de Lévi-Strauss [Tristes Trópicos] está uma primeira ideia que concorre, ainda que de forma difusa, para este conceito de viagem como procura do regresso. De facto, nem sempre é aqui que percebemos aqui, por vezes é ali que percebemos aqui. Ainda que inconscientemente, o antropólogo afastou-se de um local para perceber esse local, tal como Naipaul fizera em Wiltshire em relação a Trindade. No entanto, de forma mais consciente, foi no interior da selva amazónica que Lévi-Strauss recordou Chopin, e foi no interior da selva amazónica que o Opus 10 se tornou no lugar geométrico da casa (no sentido lato, de espaço de refúgio e de memória) de onde ele havia partido anos antes.

Este youtube de Marisa Silva Rocha deve ver-se sem som. Marisa é emigrante nos Estados Unidos da América e gosta de fado. A sua incursão pela canção nacional faz-se através de Alfama (o fado, não o bairro). Se ouvirmos a sua interpretação focamo-nos na sua interpretação, porque para algumas pessoas ela (a interpretação) pode ser dominante, como o cravinho num fiambre que se leva ao forno. O youtube de Marisa deve ver-se e, se possível, sem Marisa, dado que ela também é dominante. O que interessa, o que me leva ao devaneio é o sítio onde ela canta, o símbolo que tem nas costas do blusão, o brasão do púlpito de onde modula a voz, os locais por onde passa e as pessoas que cumprimenta.

Lévi-Struass encontrou a América em Espanha, Naipaul encontrou Trindade no Wiltshire. Marisa Silva Rocha encontrou Portugal no fado, na padaria, na Nossa Senhora costurada na ganga, nas armas de Portugal gravadas num pedaço de madeira de onde um padre emigrante perora sobre as parábolas. Eu próprio fiquei imbuído desse espírito - em locais de forte emigração portuguesa, como seja Toronto, no Canadá, privilegiei o Little Portugal, a bica e o pastel de nata, o bacalhau lá, mas à moda de cá.

Podemos sair de Portugal mas Portugal não sai de nós. Talvez não se veja tão bem Portugal como em Toronto - ou na terra de Marisa Silva Rocha.

JdB

21 agosto 2021

XXI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Jo 6,60-69

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
muitos discípulos, ao ouvirem Jesus, disseram:
«Estas palavras são duras.
Quem pode escutá-las?»
Jesus, conhecendo interiormente
que os discípulos murmuravam por causa disso,
perguntou-lhes:
«Isto escandaliza-vos?
E se virdes o Filho do homem
subir para onde estava anteriormente?
O espírito é que dá vida,
a carne não serve de nada.
As palavras que Eu vos disse são espírito e vida.
Mas, entre vós, há alguns que não acreditam».
Na verdade, Jesus bem sabia, desde o início,
quais eram os que não acreditavam
e quem era aquele que O havia de entregar.
E acrescentou:
«Por isso é que vos disse:
Ninguém pode vir a Mim,
se não lhe for concedido por meu Pai».
A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se
e já não andavam com Ele.
Jesus disse aos Doze:
«Também vós quereis ir embora?»
Respondeu-Lhe Simão Pedro:
«Para quem iremos, Senhor?
Tu tens palavras de vida eterna.
Nós acreditamos
e sabemos que Tu és o Santo de Deus».

20 agosto 2021

Música e texto dos dias que correm

 


Primeira página de "Quando os lobos uivam" (Aquilino Ribeiro)
que retratam o regresso a casa de Manuel Louvadeus


19 agosto 2021

Poemas dos dias que correm

Os Homens Gloriosos

Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam.
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.

Pois era um clamor de espadas bravias,
de espadas enlouquecidas e sem relâmpagos,
ah, sem relâmpagos...
pegajosas de lodo e sangue denso.

Como ficaram meus dias, e as flores claras que pensava!
Nuvens brandas, construindo mundos,
como se apagaram de repente!

Ah, o clamor dos homens gloriosos
atravessando ebriamente os mapas!

