30 novembro 2020

Da santidade (V)

Com este artigo, escrito e publicado por Filipe d'Avillez em 11 de Novembro de 2020, termino uma série de textos - meu e de outros - sobre o tema da santidade. Talvez volte a ele um dia destes, até porque tenho vindo a conversar sobre Igreja com um amigo: rituais, modernidade, santos, cremação, protestantismo, etc.  

JdB 

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O João e o Jean, reflexões de um pecador sobre a santidade

No dia 7 de maio de 2019 publiquei uma mensagem no Twitter sobre a morte de Jean Vanier que terminava com as palavras “Santo subito!”. Foram anos de enorme admiração por um homem que dedicou a vida à promoção da dignidade dos mais vulneráveis e descartados da nossa sociedade. Como podia não ser santo?

Menos de um ano mais tarde olhei estupefacto para o telemóvel, durante a festa de anos de um sobrinho, a ler a notícia de que Vanier tinha estado envolvido em relações com mulheres adultas de quem supostamente seria diretor espiritual, e que essas relações foram fruto do abuso e manipulação dessa sua posição, sendo muito prejudiciais para as vítimas. Deixo os detalhes para quem quiser ir aprofundar, mas digo apenas que não há qualquer indício de que tenha abusado das pessoas com deficiência que dedicou a vida a servir.

Como é que era possível ser a mesma pessoa?

Hoje aconteceu uma coisa parecida. João Paulo II foi o Papa da minha juventude, ainda hoje fico emocionado quando vejo aquelas montagens com momentos do seu pontificado ou ouço a sua voz. Era como um avô para mim e culminou os seus dias na terra dando o mais magnífico testemunho já visto por parte de uma figura pública de que a velhice e a doença não diminuem a nossa dignidade.

Mas com a publicação do relatório sobre o cardeal McCarrick, aguardado há dois anos, ficámos a saber que João Paulo II tinha sido avisado repetidamente sobre os rumores em torno do ex-cardeal, de que tinha evitado nomeá-lo para duas dioceses antes de finalmente o nomear para Washington. Para isto terá pesado a relação pessoal de amizade entre os dois.

A questão não é assim tão simples, mas no fundo entre acusações que, na altura, não eram mais do que isso mesmo, acusações sem provas, e uma experiência pessoal de proximidade, João Paulo II cometeu dos piores erros do seu pontificado, promovendo e elevando um homem que, segundo a informação disponível agora, era profundamente doente e corrupto, para além de ser mentiroso, tendo jurado em mais do que uma ocasião que era virgem e que jamais tinha tido relações com quem quer que seja.

A situação é parecida, digo, mas não é igual. Por um lado, João Paulo II já foi declarado santo. Concluir agora que afinal não era põe em causa todo o processo de canonização da Igreja. Mas não creio que isso seja necessário.

A grande diferença entre os dois casos é uma que o mundo moderno e descristianizado já não consegue distinguir. É a diferença entre o erro e a corrupção.

João Paulo II cometeu um erro. Foi ingénuo, talvez. Preferiu dar crédito a um homem que não o merecia, e a Igreja pagou por isso. Mas foi isso mesmo, um erro. Não tenho a menor dúvida de que se tivesse sido confrontado com provas concretas não teria promovido o americano como promoveu. Aliás, o facto de ter hesitado em duas ocasiões anteriores parece comprová-lo. Também não chego ao ponto de dizer que teria agido como se espera hoje que um bispo ou o Papa aja nessa situação, aplicando a tolerância zero. Provavelmente teria pedido ao cardeal para se retirar da vida pública, ir para um convento levar uma vida de oração e penitência… Enfim, era assim que se fazia naqueles tempos – erradamente – pensando que o escândalo para os fiéis era pior do que saber a verdade.

Já Jean Vanier, para minha grande tristeza, mostrou ser um homem corrupto. Um homem que aproveita uma posição de superioridade, manipulando uma pessoa frágil para satisfazer as suas vontades, ainda por cima travestindo isso com roupagens pseudo-espirituais, é um homem doente e corrupto. O erro e o pecado já não são fruto de uma fraqueza momentânea, são o fruto natural de um estado de alma em que a pessoa se deixou cair. E isso faz toda a diferença.  

O que é que isso nos diz sobre as muitas e inegáveis boas acções de Vanier? Da obra de uma vida? Nada que nos deva surpreender. Mostra, antes, da forma mais crua e triste, o paradoxo da humanidade decaída. As boas obras de Vanier permanecem boas e se Deus quiser continuarão a dar muitos frutos.

Ao pensar novamente no seu caso hoje, não pude deixar de me lembrar da parábola, tão difícil de entender, do administrador prudente e da conclusão que Cristo nos deixa:

“Então, o senhor elogiou aquele administrador da injustiça, pois agiu com sabedoria. Porquanto os filhos deste mundo são mais sagazes entre si, na conquista dos seus interesses, do que os filhos da luz em meio à sua própria geração. Portanto, Eu vos recomendo: Usai as riquezas deste mundo ímpio para ajudar ao próximo e ganhai amigos, para que, quando aquelas chegarem ao fim, esses amigos vos recebam com alegria nas moradas eternas”

Jean Vanier era um pecador, um homem pelos vistos incapaz de se desprender do pecado que o agarrava. Mas durante a sua vida ganhou muitos amigos, aquelas pessoas com deficiência cuja dignidade promoveu, de quem se fez verdadeiramente próximo. Será que ele vai para Céu, apesar dos abusos que cometeu? Não sei. Espero que sim. Sei que terá uma multidão de amigos a torcer por isso e a interceder por ele.

Filipe d'Avillez 

29 novembro 2020

I Domingo do Advento

EVANGELHO - Mc 13,33-37

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
"Acautelai-vos e vigiai,
porque não sabeis quando chegará o momento.
Será como um homem que partiu de viagem:
ao deixar a sua casa, deu plenos poderes aos seus servos,
atribuindo a cada um a sua tarefa,
e mandou ao porteiro que vigiasse.
Vigiai, portanto,
visto que não sabeis quando virá o dono da casa:
se à tarde, se à meia-noite,
se ao cantar do galo, se de manhãzinha;
não se dê o caso que, vindo inesperadamente,
vos encontre a dormir.
O que vos digo a vós, digo-o a todos: Vigiai!"

27 novembro 2020

Diego Armando

Some people think football is a matter of life and death. It's much more than that.

Bill Shankly

O que pode alguém escrever sobre um jogador de futebol que nunca viu jogar? Sobre alguns muito pouco, sobre a maioria nada. Excepto se esse jogador for o Maradona.

Ainda não era nascido no México '86, quando um só jogador levou um país às costas para ganhar o troféu maior do futebol. Sou demasiado novo para me lembrar do icónico aquecimento antes de uma meia-final da Taça Uefa em 1989. No entanto, com a morte de Maradona, senti que o seu alcance era mais que o desaparecimento de um dos grandes nomes do desporto.

Porquê?

Nunca o vi jogar. Não era do meu país. Nem sequer jogou pelo meu clube. Acho que a resposta é que não morreu só um antigo jogador de futebol, morreu, na verdade, uma parte do jogo. É quase como se  um antigo funcionário de um clube, no seu último dia, fosse antes ao relvado e levasse um quadrado de relva ou a bandeirola de canto consigo para a reforma.

Poucos jogadores na história do desporto conseguem ser tão polémicos e divisivos como Diego Armando Maradona. Nenhum jogador teria a ousadia de, não só se orgulhar de um golo ilegal, como dizer que essa batotice era justificada por razões políticas. Mais que isso, teve ainda o descaramento de lhe chamar a Mão de Deus. Os seus excessos e vícios eram públicos e, em última análise, terão levado ao seu declínio e à sua espiral descendente. Isto, e mais um sem-número de casos, fazem dele uma figura pouco consensual.

No entanto, na história de futebol, ninguém consegue ser tão adorado, admirado e suspirado como Diego Armando Maradona. No mesmo jogo em que marca o golo com a mão, passados 4 minutos, marca um golo em que finta 5 jogadores, uma equipa, um país inteiro e a história do desporto. Esse sim, um golo divinal, o Pé Esquerdo de Deus. Tem, inclusivamente, uma igreja fundada em sua honra, com fiéis, mandamentos e outros preceitos. Maradona pega num desporto e eleva-o a um nível quase religioso, quase místico. E mesmo que não façam para da Igreja Maradoniana, qualquer fã de futebol partilha de alguma reverência pelo eterno número 10.