Antes o murmúrio da dor, esse murmúrio triste e simples
de lágrima interminável, com sua centelha ardente e eterna.

Senhor da Vida, leva-me para longe!
Quero retroceder aos aléns de mim mesma!
Converter-me em animal tranquilo,
em planta incomunicável,
em pedra sem respiração.

Quebra-me no giro dos ventos e das águas!
Reduze-me ao pó que fui!
Reduze a pó minha memória!

Reduze a pó
a memória dos homens, escutada e vivida...

Cecília Meireles, in 'Mar Absoluto'

18 agosto 2021

Vai um gin do Peter’s ?

O MELHOR  PT  DOS  J.O. NO JAPÃO E BÊNÇÃO MUSICAL

De 23 de Julho a 8 de Agosto, os ecrãs de televisão viraram-se para Tóquio, onde decorriam uns Jogos Olímpicos insólitos. Até a data exibida no logo oficial – 2020 – não condizia com a do calendário: 2021!  Os estádios gigantescos estiveram quase sem público e os atletas foram submetidos a mil protocolos de segurança, à conta do medo de contágio da covid19. Assim, a onda festiva típica dos Jogos Olímpicos ficou parcialmente submergida pela pressão asséptica destes tempos estranhos. 

Em contraponto ao colete de forças sanitário reinante, um velhinho japonês fez questão de transmitir uma mensagem positiva aos atletas, sobretudo aos que falhavam o ambicionadíssimo pódio. Num ápice, a sua mensagem foi postada nas redes sociais pelos próprios atletas, que transformaram o bondoso ancião na estrela mediática das bizarras Olimpíadas japonesas. Através da net, o seu gesto de esperança percorreu o mundo em velocidade recorde. 

Todas as manhãs, ao raiar do dia, aquele senhor plantava-se à entrada da aldeia olímpica com um cartaz fantástico, ali permanecendo por horas, para apanhar os vários turnos da movimentação matinal. A maior originalidade estava no foco da mensagem, que valorizava os proscritos do mundo da alta competição, normalmente votados ao fracasso e ao esquecimento.  Não seria fácil, os perdedores encontrarem melhor personal trainer para os apoiar no momento mais difícil da sua carreira: o ‘day after’ a falharem as medalhas. 

Enquanto isto, outra combinação improvável pôs um padre indiano de ascendência portuguesa e radicado na capital austríaca, a entoar «Blessing» numa interpretação tranquila e aconchegante da ária do grupo irlandês The Electrics’, lançada em 1997. A interpretação intensa daquele franciscano ganhou força de oração, reverberando pela abóboda imensa da Igreja de S. Francisco, em Viena:

Como explica o frade de apelido português – Sandesh Manuel, a intenção era mesmo abençoar todas as pessoas de boa vontade: «I think mankind needs something to hold on and spirituality offers that. Music makes it the easiest. We all as humans require blessing, blessing from our elders, well-wishers etc. Through this song I want to send blessings to one and all

É inesgotável a imaginação das pessoas bondosas, capazes de desencantar formas inventivas de chegar aos seus semelhantes, mesmo que em contraciclo. São verdadeiros pontos de luz no meio das trevas, para as amansar e tornar alegres. Gente assim convinha ser muito, muitíssimo contagiosa.  

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


17 agosto 2021

Textos dos dias que correm

 

As Minhas Fraquezas

Há uma certa fraqueza, uma falha em mim que é suficientemente clara e distinta mas difícil de descrever: é uma mistura de timidez, reserva, verbosidade, tibieza; pretendo com isto caracterizar qualquer coisa de específico, um grupo de fraquezas que sob um certo aspecto constituem uma única fraqueza claramente definida (o que não tem nada a ver com esses vícios graves que são a mentira, a vaidade, etc.). Esta fraqueza impede-me de enlouquecer, eu cultivo-a; com medo da loucura, sacrifico toda a ascensão que eu poderia fazer e perderei de certeza o negócio, porque não é possível fazerem-se negócios nesta esfera. A menos que a sonolência não se misture e com o seu trabalho diurno e nocturno não quebre todos os obstáculos e não prepare o caminho. Mas nesse caso serei apanhado pela loucura — porque para se fazer uma ascensão é preciso querer-se e eu não queria.

Franz Kafka, in 'Diário (1912)'

15 agosto 2021

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

EVANGELHO - Lc 1,39-56
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direcção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».
Maria disse então:
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre».
Maria ficou junto de Isabel cerca de três meses
e depois regressou a sua casa.

13 agosto 2021

Das manias

 

Fotografia de Martin Parr

Tomar banho no Clube de Turismo do Funchal, como aconteceu comigo na primeira quinzena de Julho, leva-nos ao reforço de manias (ou preconceitos?) já existentes, e à criação de outras. Gosto muito de praia, apesar de dois aspectos algo desagradáveis inerentes: a areia e as pessoas. Com a minha quinzena funchalense descobri outra coisa: devido ao facto de a minha entrada na água ser feita sempre (e com gosto) através do mergulho de um pontão, descobri outra mania: não gosto da maré vazia. Não na ilha, onde se nota menos, mas na praia, porque por vezes requer uma marcha penosa até que a água suba acima dos artelhos. Manias...

JdB

11 agosto 2021

Texto e imagem dos dias que correm

 

Duas crianças, 4 e 5 anos. Agosto de 2021. 

O Encanto da Vida

Todas as noites acordado até desoras, à espera da última cena de pancadaria num jogo de futebol, do último insulto num debate parlamentar, do último discurso demagógico num comício eleitoral, da última pirueta dum cabotino entrevistado, da última farsa no palco internacional. Crucificações masoquistas, que a prudência desaconselha e a imprudência impõe. Vou deste mundo farto de o conhecer e faminto de o descobrir.

Mas não há perspicácia, nem constância de atenção capazes de lhe prefigurar os imprevistos. O que acontece hoje excede sempre o que sucedeu ontem. A violência, o facciosismo, a ambição de poder, a crueldade e o exibicionismo não têm limites. Felizmente que a abnegação, a generosidade e o altruísmo também não. E o encanto da vida é precisamente esse: nenhum excesso nela ser previsível. Nem no mal nem no bem. E não me canso de o verificar, de surpresa em surpresa, à luz dos acontecimentos.

Quando julgo que estou devidamente informado sobre o amor, sobre o ódio, sobre a santidade, sobre a perfídia, sobre as virtudes e os defeitos humanos, acabo por concluir que soletro ainda o á-bê-cê da realidade. Cabeçudo como sou, teimo na aprendizagem. Hoje fizeram-me a revelação surpreendente de que um avarento meu conhecido, que durante muitos anos procedeu como tal e, como tal, o tratei sempre de pé atrás, generosa e secretamente subsidiava um asilo de infância desvalida.

Miguel Torga, in 'Diário (1993)'

08 agosto 2021

XIX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Jo 6,41-51

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
os judeus murmuravam de Jesus, por Ele ter dito:
«Eu sou o pão que desceu do Céu».
E diziam: «Não é ele Jesus, o filho de José?
Não conhecemos o seu pai e a sua mãe?
Como é que Ele diz agora: 'Eu desci do Céu'?»
Jesus respondeu-lhes:
«Não murmureis entre vós.
Ninguém pode vir a Mim,
se o Pai, que Me enviou, não o trouxer;
e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia.
Está escrito no livro dos Profetas:
'Serão todos instruídos por Deus'.
Todo aquele que ouve o Pai e recebe o seu ensino
vem a Mim.
Não porque alguém tenha visto o Pai;
só Aquele que vem de junto de Deus viu o Pai.
Em verdade, em verdade vos digo:
Quem acredita tem a vida eterna.
Eu sou o pão da vida.
No deserto, os vossos pais comeram o maná e morreram.
Mas este pão é o que desce do Céu
para que não morra quem dele comer.
Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne,
que Eu darei pela vida do mundo».