Na interminável e aborrecida discussão sobre qual é o melhor jogador de futebol de sempre Maradona é sempre um nome a ter em consideração. Se o é? Penso que não, mas isso não é relevante. Porque Maradona é mais que isso, é um mito, é um ícone, e portanto não tem espaço numa simples lista de jogadores. E isto faz dele não o melhor mas, sem dúvida, o maior jogador de futebol de todos os tempos.

Termino o texto com o sétimo mandamento da Igreja Maradoniana:

Honrar los templos donde predicó y sus mantos sagrados.


SdB (III)

26 novembro 2020

Da santidade (IV)

Com o texto abaixo termina a troca de correspondência com um bom e douto amigo sobre estas coisas da santidade. Vale a pena ler.

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Meu caro João,

Que maravilha ter podido ler (mais) este seu texto. Reforça a ideia de que a Igreja é uma casa com muitos recantos, tantos quantos os necessários para todos nos sentirmos bem nela. É inegável que cada um de nós tem uma “visão” ideal de Igreja, gostaríamos que o nosso cantinho da casa de Deus fosse maior e muito mais central do que os outros, mas os verdadeiros crentes (e não estou a fazer juízos sobre ninguém, mas a tentar convencer-me humildemente disso mesmo) saberão que a própria universalidade da Igreja não se compadece com leituras pessoais e redutoras dela.

Muitas vezes me perguntam se gosto do Papa. Ora para me ouvirem criticar este ou para me verem zurzir o antecessor. Não me lembro de alguma vez ter dado a resposta que queriam. Porque sempre me recusei a avaliar os Papas. Com isto não quero dizer que não se possa fazê-lo, como muito bem demostrou o João. São poucos os casos reservados à infalibilidade do Papa. As mais das vezes, o Papa fala, com a sua autoridade, é certo, mas despido da suposta infalibilidade. Não é por ignorância disto que me coíbo de tecer juízos sobre o Papa. É mesmo por presumir que o que ele diz é acertado. A presunção, como é de regra, é ilidível, mas não ouso contrapor à opinião do Santo Padre a minha… Ora, a minha opinião não é menos legítima do que a dos outros, mas sinto-a muito menos qualificada do que a do Santo Padre ou dos mais altos dignitários da Igreja. Note que quando assim falo, não estou a defender a validade deste procedimento para terceiros (e quero muito discordar do D. Januário Torgal Ferreira). Estou apenas a explicar o meu comportamento. O João sabe melhor do que eu que muitos dos nossos amigos e conhecidos nos tentam apanhar na curva do nosso catolicismo. Os casos que referiu (celibato dos padres e sacerdócio feminino) são típicos desse exercício. Eu respondo sempre: é-me absolutamente indiferente que os padres casem ou que as mulheres sejam ordenadas. Acho que há gente mais talhada do que eu para pensar nessas coisas e para dar uma resposta adequada a cada momento da vida da Igreja. Mas os leigos não podem pensar nisso e emitir a sua opinião? Podem… como podem também preferir não pensar nisso ou não emitir opinião, como faço eu. Aliás, faço isso bem sabendo que quase sempre o debate público sobre estes aspectos da vida da Igreja é alimentado por quem não pertence a ela e quase sempre é orientado pela vontade de fustigar os seus alicerces. Repare, João, como em debates sobre aspectos da nossa vida que não são indiferentes à Igreja – aborto, casamento gay, eutanásia – há sempre católicos de serviço (leigos, quando não padres ou bispos) dispostos a defender o indefensável.

Quanto ao tema…

Insisto no perigo que há em convertemos o catolicismo numa ética social. A “bondade”, a bondade de que falo, supõe a alteridade. Nesta minha perspectiva, não há homens bons. Há homens capazes de coisas boas. Dar água a quem tem sede, vestir os nus, matar a fome aos famintos, visitar os enfermos… Estas obras de misericórdia são boas, sendo certo que a fé sem obras é morta. Julgo que o João percebeu o que quis dizer quando sublinhei esta relação íntima com  Jesus. Aquele toque no manto de Jesus, imperceptível aos olhos humanos… Não são as obras que fazem a fé. E é a fé, mais do que as obras, que relevam para o reconhecimento da santidade.

[Permito-me partilhar duas experiências recentes. Uma em Maio último, quando prestava o meu tradicional apoio aos peregrinos de Fátima. Acredito que Jesus caminha em direcção a Fátima com aquelas pessoas. E costumo dizer que nos olhos de algumas dessas pessoas vejo a interpelação de Jesus. Sinto que aquelas estradas da Azambuja são o meu caminho de Emaús. Quantas e quantas pessoas se cruzam com Jesus, conversam com Ele, e não O vêem. Eu vi-O nos olhos duma miúda de 20 anos talvez, que nem sequer aceitou a nossa ajuda. Outra, ontem mesmo, na Procissão do Senhor dos Passos da Graça. No meio da Mouraria, naquelas ruas estreitinhas, pára o andor. No meio daquele mar de gente, uma criança (pretinha, mas aloirada, não sei bem descrever) chorava. Pedia à mãe o que eu não conseguia perceber. A certa altura, um Irmão do Senhor dos Passos pega na criança e leva-a a tocar o manto de Jesus. Calou-se imediatamente. Nem sei se era isso que o miúdo queria. Era provavelmente apenas uma birra, como outra qualquer. Mas Deus falou-me por ela. Quisera eu chorar para tocar no manto de Jesus…  ]

Concordo que o processo de canonização está sujeito a discordâncias. Mas penso que o João está a dar um ênfase excessivo aos “milagres”. Porque é que o Frei Bartolomeu dos Mártires está isento dos ditos milagres e a Madre Teresa não? A pergunta sugere uma situação que não tenho por verificada. Ou seja, parece que o Frei Bartolomeu, ao contrário da Madre Teresa, teve um caminho facilitado em direcção aos altares. Não é seguramente isso que se passa. Sucede apenas que a o Frei Bartolomeu morreu em 1590, há mais de 400 anos, e a Madre Teresa morreu ontem. A Santa Sé terá verificado que são tantas e tão expressivas as virtudes que concorrem na pessoa de Frei Bartolomeu que tornam possível à Igreja (mais de 400 anos depois!) considerá-lo Santo. Este reconhecimento é, como disse, meramente declarativo, pois que ele será Santo (a crer que o é) desde que morreu. O caso da Madre Teresa não precisou de esperar tanto tempo, porque foram, para além do notabilíssimo exemplo de vida, testemunhadas manifestações evidentes da sua comunhão com os Santos e com Deus. Ela não teve um tratamento de desfavor.

Aliás, se há coisa que a Igreja com a sua proverbial prudência nos ensina é a  respeitar o tempo. Não impressiona que a Igreja se interesse pela canonização de uma pessoa que morreu há 400 ou há 500 anos? Nós é que somos tentados a querer ver na Igreja o nosso tempo, o nosso ritmo, medido pela nossa própria finitude. Ainda há dias lia sobre o Júlio Dantas. Considerado um dos mais brilhantes intelectuais da primeira metade do século XX. Quem é o Júlio Dantas, hoje? Ninguém. O Júlio Dantas, hoje, não foi ninguém. O tempo apagou-o… e o que é delido pelo tempo não tem a eternidade. Hoje, as letras não recordam o Dantas. Mas a Igreja não esquece o Frei Bartolomeu. Mal comparado, veja o que se passa com o Panteão. Admite-se que lá dê entrada defunto com menos de 25 anos de morto?  A Pátria agradecida só a podemos ver 25 anos depois do óbito… se não for pouco tempo… ante disso, nunca! A comoção é episódica. Como as revoluções. Favorecem picos de falsas unanimidades…

Muitos verão na vida da Madre Teresa a Sua santidade, sim. E não virá daí mal ao mundo. Mas vox populi não é vox Dei, João. A vox populi escolheu Barrabás. A vox populi exigiu a crucificação de Jesus. Talvez não devêssemos ficar tão deslumbrados com os encantos da democracia… ou com o somatório de opiniões irrelevantes.  