05 agosto 2021

Textos dos dias que correm

Cinco chaves para dar asas à escrita

1. Leia sem moderação

Escrever é uma viagem, mesmo que em escassas linhas. E ler é a autoestrada para largar as amarras. É suficiente deixar-se seduzir pelas palavras de autores que admire ou que lhe agradem. Romances, testemunhos, poesia, teatro… leia por extenso ou somente excertos escolhidos. Saboreie as palavras, detenha-se numa expressão que o toque, não tenha medo de copiar: ser modelado pela língua dos outros abre para uma expressão pessoal. Guarde estes textos ao alcance da mão. No momento em que começar a escrever, não hesite em folhear os livros que a inspiram e neles buscar permissão para se lançar.

2. Ouse o primeiro parágrafo

A escrita tem muitas vezes necessidade de um aquecimento. Cada pessoa tem a sua maneira de se pôr ao caminho. No sentido figurado e literal. Pense em mobilizar o seu corpo como melhor lhe convier: um passeio ajuda a entrar em movimento; caligrafar algumas palavras solta a mão; tomar um banho permite a clarificação; arrumar a sua mesa de trabalho põe ordem quer na sala/quarto/escritório quer no seu espírito, etc.

Esqueça todas as ideias que recebeu sobre a escrita. Trace as suas primeiras palavras, as suas primeiras frases sem as julgar, e deleite-se ao vê-las alinharem-se. Dê-lhes tempo para as introduzir ao que se segue. É possível que depois não conserve este esboço, mas, como um primeiro crepe, servirá para aquecer o fogão.

3. Exercite-se copiosamente

O mito do génio literário forjado no século XIX afastou para segundo plano a realidade artesanal da escrita. Que precisa de trabalho. Tudo é bom para se exercitar: dar a volta a um objeto, narrar a sua rua, esboçar o retrato de um comerciante, imortalizar uma hora do dia, descrever uma imagem, uma fotografia… Em algumas palavras, uma expressão, três frases… Comece pequeno e descubra a satisfação de cinzelar as palavras. Nada a impede de entrar neste jogo mentalmente. Mas atenção: depressa se torna viciante, e por isso deve ser praticado em lugar seguro (sobretudo não o faça ao atravessar uma rua!). E não esqueça que o que vem ao espírito poderá nunca ser representado, daí o interesse em ter sempre à mão uma caneta e um pequeno caderno de notas.

4. Escute-se

O estado propício interior, chamemos-lhe inspiração, aparece sem avisar e passa depressa. Na medida do possível, esteja preparada. Para o domar, comece por escrever uma cena, uma pasagem cuja evocação é agradável, feliz, ligeira. Se sentir vontade, aborde uma questão delicada, confusa, eventualmente dolorosa. Seja como for, deixe subir o que vem sem antecipar a versão final. Considere-o como uma etapa, e sobretudo conserve-a, como todas as suas (primeiras) versões.

5. Seja simples

Menos é mais, diz-se. Por vezes temos tanto a expressar, que as palavras ficam bloqueadas à porta. Ou aquelas que traçamos parecem prosaicas, muito distantes do que sonhamos: a frustração ou o sentimento de impotência espreitam. Ou então, as frases fluem livremente, mas, ao reler, o que escreveu podia ter sido redigido por qualquer outra pessoa, e nada se destaca. A solução? Voltar aos fundamentos: sujeito, verbo, complemento. A partir desta base, aos poucos, o seu estilo encorajar-se-á ou canalizar-se-á. Trabalhar o seu estilo nesta “ascese” torna-se um prazer – e cuidado com a dependência!


Délia Balland
In Le Pèlerin
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 04.08.2021

04 agosto 2021

Vai um gin do Peter’s ?

A ESPERANÇA CANTADA NAS LÍNGUAS DOS DOIS HEMISFÉRIOS 

MÚSICAS DO MUNDO CANTAM À ESPERANÇA

Nos EUA, a pandemia inspirou uma das campeãs do maior portal de música cristã – o ‘Billboard’s Hot Christian Songs’ –  a compor uma ária, que aproveita as situações no limite do desespero, para revelar a luz que se adivinha para lá das nuvens espessas do presente. 

Traduzível por ‘Apoia-te em Mim’ ou ‘Segura-te a Mim’, a canção entrou logo para o primeiro lugar do Billboard’s, cativando pela voz quente de Lauren Daigle e pela nesga de esperança que oferece. Numa entrevista recente, a compositora norte-americana de 29 anos explicou o sentido da ária «HOLD ON TO ME», como resposta aos momentos difíceis por que muitos passaram durante os sucessivos confinamentos: «The thing I love most about this song is that it lends itself to someone who is feeling incredibly vulnerable, someone who is feeling insecure, or uncertain. There are times we may need a reminder of who we are and that we are worthy of having joy in our lives. In moments where the future may look uncertain and unknown, this is a song of hope that any person can cling to

As tonalidades musicais melancólicas e doces ganham cor com a combatividade de Daigle, num efeito interpelativo, que se propõe curar as feridas sulcadas pelas vulnerabilidades deixadas à deriva pelas inúmeras vezes em que o chão foi fugindo debaixo dos pés. Mas a esperança vai despontando subtilmente, incansavelmente, como os infinitos fios de água que o mar deixa no areal, à passagem das ondas. Por isso, já foi chamada de gospel do século XXI, ao partir do âmago da experiência humana para ousar antever um horizonte com sentido, para lá da dor visível. Diz a letra: «Hold on to me when it’s too dark to see You, When I am sure I have reached the end, Hold on to me when I forget I need You, When I let go, hold me again»: 

Outro compositor norte-americano, especialista em bandas sonoras para filmes e jogos de vídeo, resolveu musicar um Pai-Nosso no dialeto maioritário dos povos africanos da costa do Índico – o suaíli. A ideia é surpreendente, porque Christopher Chiyan Tin tem ascendência asiática, de raiz chinesa. 

REGISTO NO RECORDING ACADEMY GRAMMY AWARDS (DEZ.2014): «AND THE GRAMMY WENT TO ... CHRISTOPHER TIN».   PHOTO: ALBERTO E. RODRIGUEZ/WIREIMAGE.COM

A oração musicada intitula-se «Baba Yetu» e começou por ser concebida para o jogo «Civilization IV». Foi logo premiada com o Grammy do “Melhor Arranjo Musical acompanhado de Vozes». Abrilhantou, depois, a cerimónia inaugural da edição do «World Games» de 2009, realizado em Taiwan. Tornou-se ainda na primeira e na última ária (em reprise) do álbum «Calling All Dawns», que voltou a valer a Tin outro Grammy. O álbum incorpora árias entoadas em diferentes línguas, num multilinguismo, que reforça a universalidade da expressão musical. A selecção é especialíssima e acolhe alguns dos idiomas mais antigos, com lugar para o português, mas sem o inglês, nem o italiano nem outros de equivalente popularidade. No alinhamento de «Calling all Dawns»(1), a segunda música é cantada em japonês, a terceira em mandarim, a quarta em português, a quinta em francês, a sexta em latim, a sétima em gaélico, a oitava em polaco, a nona em hebraico, a décima no farsi do Irão, a décima-primeira em sânscrito, a décima-segunda no maori dos nativos da Nova Zelândia e a décima-terceira repete o suaíli. 

Uma interpretação histórica do Pai-Nosso africano decorreu a 5 de Julho de 2017 e foi executada pela orquestra ‘Welsh National Opera Orchestra’ e pelo coro ‘Celebration Chorus’, dirigidos pelo maestro-compositor Christopher Tin, na 70ª edição do festival internacional organizado pelo País de Gales – o ‘Llangollen International Musical Eisteddfod’:

 https://se-novaera.org.br/baba-yetu-o-pai-nosso-em-swahili/

Segue a tradução do Baba Yetu nos trechos que personalizam a oração ensinada por Jesus: «Pai Nosso, Jesus que estás no Céu / (…) Livrai-nos do mal, ó Pai que és para sempre e sempre! / (…)  Teu reino vem, será feito o Teu / Na Terra como no céu (amén) / (…) Perdoai-nos as nossas ofensas. / Nossos Erros, Hey! / Assim como nós perdoamos / Quem tem ofendido não nos / Deixeis cair em tentação, mas / Livrai-nos, da paragem, da loucura (…) / Pai Nosso, Jesus que estas no Céu / Santificado seja o teu nome.» Assim termina o álbum, que convoca o nascer-do-sol em todas as latitudes do planeta. Mais luminoso era difícil para desejar a todos um óptimo Verão. 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1)  Álbum completo em: https://www.youtube.com/watch?v=m2jzfVF7noA .