Um forte abraço, muito agradecido por estes bocadinhos tão saborosos…

NP

   

25 novembro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

 HOBBY DE CRIANÇAS ESPALHA ÂNIMO 

É difícil saber quem terá tido mais mérito na iniciativa: o compositor-maestro ou o primeiro grupo de crianças que dirigiu? O evento de arranque foi um palco de dimensão interplanetária: os Jogos Olímpicos de Inverno, nos EUA, em 2002. Parece que o primeiro pedido veio dos miúdos, que adoraram dar voz à composição do maestro «It Just Takes Love». Do lado do músico americano de ascendência japonesa tinha vindo a decisão prévia de criar um coro infanto-juvenil para interpretar a sua ária destinada aos J.O. em Salt Lake City. O sucesso terá levado vários dos coralistas a pediram a Masa Fukuda para não parar a onda musical e continuar a ensaiá-los. 

Em 2003, a avó do maestro – uma nipónica dos quatro costados – enviou ao neto o anúncio de um concurso a decorrer no Japão, designado ‘John Lennon International Award’. Apesar de o prazo terminar em semanas, Masa e o seu coro infantil mobilizaram-se, participaram e ganharam. Ainda tiveram o brinde adicional de receber o prémio das mãos da mulher de Lennon – Yoko Ono, impressionada com tanta criança cheia de talento! 

A qualidade do coro foi uma constante, desde os primórdios. Outra aposta foi a escolha de um repertório para transmitisse ânimo e esperança. As próprias actuações de ONE VOICE CHILDREN’S CHOIR cultivam e decorrem num ambiente alegre, pelo que rapidamente se tornaram virais na net, onde somam fãs. 

Um dos sucessos recentes aconteceu em pleno confinamento, com a difícil sincronização por zoom de um coro de perto de uma centena de miúdos, alguns de 4 e 5 anos. O resultado foi notável, numa versão que deu colorido e vitalidade à música da banda Maroon 5, lançada em Setembro de 2019: «Memories». Curiosamente, o segredo da harmonia espantosa da composição remonta ao século XVII, por mérito exclusivo do compositor de Nuremberga e professor do irmão mais velho de J.S.Bach – Pachelbel (1653-1706). 

A música antiga que impressionou os Maroon 5 – o «Cânone em Ré Maior»  –  é de uma doçura espantosa, por isso tornou-se habitual no repertório de casamentos onde entra alguma música clássica. De facto, irradia uma paz imensa, que também pode ser consoladora, conforme a entenderam os rockers de Los Angeles. Na adaptação de 2019, que replica a sequência mais conhecida do Cânone, a ária barroca adquire uma tonalidade mais nostálgica, porque os americanos queriam homenagear os amigos que tinham morrido, recentemente, como o manager – Jordan Feldstein. O líder do grupo Adam Levine explica a intenção: «This song is for anyone who has ever experienced loss. In other words, this song is for all of us. […] We heard the skeleton of this [Pachelbel’s] song and thought it matched where we were at. […] I needed this song: In a world that's increasingly chaotic and crazy and angry in a lot of ways [...] rather than fight about things, it's nice to have a common ground and all of us have had loss... [It's about loss] and celebrate them too, which I think it's important».  

Celebrar é sempre um bom mote para os One Voice, que cantam ‘a capella’ até à entrada dos violinos, para um final grandioso. Nesta interpretação ressalta a carga positiva com que as crianças cunharam o estribilho principal «memories bring back memories, [that] bring back you», como numa ligação audaciosa entre o céu e a terra. Vislumbra-se alguma forma de proximidade entre os que partiram e os que vivem este presente. Perpassa mesmo um clima de festa. A alegria das crianças é tão cristalina quanto as suas vozes, produzindo um efeito contagiante, sem perder alguma solenidade dos ecos originais do século XVII:  

https://www.facebook.com/ellen.vandergalien/videos/3309346642453992

Para uma comparação entre séculos, segue também o leitmotiv de Pachelbel importado pelos Maroon 5 (a partir do minuto 1:58 neste duo de piano e violoncelo): 

Claro que conta para o resultado a coordenação exímia, percebendo-se o profissionalismo com que crianças dos 4 aos 17 levam este hobby, bem à americana, a colocar especial brio em tudo o que se destina à apresentação pública. Mas não é de somenos a intenção do seu coro:  elevar a humanidade. O objectivo é explícito:  «One Voice Children’s Choir is on a mission to lift the human race with the music we love to sing. We partner with other performers and organizations who are moved by the same passion to ease the suffering we see in the world. Help us heal the world through music!»

Como no gin anterior, também este repesca uma boa notícia vinda dos Estados Unidos, onde seria óptimo encontrar a atitude construtiva deste grupo coral infantil. Já é bom sinal um país dar-se ao luxo de também poder aprender com a geração mais nova. 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

24 novembro 2020

Da santidade (III)

A minha resposta ao artigo de NP publicado a 20 de Novembro e que pode ler-se aqui. Esta troca de correspondência data de Fevereiro de 2016, pelo que alguns factos aqui descritos devem ser lidos tendo isso em consideração.


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Meu caro NP,

 

Obrigado pelo pedagógico e informativo comentário ao meu texto no Adeus até ao meu regresso. Gostei de ler - aprendi e, porque pensei na resposta que havia de dar-lhe, reforcei argumentos para defender um ponto de vista algo diferente do seu.

 

Uma curtíssima nota biográfica para V. entender onde me situo na Igreja: sou católico (redundantemente chamado “praticante”). Durante muitos anos pertenci às Equipas de Nossa Senhora; na “minha “ paróquia fui / sou leitor, acólito, participante nos CPM, ministro extraordinário da comunhão com ida a lares e casas particulares, responsável pelo boletim dominical. As actividades, dentro destas, que abandonei, não têm a ver com discórdias ou zangas; apenas com caminhos particulares que decidi trilhar e que configuravam “incompatibilidades”. Mantive outras actividades. 

 

O Concílio Vaticano I definiu que o Papa goza de infalibilidade quando propõe para toda a Igreja "doutrina sobre fé e costumes”. Quase 100 anos depois, o Concílio Vaticano II completou este ensinamento ao declarar que a infalibilidade da Igreja "também reside no Corpo dos Bispos", sobretudo quando em Concílio Ecuménico. No entanto, o uso da infalibilidade aplica-se apenas às verdades relativas à Fé e à moral que são “divinamente reveladas” ou que estão em ligação íntima com a Revelação Divina. Talvez por isso, porque muitos aspectos sobre os quais o Papa se pronuncia ou age não se enquadram nestes dois aspectos, tenho visto os Papas que me são contemporâneos a serem criticados (e que não se leve esta palavra demasiado à letra) por posições tomadas: Paulo VI por receber os movimentos de libertação que combatiam Portugal; João Paulo II por fechar, (quase) por completo, a hipótese de ordenação das mulheres, Bento XVI por um (aparente) apoio a práticas litúrgicas pré-Vaticano II, Francisco por um eventual excesso de populismo. Nesse sentido, porque em muitos aspectos da sua vida o Papa não se pronuncia sobre a fé e a moral, não goza de assistência sobrenatural do Espírito Santo. É, portanto, falível. É homem. O mesmo se aplica ao Corpo dos Bispos. No que toca aos Papas, acredito piamente que todos eles são eleitos através de uma acção do Espírito Santo, pelo que todos eles têm uma importância no seu tempo que só o tempo nos mostrará. 

 

A igreja, em sentido lato, não é um corpo autónomo de pessoas permanentemente iluminadas e em constante acerto. É por isso que concordo com a Igreja (e uso a palavra “Igreja"no sentido da autoridade do Vaticano) quando esta faz a defesa intransigente da vida contra a eutanásia e o aborto e a pena de morte; é por isso que concordo com a igreja quando ela assenta a sua actividade no terreno, defendendo os mais pobres; é por isso que não concordo com a igreja quando ela se deixa enredar em bancos ambrosianos ou finanças de carácter duvidoso; é por isso que discordo da igreja quando não actua / actuou com a prontidão e justiça inequívocas nos casos de pedofilia; é por isso que discordo da igreja por não se aproximar da “visão” ortodoxa quanto aos segundos casamentos. E poderia seguir naquilo em que concordo e naquilo em que não concordo. Não falamos de dogmas, mas do posicionamento da Igreja neste ou naquele tema. Não tenho de concordar com tudo, tenho de respeitar tudo.    

 

Aliás, tenho para mim que a mãe igreja é santa, não por ser irrepreensível em tudo o que faz, mas por querer ser irrepreensível em tudo o que faz. A melhor definição de santo é ser um pecador que não desiste. A santidade da mãe igreja advém-lhe daí: não desistir de ser melhor. E é por isso, e não apesar disso, que eu amo a Igreja - imperfeita, combativa, justa, com falhas. 

 

Ao dizer “eu não concordo” não estou a tentar privilegiar o primado do “eu” em detrimento do “nós”. E nem estou a por-me em bicos dos pés, achando-me detentor de uma sabedoria que a Igreja não tem nos dois mil anos de existência. Estou a manifestar uma discordância porque não sou um fiel acrítico. Acredito ainda que a história da Igreja está carregada de gente que, ao seu nível, disse “discordo” - tendo, obviamente, um gabarito intelectual que eu não tenho. Só com estes “discordos” é que a igreja evolui, se adapta no que tem de adaptar, mantém o que é de manter. Além do mais, haverá sempre dúvidas do que é a vontade divina, uma vez que, retirados os ensinamentos óbvios e inquestionáveis plasmados nas Sagradas Escrituras, tudo o resto é uma interpretação do homem - por natureza falível, apesar da boa vontade, sapiência e discernimento adquiridos em séculos. 

 

(Como nota de humor: o selo de garantia de uma empresa não revela ausência de erros, mas apenas controlo de um processo que garante uma margem muito reduzida de erro).

 

Vamos ao caso vertente do processo de canonização que, até onde sei, não é matéria de fé ou de moral, pelo que está “sujeito” a discordâncias. Não sei, como escrevi no texto, de onde vem a necessidade (e não obrigatoriedade) da existência de dois milagres. Numa digressão descontrolada da mente, voltei a Abrantes, ao 1981 em que acabei o serviço militar. Uma das fórmulas usadas na redacção dos louvores era “excedeu-se no cumprimento do dever”. Isto é, alguém havia ido mais além do que em bom rigor lhe competia. Alguém terá de explicar-me (e a sua excelente tentativa não foi suficiente) porque motivo Frei Bartolomeu dos Mártires (como outros) está isento da obrigatoriedade de demonstração dos 2 milagres para ser canonizado e a Madre Teresa (porque foi dela que falámos) não está. Porque motivo a congregação que trata dos santos não poderá usar do mesmo critério para (quase) toda a gente que alguém entende ser incluída no catálogo dos santos. Porque motivo alguém não poderá dizer que no nosso desafio para a santidade (e eu acho que somos desafiados à santidade, que é um nível acima da bondade, ou será a bondade suprema) se “excedeu no cumprimento do dever”. Como? Através de evidências, testemunhos, factos, números, impressões. Não de um milagre que afectou UMA pessoa. O manto de Jesus foi essa pessoa mas foram, acima de tudo, os rostos de milhares de outros.

 

Aliás, em tudo correndo como previsto, a Madre Teresa será canonizada em Roma, na presença de milhares e milhares de pessoas. Experimente-se perguntar a uma, duas, cem, mil, o que fez dela uma Santa. Quem saberá o milagre que ela fez a uma cidadã dos confins do Brasil? Quem não dirá que o milagre dela foi a vida dela? Dir-me-á o NP que isso não é mais do que vox populi. Afinal, o que é a igreja se não o povo de Deus a caminho?

 

Uma investigação histórica dará a perceber que o celibato dos padres (com o qual eu concordo) não é uma questão teológica, mas que se prende com questões de poder económico numa dada altura da igreja; perceberemos que a não ordenação das mulheres (sobre a qual não tenho opinião firmada) é uma decisão prudencial, mais do que teológica; perceberemos que a indissolubilidade do casamento (com a qual eu concordo) está na Bíblia. Perceberemos, por fim, que nada se diz sobre os processos de canonização, pelo que os trâmites seguem um enquadramento histórico específico, definido pelos homens nesse tempo específico. A Igreja, ao ser mais célere nos processos de canonização, adaptou-se, percebeu que tinha de mudar. Talvez tenha ouvido alguém que disse: “discordo”. 

 

A opinião da igreja não é sempre mais qualificada do que a minha, pese embora a frase poder ler-se de forma presunçosa. (Aliás, que igreja é esta que tem opinião? O papa, o colégio cardinalício, os bispos, os párocos?) Porque a opinião da igreja é feita através da soma da minha opinião, da sua opinião, da opinião do D. Manuel Clemente, dos outros bispos, dos diáconos, da multidão de gente anónima que ama a Igreja e que quer lutar para que ela seja cada vez melhor. Nem que seja através da discordância. Porque a igreja também tem (ou tem acima de tudo) uma dimensão terrena, palpável, que toca os seu membros. 

 

Um abraço do tamanho inaudito da minha resposta.          


JdB

23 novembro 2020

Música para o dia de hoje

 


Enviado por mão amiga com a seguinte nota: a música que a Maria Gadú escreveu quando a avó morreu.

De todo o amor que eu tenho
Metade foi tu que me deu
Salvando minh'alma da vida
Sorrindo e fazendo o meu eu
Se queres partir ir embora
Me olha da onde estiver
Que eu vou te mostrar que eu to pronta
Me colha madura do pé
Salve, salve essa nega
Que axé ela tem
Te carrego no colo e te dou minha mão
Minha vida depende só do teu encanto
Cila pode ir tranquila
Teu rebanho tá pronto
Teu olho que brilha e não para
Tuas mãos de fazer tudo e até
A vida que chamo de minha
Neguinha, te encontro na fé
Me mostre um caminho agora
Um jeito de estar sem você
O apego não quer ir embora
Diaxo, ele tem que querer
Ó meu pai do céu, limpe tudo aí
Vai chegar a rainha
Precisando dormir
Quando ela chegar
Tu me faça um favor
Dê um manto a ela, que ela me benze aonde eu for
O fardo pesado que levas
Deságua na força que tens
Teu lar é no reino divino
Limpinho cheirando alecrim

22 novembro 2020

Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

EVANGELHO - Mt 25,31-46

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Quando o Filho do homem vier na sua glória
com todos os seus Anjos,
sentar-Se-á no seu trono glorioso.
Todas as nações se reunirão na sua presença
e Ele separará uns dos outros,
como o pastor separa as ovelhas dos cabritos;
e colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda.
Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita:
'Vinde, bem ditos de meu Pai;
recebei como herança o reino
que vos está preparado desde a criação do mundo.
Porque tive fome e destes-Me de comer;
tive sede e destes-me de beber;
era peregrino e Me recolhestes;
não tinha roupa e Me vestistes;
estive doente e viestes visitar-Me;
estava na prisão e fostes ver-Me'.
Então os justos Lhe dirão:
'Senhor, quando é que Te vimos com fome
e Te demos de comer,
ou com sede e Te demos de beber?
Quando é que Te vimos peregrino e te recolhemos,
ou sem roupa e Te vestimos?
Quando é que Te vimos doente ou na prisão e Te fomos ver?'
E o Rei lhes responderá:
'Em verdade vos digo: Quantas vezes o fizestes
a um dos meus irmãos mais pequeninos,
a Mim o fizestes'.
Dirá então aos que estiverem à sua esquerda:
'Afastai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno,
preparado para o demónio e os seus anjos.
Porque tive fome e não Me destes de comer;
tive sede e não Me destes de beber;
era peregrino e não Me recolhestes;
estava sem roupa e não Me vestistes;
estive doente e na prisão e não Me fostes visitar'.
Então também eles Lhe hão-de perguntar:
'Senhor, quando é que Te vimos com fome ou com sede,
peregrino ou sem roupa, doente ou na prisão,
e não Te prestámos assistência?'
E Ele lhes responderá:
'Em verdade vos digo: Quantas vezes o deixastes de fazer
a um dos meus irmãos mais pequeninos,
também a Mim o deixastes de fazer'.
Estes irão para o suplício eterno
e os justos para a vida eterna».