03 agosto 2021

Life's a beach

 








O que une todas estas fotografias? Sim, são de Martin Parr; sim, são na praia. No entanto, há algo para além destas semelhanças mais óbvias? O quê? A ideia do fotógrafo de que um dia na praia é igual em todo o mundo. Diz Susie Parr (não sei se mulher, irmã, filha mãe ou nada):

Um dia de praia é igual em todo o mundo. Encontra-se um lugar para sentar, organiza-se o guarda-sol e as cadeiras e, em seguida, arrumam-se refrescos, material de leitura, toalhas, balde e pá. Revelando a sua roupa de praia, as pessoas besuntam-se com protector solar, dão um mergulho, conversam, cuidam das crianças, namoram, leem, comem e bebem, jogam futebol, ouvem rádio, dormitam e, claro, examinam atentamente o físico, as roupas e o comportamento dos vizinhos.

O que distingue Copacabana do Guincho ou da praia de Mar del Plata? Por mais estranho que possa parecer, são o tipo de pessoas, não os hábitos. Para o fotógrafo, um dia de praia é igual em todo o mundo. Talvez seja, nunca pensei nisso.

JdB

02 agosto 2021

Poemas dos dias que correm *

Errar exagerando

Aspirar a louvar o incompreensível,
E fundar o desejo no impossível;
Reduzir a palavras os espantos,
Detrimento será de excessos tantos;
Dizer, do muito, pouco,
Dar o juízo a créditos de louco;
Querer encarecer-vos,
Eleger os caminhos de ofender-vos;
Louvar diminuindo,
Subir louvando e abaixar subindo;
Deixar também, cobarde, de louvar-vos,
Será mui claro indício de ignorar-vos;
Fazer a tanto impulso resistência,
Por o conhecimento em contingência;
Delirar por louvar o mais perfeito,
Achar a perfeição no que é defeito;
Empreender aplaudir tal subtileza,
Livrar todo o valor na mesma empresa.
Errar exagerando,
Dizer, do muito, pouco,
Errar exagerando

Soror Violante do Céu

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* retirado daqui

01 agosto 2021

XVIII Domingo do Tempo Comum

 Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
quando a multidão viu
que nem Jesus nem os seus discípulos estavam à beira do lago,
subiram todos para as barcas
e foram para Cafarnaum, à procura de Jesus.
Ao encontrá-l'O no outro lado do mar, disseram-Lhe:
«Mestre, quando chegaste aqui?»
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
vós procurais-Me, não porque vistes milagres,
mas porque comestes dos pães e ficastes saciados.
Trabalhai, não tanto pela comida que se perde,
mas pelo alimento que dura até à vida eterna
e que o Filho do homem vos dará.
A Ele é que o Pai, o próprio Deus,
marcou com o seu selo».
Disseram-Lhe então:
«Que devemos nós fazer para praticar as obras de Deus?»
Respondeu-lhes Jesus:
«A obra de Deus
consiste em acreditar n'Aquele que Ele enviou».
Disseram-Lhe eles:
«Que milagres fazes Tu,
para que nós vejamos e acreditemos em Ti?
Que obra realizas?
No deserto os nossos pais comeram o maná,
conforme está escrito:
'Deu-lhes a comer um pão que veio do céu'».
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão do Céu;
meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu.
O pão de Deus é o que desce do Céu
para dar a vida ao mundo».
Disseram-Lhe eles:
«Senhor, dá-nos sempre desse pão».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu sou o pão da vida:
quem vem a Mim nunca mais terá fome,
quem acredita em Mim nunca mais terá sede».

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