19 novembro 2020

Da santidade (II)

Resposta ao texto publicado a 17 de Novembro de 2020. É de um bom amigo com muito boa cabeça e conhecedor das coisas da Igreja Católica. Vale a pena ler.

***

Eu percebo muito bem o que diz o JdB. A palavra chave da fórmula de proclamação de Santos que o João cita é esta: “declaramos”. 

Também eu não sei “o que está por trás desta regra [atribuição de milagres] da Igreja para a proclamação de beatos e santos”. Não sei, mas esta minha confessada ignorância não me à afirmação peremptória do João “discordo do processo de canonização seguido pela Igreja”. Mas, repito, percebo o que diz o João. Mas não querendo seguramente, penso que ele está a cair num vício não só de raciocínio mas sobretudo de julgamento das coisas da Igreja. 

Explico porquê. Não é curto, aviso já, mas espero que se perceba. 

Parto dum axioma: a Igreja, feita por homens, ontologicamente falíveis, é fruto da vontade de Deus. Se duas pessoas que estão à conversa não aceitam ambas isto, não vale a pena discutirem sobre a Igreja. Não vale a pena discutir coisas da Igreja com alguém que não é da Igreja, se me faço entender. E não vale a pena discutir, porque não partimos da mesma base de entendimento, não experimentamos a mesma sensação de pertença. Ora, eu vejo a Igreja por dentro, não por fora. Não a vejo como realidade histórica ou sociológica, mas como experiência de Deus. 

Digo isto primeiro para chegar a um ponto nevrálgico: eu sou menos do que a Igreja. Eu sei muito menos, na minha fugaz existência, do que a Igreja. E sobre a experiência eclesial sei muito menos do que muitos sacerdotes, quase todos os bispos e do que o Papa. Há coisas que eu não entendo na Igreja? Há, claro. Mas não presumo que elas sejam más. E presumo que não são más porque têm um selo de garantia. São de uma origem certificada: a Igreja. O facto de eu não perceber, para mim, só significa isso: eu não perceber. Mas eu não discordo de tudo o que não percebo. Há muitas coisas que as crianças não percebem mas que acatam porque vêm da boca autorizada da Mãe. É isso que a Igreja é para mim: a Santa Madre Igreja. 

Não é muito antiga (pelo menos nas suas consequências antropológicas) a defesa do primado do individual sobre o colectivo. Em nome do colectivo, experimentaram-se todas as tiranias, é certo. Mas a alternativa não é o individualismo. O pensamento cristão, tal como o leio, não fala nem no individual nem no colectivo. A nomenclatura católica (mais do que cristã, até) prefere a pessoa ao indivíduo e o comunitário ao colectivo. Sobretudo desde a segunda metade do século XVIII houve uma exacerbação do indivíduo. Aquilo a que chamo uma hipertrofia do “Eu”, tão avessa à cultura católica. Não admira pois que este caldinho cultural tenha aberto fissuras importantes na Igreja. “Eu” passou a ser o sujeito determinante da relação divina, não carecendo da intermediação. O “Eu” passou a poder estabelecer uma relação directa com Deus. O “Eu” subiu quase que em sentido próprio ao Céu e olha agora para a Igreja de lado. Ou melhor, olha para o lado para ver a Igreja, porque ficou no mesmo plano da Igreja. Não é pouco frequente ouvirmos “Para mim, …” e lá vem qualquer coisa que contraria o que é a tradição da Igreja. Esta “desintermediação” é disparatada porque é evidente que não há nenhum “eu” capaz de ombrear com a Igreja. A Igreja tem uma experiência milenar e um conhecimento acumulado de séculos. A Igreja não terá sempre razão e a prova disso é que há coisas que vão evoluindo, mudando, mas uma coisa é certa: o critério da razão não é o “eu”. Não sou eu. É preciso alguma humildade para reconhecer isto. A entronização da vontade individual, da minha vontade, a deificação do voluntarismo, do hedonismo, não é compatível com os ensinamentos evangélicos. 

Conclusão: eu posso ter opinião sobre tudo, mas é atrevimento (para não dizer soberba) entender que a minha opinião é mais qualificada do que a da Igreja. Presumo sempre que a opinião da Igreja é mais qualificada do que a minha e não me tenho dado mal com isso. 

Vamos agora ao ponto. A canonização tem efeitos meramente declarativos. A Igreja limita-se a reconhecer alguém como Santo e a inscrever o seu nome no Catálogos dos Santos… Quero isto dizer que há seguramente santos que nunca foram declarados como tal (daí o dia de todos os santos) e outros que tendo sido declarado santos o não são. 

Cân. 1186 — Para fomentar a santificação do povo de Deus, a Igreja recomen­da à veneração peculiar e filial dos fiéis a Bem-aventurada sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, que Jesus Cristo constituiu Mãe de todos os homens, e promove o verdadeiro e autêntico culto dos outros Santos, com cujo exemplo os fiéis se edifi­cam e de cuja intercessão se valem. 

Cân. 1187 — Só é lícito venerar com culto público os servos de Deus, que foram incluídos pela autoridade da Igreja no álbum dos Santos ou Beatos.

Mas é preciso não confundir a santidade com a bondade. À bondade somos todos chamados. É um apelo de humanidade. A santidade é outra coisa. Ou seja, não há santos que não sejam bons, mas há muitos homens bons que não são santos. Parece-me esta, aliás, uma confusão perniciosa, sendo um perigo tremendo converter o catolicismo numa ética social. O catolicismo – na sua dimensão estritamente religiosa – quase dispensa a alteridade. O que releva é o amor a Deus. Amar a Deus sobre todas as coisas. É certo que a Madre Teresa  viveu “entre os pobres dos mais pobres”, recolheu “milhares de abandonados” e passou fome “para que os outros não a passassem”. Mas isso faz dela uma pessoa boa. Faz dela uma santa pessoa, mas não faz dela uma Santa. Essas condutas são apreensíveis pelos sentidos. Vêem-se. A nossa relação com  Deus é imperceptível. Uma pessoa poderia, em tese, fazer tudo quanto fez a Madre Teresa e rejeitar expressamente a existência de Deus, rejeitar a divindade de Jesus, etc… Seria uma pessoa menos boa por isso? Não… mas não seria seguramente Santa. Porque a Santidade não dispensa essa íntima conversão ao Plano de Deus. No meio dos pobres, no meio dos livros ou no meio do deserto. Deus conhece-nos a cada um e de cada um espera a adesão voluntária, íntima, imperceptível ao Seu plano. Lembro-me sempre daquela passagem bíblica em que Jesus, no meio da multidão, apertados por todos os lados, pergunta: Quem me tocou? (Lc 8,45). Jesus falava dum toque que não se via. Um toque de coração… Para se ser Santo é preciso tocar Jesus… no meio dos pobres, dos livros ou do deserto… é preciso querer tocar no manto de Jesus. 

Não se pense que a Igreja, no processo de canonização, só liga a milagres… não… nada disso. Antes disso, a vida, os escritos, públicos e inéditos, dos “candidatos” são escrutinados… Tenta-se perceber se há alguma coisa que nos leve – aos homens, falíveis – a admitir que o “candidato” não quis tocar em Jesus. Ora, a existência de milagre, a atribuição de um milagre a alguém, tanto quanto sei não é absolutamente necessário, e pode até ser dispensado, mas não há dúvidas de que, se ele existir, é a manifestação “de uma extraordinária intervenção de Deus no espaço da experiência humana”…

Vale a pena transcrever o que o S. João Paulo II ditou em 1983, penso eu, sobre esta matéria.

2) Nestas investigações o Bispo proceda segundo as Normas peculiares a pu­blicar pela Sagrada Congregação para as causas dos Santos, pela ordem seguinte: 

1.º Solicite ao postulador da causa, legitimamente nomeado pelo autor, uma informação cuidadosa acerca da vida do Servo de Deus, e ao mesmo tempo seja ele informado acerca das razões que pareçam aconselhar que se promova a causa da canonização. 

2.º Se o Servo de Deus tiver publicado escritos da sua autoria, o Bispo procure que sejam examinados por censores teólogos. 

3.º Se nada se encontrar nesses escritos contrário à fé e aos bons costumes, o Bispo mande examinar os outros escritos inéditos (cartas, diários, etc.) e ainda outros documentos, de algum modo relacionados com a causa, por pessoas idó­neas para tal, as quais, depois de terem desempenhado esse múnus, elaborem um relatório acerca das investigações feitas. 

4.º Se do que até então tiver sido realizado, o Bispo concluir prudentemente que se pode prosseguir, procure que sejam devidamente examinadas as testemu­nhas apresentadas pelo postulador e outras chamadas oficiosamente. 

Porém, se for urgente examinar as testemunhas para não se perderem as pro­vas, devem ser interrogadas mesmo ainda antes de se ter completado a investiga­ção acerca dos documentos. 

5.º A investigação acerca dos milagres aduzidos faça-se separadamente da investigação acerca das virtudes ou do martírio.         

NP

18 novembro 2020

Entrevistas dos dias que correm

 «Porque é que a política já não precisa dos católicos»

«Entre católicos e política nunca houve lua-de-mel. Todavia, hoje mais do que no passado, o mundo católico parece ter-se tornado terreno fértil para a incursão de homens de poder prontos a instrumentalizá-lo, arrastando-o para posições distantes do Evangelho»: este é o ponto de partida de um estudo equaciona fenómenos como a ostentação de símbolos cristãos para atrair consenso e a divisão entre católicos quanto às opções políticas, como é sugerido por estudos em torno às eleições presidenciais nos EUA.

Fabio Pizzul, presidente da Ação Católica de Milão entre 2002 e 2008, ex-jornalista e atual dirigente regional do Partido Democrático, assina o livro, de título provocador, “Perché l apolítica non há più bisogno dei cattolici” (“Porque é que a política já não precisa dos católicos – A democracia após o Covid-19” (edição italiana Terra Santa, 2020, 160 páginas).

«Se se olha para a política de hoje, que parece ser feita apenas de insultos recíprocos e da busca do recontro a todo o custo, os católicos são pouco funcionais. Se, em vez disso, há a ideia de regressar a uma política que se ocupa do bem comum, que tenta raciocinar e construir o futuro, capaz de ser geradora, então o discurso muda», defende o autor, em entrevista.

A rotura entre “católicos de direita” e “católicos de esquerda” é um esquema difícil de morrer.

Mais do que rotura ou divisão, falaria do legítimo pluralismo que a Igreja (…) reconheceu várias vezes. O pluralismo não é um limite ou uma infelicidade, mas uma legítima diferente interpretação da sociedade e do compromisso dos católicos. No livro procuro explicar porque é importante levar os valores católicos e do Evangelho para o interior da sociedade. Que isso se transforme em recontros e divisões é a propensão da política entendida como recontro. O papel dos católicos não é do estarem alinhados de um lado ou de outro, mas de estar sob os partidos, oferecendo um contributo que possa ser partilhado em chave construtiva por todos.

O presidente da Academia Pontifícia das Ciências Sociais fez-se, recentemente, promotor de um Manifesto por um novo sujeito político de inspiração cristã? Qual a sua opinião?

Há espaço para a iniciativa de todos. Sob duas condições, porém: ninguém se arrogue o direito de exclusividade; se um partido quer ter a representatividade exclusiva dos católicos, julgo que não há espaço político, cultural e lógico. Depois há um outro aspeto que é mais político no sentido técnico: pensar que se possa haver um partido que em nome da inspiração cristã possa recolher todo o eleitorado católico está fora da realidade. No interior do catolicismo já há muitas realidades e sensibilidades.

Esta emergência derivada do Covid-19 tem sido uma dura prova para a democracia, até pela exigência de tomar decisões apressadamente, ultrapassando os parlamentos. Que democracia sairá da pandemia?

É difícil prever, até porque ainda não vemos o fim desta pandemia. A política deve voltar a criar relações significativas entre os vários atores, e reconhecer, no processo de decisão, o seu limite, que dramaticamente experimentámos, porque ficámos todos surpreendidos, por um lado, e vimo-nos impotentes, por outro.

O que significa, concretamente, reconhecer o limite?

Dar espaço às outras competências e ser capaz de envolver as várias sensibilidades. O apelo lançado pelo papa Francisco a 27 de março, numa Praça de S. Pedro vazia, foi claro: estamos todos na mesma barca. Ninguém pode arrogar-se o direito de ser o salvador da pátria, é preciso estarmos juntos e criar relações. Isto, se realizado, torna-se um ponto de força, e não um esboroamento. Nisto, os católicos podem dar um grande contributo, que nasce da credibilidade e da vida da comunidade cristã. No livro explico que o compromisso dos católicos não é individual, mas nasce de uma vida comunitária, e que é um dos caminhos de saída para esta pandemia que nos isola e que arrisca transformar-nos em indivíduos. Deste ponto de vista, os católicos comprometidos na política podem dar um contributo importante.

O que pensa das eleições nos EUA? O eleitorado católico quebrou-se de maneira muito clara entre Biden e Trump.

É uma fenda que diz respeito não só ao mundo católico mas a toda a sociedade americana, e implica diferentes modalidades de olhar a pertença cristã. Nos EUA não se pode falar só de Igreja católica, mas é preciso ter em conta o vasto mundo evangélico e reformado. Julgo que o contributo católico para o debate americano seja o de manter juntas as diversas sensibilidades e identidades. O presidente eleito Biden, nisto, tem a possibilidade de interpretar esta sensibilidade e manter juntas as várias partes, favorecendo um encontro mais do que um recontro. Trump interpreta a política como recontro, Biden, por seu lado, aponta para a política como capaz de unificar, e o seu apelo, no dia a seguir às eleições, à alma da América tem a ver com o seu catolicismo não identitário que pode fundar uma fraternidade, como refere o papa na sua última encíclica, que nasce do terreno de uma pertença civil e social comum.


Rui Jorge Martins

Fonte: Famiglia Cristiana

Publicado pelo SNPC em 17.11.2020


17 novembro 2020

Prazeres dos dias que correm *

 


Da santidade (I parte)

Em 18 de Fevereiro de 2016 publiquei o texto abaixo neste estabelecimento. Repesco-o por dois motivos: primeiro, porque daqui saiu uma troca de mails com um amigo que muito me enriqueceu, e que publicarei nos próximos dias; segundo, porque li um artigo interessante do Filipe Avillez (publicado aqui) sobre o Cardeal McCarrick, demitido do estado clerical após comprovado abuso de menores. O artigo liga-se com a santidade e obrigou-me a repensar alguns critérios.

***

Ad honorem Sanctae et Individuae Trinitatis, ad exaltationem fidei catholicae et vitae christianae incrementum, auctoritate Domini nostri Iesu Christi, beatorum Apostolorum Petri et Pauli ac Nostra, matura deliberatione praehabita et divina ope saepius implorata, ac de plurimorum Fratrum Nostrorum consilio, Beatum N. Sanctum esse decernimos et definimos, et Sanctorum Catalogo adscribimus, statuentes eum in universa Ecclesia inter Sanctos pia devotione recoli debere.

É esta a fórmula que o Papa usa ao proclamar um santo. Em português dir-se-ia assim:

Em honra da Santíssima Trindade, para exaltação da fé católica e incremento da vida cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, e com a Nossa autoridade, depois de ter meditado detidamente, de ter invocado repetidamente a ajuda divina e de ter escutado o parecer de muitos Irmãos nossos no Episcopado, declaramos e definimos Santo o Beato N., incluímos o seu nome no Catálogo dos Santos e prescrevemos que em toda a Igreja seja honrado como Santo.

Este texto vem na sequência de uma notícia que apanhei por aí, que dava conta de ter sido identificado um milagre atribuível a Madre Teresa de Calcutá. Havia um vídeo anexo ao qual, confesso, não prestei a menor atenção. Ainda tenho na memória outros milagres atribuíveis a João Paulo II ou aos pastorinhos de Fátima: gente que se cura não sei de quê, ou que não fica cega (ou recupera a vista) depois de observar uma notícia na TV ou se atirar a uma oração mais devota.

Não sei o que está por trás desta regra da Igreja para a proclamação de beatos e santos. Tenho ideia de me terem dito que data da Revolução Francesa, e da necessidade da igreja dar uma nota de sobrenatural / inexplicável / divino a alguns acontecimentos. 

Não tenho, confesso também, devoção por santos. Tenho admiração por eles – pelas suas virtudes heróicas, pelo seu martírio em nome da fé, por uma vida inteira dedicada ao próximo. Para isso, no entanto, os santos têm de ser-me razoavelmente contemporâneos. As bondades do Santo Condestável dizem-me pouco, talvez mesmo nada. Frei Bartolomeu dos Mártires goza de um estatuto privilegiado para ascender aos altares. Viveu no início dos séc. XVI... Na outra ponta do espectro, Madre Teresa de Calcutá viveu na minha época, assim como João Paulo II. Maximiliano Kolbe, que dirá pouco ao conjunto dos portugueses, morreu num campo de concentração, oferecendo-se para que um companheiro de caserna não tivesse esse destino. São gente do séc. XX, cujas vidas são contadas (quase) em directo, de quem tiramos virtudes actuais, modernas, dos dias de hoje e requeridas pelas realidades de hoje.

Não consigo rezar aos pastorinhos de Fátima nem a S. Judas Tadeu que me foi sugerido em 2001, ano de todos os acontecimentos. No dia dos meus anos a Igreja lembra S. Higino, papa e mártir. Fixo a efeméride por graça, porque o santo está tão longe no tempo que não constitui um exemplo a imitar.

Discordo do processo de canonização seguido pela Igreja. O grande milagre da Madre Teresa não foi uma feliz mortal que, nos confins não sei de onde, foi beneficiada por uma luz que só ela viu e que a ciência ainda não explica. O milagre de Madre Teresa é a vida dela entre os pobres dos mais pobres; o milagre da vida dela são os milhares de abandonados que recolheu, a fome que ela passou para que os outros não a passassem; o milagre da vida dela são as vocações que gerou, a multidão de raparigas e mulheres que, por esse mundo fora, deixaram tudo (e eu conheço uma, amiga da juventude) porque foram tocadas por ela, pela sua obra e Amor ao próximo.

JdB

16 novembro 2020

Música e poema dos dias que correm

 


Simplicidade


Queria, queria
Ter a singeleza
Das vidas sem alma
E a lúcida calma
Da matéria presa.

Queria, queria
Ser igual ao peixe
Que livre nas águas
Se mexe;

Ser igual em som,
Ser igual em graça
Ao pássaro leve,
Que esvoaça...

Tudo isso eu queria!
(Ser fraco é ser forte).
Queria viver
E depois morrer
Sem nunca aprender
A gostar da morte.   

Pedro Homem de Mello, in "Estrela Morta"

15 novembro 2020

XXXIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 25,14-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola:
«Um homem, ao partir de viagem,
chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens.
A um entregou cinco talentos, a outro dois e a outro um,
conforme a capacidade de cada qual; e depois partiu.
O que tinha recebido cinco talentos
fê-los render e ganhou outros cinco.
Do mesmo modo,
o que recebera dois talentos ganhou outros dois.
Mas, o que recebera dois talentos ganhou outros dois.
Mas, o que recebera um só talento
foi escavar na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor.
Muito tempo depois, chegou o senhor daqueles servos
e foi ajustar contas com eles.
O que recebera cinco talentos aproximou-se
e apresentou outros cinco, dizendo:
'Senhor, confiaste-me cinco talentos:
aqui estão outros cinco que eu ganhei'.
Respondeu-lhe o senhor: 'Muito bem, servo bom e fiel.
Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes.
Vem tomar parte na alegria do teu senhor'.
Aproximou-se também o que recebera dois talentos e disse:
'Senhor, confiaste-me dois talentos:
aqui estão outros dois que eu ganhei'.
Respondeu-lhe o senhor: 'Muito bem, servo bom e fiel.
Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes.
Vem tomar parte na alegria do teu senhor'.
Aproximou-se também o que recebera um só talento e disse:
'Senhor, eu sabia que és um homem severo,
que colhes onde não semeaste e recolhes onde nada lançaste.
Por isso, tive medo e escondi o teu talento na terra.
Aqui tens o que te pertence'.
O senhor respondeu-lhe: 'Servo mau e preguiçoso,
sabias que ceifo onde não semeei e recolho onde nada lancei;
devias, portanto, depositar no banco o meu dinheiro
e eu teria, ao voltar, recebido com juro o que era meu.
Tirai-lhe então o talento e dai-o àquele que tem dez.
Porque, a todo aquele que tem,
dar-se-á mais e terá em abundância;
mas, àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado.
Quanto ao servo inútil, lançai-o às trevas exteriores.
Aí haverá choro e ranger de dentes'».

13 novembro 2020

Pensamentos dos dias que correm

A Vida é um Hábito

O hábito é o balastro que prende o cão ao seu vómito. Respirar é um hábito. A vida é um hábito. Ou melhor, a vida é uma sucessão de hábitos, porque o indivíduo é uma sucessão de indivíduos [...] «Hábito» é pois o termo genérico para os inúmeros contratos celebrados entre os inúmeros sujeitos que constituem o indivíduo e os seus inúmeros objectos correlativos. Os períodos de transição que separam as consecutivas adaptações [...] representam as zonas perigosas na vida do indivíduo, perigosas, penosas, misteriosas e férteis, em que, por um momento, o tédio de viver é substituído pelo sofrimento de ser.

Samuel Beckett, in 'À Espera de Godot'

***

As Leis da Consciência Nascem do Hábito

As leis da consciência, que dizemos nascerem naturalmente, nascem do hábito; toda a pessoa, venerando intimamente as ideias e costumes aprovados e aceites ao seu redor, não pode desligar-se deles sem remorso nem se aplicar neles sem aplauso.

(...) Mas o principal efeito do seu poder é apoderar-se de nós e prender-nos nas suas garras de tal forma que mal nos conseguimos libertar do seu jugo e voltar a nós para reflectirmos e raciocinarmos sobre as suas ordens. Na verdade, porque o ingerimos com o leite do nosso nascimento, e porque a face do mundo se apresenta nesse estado ao nosso primeiro olhar, parece que nascemos para seguir esse procedimento. E as ideias comuns que vemos ser respeitadas ao nosso redor e infundidas na nossa alma pela semente dos nossos pais parecem ser as gerais e naturais.

Disso advém que o que está fora dos gonzos do costume, julgamo-lo fora dos gonzos da razão - Deus sabe quão desarrazoadamente, quase sempre.

Michel de Montaigne, in 'Ensaios'

12 novembro 2020

Poemas dos dias que correm

Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado

***


Janela

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.

Adélia Prado

11 novembro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

MEDIA OPTIMISTAS – ALGUÉM CONHECE? 

Talvez valha a pena começar pela pergunta prévia: faz sentido recomendar optimismo aos jornalistas? A ideia não é denunciarem o que está errado? Um grande profissional dos Países Baixos acha que o optimismo não é incompatível com a profissão, que exerce há quatro décadas procurando um sentido vitamínico para tudo o que divulga, com o objectivo de espalhar ´energia positiva´ urbi et orbi. Claro que a fidelidade aos factos é condição sine qua non, nem de outro modo a inspiração positiva teria sustentação sólida. Precisamente, a tese de Charles Groenhuijsen (CG) tem a ver com dados novos surgidos recentemente, que atualizam o tema do gin de 3 de Junho, onde ficou o alerta para a tentação dos media em manipularem imagens e notícias a seu bel prazer, muitas vezes, motivados pelo lucro. Sim, a catástrofe e a bizarria parecem atrair mais leitores /consumidores do que as boas notícias.   

No tal gin do início de Junho, resumi o curiosíssimo percurso mediático de uma fotografia especialmente expressiva, que circulou na net em contextos novos, assumindo uma elasticidade que indiciava boa dose de manipulação por parte da imprensa e de ONGs. Sobre as metamorfoses de que a imagem foi alvo, constava no gin: “(…), a história da divulgação da fotografia que se segue, é a melhor prova desse potencial, por vezes, a poder rasar alguma manipulação “ [2º parágr. do texto postado a 3 de Junho]. Na história contada em Junho faltou a primeira etapa, curiosamente nos antípodas da versão que tornou famosa a fotografia na net como expoente da pequena órfã que teria representado a mãe perdida. Ou seja, mediatizou-se num patamar fabricado para servir determinado propósito, ignorando abusivamente os factos de origem, que nunca citou. 

É verdade que a arte pode ter um alcance muito mais plural e diverso do que o concebido pelo artista, desde que se respeitem e clarifiquem as autorias e nunca se confundam interpretações ou ilustrações livres e posteriores, com factos.  Na imagem inicial, a criança no meio do desenho não era órfã e foi apanhada em plena sesta por uma fotógrafa (sua conhecida) do Médio Oriente, que aproveitou o seu sono para a desenhar dentro de uma figura a giz, num jogo comum por aquelas paragens, de gravar croquis no alcatrão.  

A composição, nascida como uma brincadeira com arte, atingiu tal força, que se tornou pasto de utilizações bem diversas entre si e, mais ainda, da realidade original. Claro que a circunstância feliz da menina da fotografia não é, per se, um impeditivo a que a imagem também seja escolhida para metáfora do sofrimento infantil por aquelas paragens, numa figuração sugestiva da saudade de milhares de crianças contemporâneas daquela e condenadas à orfandade pela guerrilha criminosa que grassa pelo Iraque, Síria, Líbano, Palestina, Egipto, Turquia, etc. Tudo está em deixar explícita a nova conotação metafórica e referir o contexto real (positivo, por acaso) da primeira imagem. O erro começa quando se toma a nova interpretação por factual, escondendo tratar-se de uma figuração livre de outras circunstâncias de vida. 

Significativamente, o estigma negativo que ficou associado à imagem é um exemplo perfeito do pessimismo com que os media costumam contaminar o ângulo noticioso sobre o que se passa no mundo. Ao acentuarem a carga negativa da realidade, acabam por a desvirtuar, falhando a sua missão informativa. Isto confirma a validade do alerta do jornalista holandês CG, pouco a ver com o main stream mediático. CG vai mais longe e defende mesmo que o objectivo dos meios de comunicação social é contribuir para um mundo melhor, cabendo-lhes incutir ânimo, sem faltarem à verdade. Essa a arte de ser jornalista! Era difícil navegar mais em contra-corrente… mas felizmente que se atreve:

No rescaldo das empolgantes presidenciais norte-americanas e para lá de quem venha a ocupar a Casa Branca, é justo lembrar o cariz muito positivo e optimista da nação que tem sido “a terra de oportunidades”, naturalmente, em primeira instância para os mais talentosos e empreendedores, saudáveis etc. Ainda assim, aos poucos, o American dream também se tem estendido a gente de origens e condições menos favoráveis, alguns com handicaps crónicos que os condenariam à indigência no seu país de origem. Por isso, milhares de emigrantes tentam a sorte na (ainda) super-potência, polo de atracção preferencial para quem se queira lançar à vida. Há uns anos, no Colorado, emergiu uma iniciativa de sucesso para a reeducação dos prisioneiros: treinar cavalos selvagens. A intenção é inculcar nos presidiários a paciência, a perseverança e o desvelo que, quase sempre, lhes faltou na infância. Foram lacunas que os arrastaram para uma agressividade descontrolada, frequentemente em modo de sobrevivência desesperado. É espantosa, que a inscrição na Estátua da Liberdade – o célebre presente francês ao jovem país do outro lado do Atlântico – reze assim: «Give me your tired, your poor, your huddled masses yearning to breath free. I lift my lamp beside the golden door», disponível para acolher os rejeitados do mundo (ocidental, na primeira fase). Por muito esquecida que esteja a estrofe heroica (muito antes de Trump, diga-se, em abono da verdade), o simples facto de continuar a existir já possibilita que possa reacordar como uma Bela Adormecida. Está no sítio certo para devolver à Estátua a nobre missão com que nasceu. 

A concluir, o discurso do grande John Mc’Cain na noite em que soube da derrota eleitoral contra Barack Obama. Aquelas palavras, recuando a 2008, mostram-nos o melhor da outra margem do Atlântico, onde houve e há gente desta envergadura, ainda que menos fotografada pelos media. Valem por si, enquanto testemunho de uma grandeza humana que insufla esperança, apesar e para lá da perda circunstancial. Não as cito como arma de arremesso contra ninguém, nem Trump. Aliás, confio ainda na qualidade da democracia norte-americana para deslindar situações menos claras e saber lidar com todo o tipo de pessoas, incluindo a menos dóceis e com mais poder, se for o caso. Mc’Cain protagonizou aqui mais um episódio que merece ser recordado, porque é vitamínico, à maneira de CG. Assim, ajudará sempre a elevar o patamar político de uma nação marcada por enormes contrastes, por vezes, no limite da contradição. Mas se há nação importante para a Europa está à nossa frente, na outra margem do oceano que partilhamos. Bem lhes podemos desejar a melhor sorte e muita gente com esta elevação e este patriotismo lúcido, generoso, intemporal:

https://www.facebook.com/NowThisPolitics/videos/john-mccains-2008-concession-speech-to-barack-obama/1004543326713774/

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

09 novembro 2020

Dos escritores e da indústria dos cabelos *

A primeira mentira de Rui seria perdoada em qualquer referencial de justiça digno desse nome: afirmou, a pés juntos, que tinha 18 anos quando ainda lhe faltavam alguns meses. Precisava de dinheiro, de emprego, e ser ajudante de barbeiro pareceu-lhe algo decente. Talvez não condigno, que não conheceria a palavra, nem a ideia de que, tantas e tantas vezes, é o homem que dá dignidade ao trabalho, não a inversa. Começou a trabalhar num dia sombrio de Março, com uma chuva miudinha e um frio de enregelar os ossos: varria cabelos, lavava as alfaias próprias do mister de barbeiro, virava as almofada das cadeiras, porque uma almofada aquecida pelo cliente anterior parecia algo promíscuo, ia trocar dinheiro ao café da D. Ester, arrecadava uma esmola de alguém mais generoso, limpava espelhos, ouvia as conversas dos clientes: futebol, política, a carestia da vida e os gastos das esposas.

Mas Rui era um jovem adolescente diferente da maioria. Saía do serviço e, chegado a casa, lia desenfreadamente: Camilo, Eça, Alves Redol, Ruben A, as traduções de Balzac ou de Dumas, uma aventura breve por Hardy ou por Keats, as delícias dos brasileiros. Gastava todo o dinheiro que tinha em livros - de bolso, em segunda mão, em traduções menos boas, por empréstimo ou por oferta. Arrastou-se nesta actividade durante anos - primeiro como ajudante de barbeiro e, posteriormente, como barbeiro. Aos 28 anos cruzou-se numa livraria de bairro com Irene, professora de ioga recém-formada num curso à distância, com desejos de conhecer a índia onde, tinha a certeza, nascera o ioga, a meditação, o sossego da mente e a leveza do espírito. Também podia ter nascido o caril e o chicken masala, mas isso era-lhe indiferente. Casaram e seis meses depois nascia o Vítor, um rapagão de quase 4 quilos e uma madeixa preta que lhe caía sobre uns olhos ligeiramente estrábicos.

Rui lia muito e especializava-se nos cortes da moda: gestores, futebolistas, pessoas normais, um ou outro Secretário de Estado, banqueiros e bancários, astrónomos e astrólogos (duas classes que se diferenciam pela terminação o que, neste caso, não dá prémio). Irene queixava-se da ausência do marido, na sala ou na cama, já que ele se entretinha com Bernardo Santareno, Oscar Wilde, Yourcenar ou Jorge Amado nas horas em que não aparava bigodes, não cortava cabelos à francesa ou não se preocupava com o alinhamento das patilhas. Rui gostava de ler, amaldiçoava a vida de barbeiro - limitada e limitadora - e refugiava-se na leitura para criar um mundo seu, onde não entrava a comida indiana nem o sossego da mente. Lia, e desejava que Vítor escolhesse outra vida, que aquela de barbeiro não levava a nada. Mas Vítor começou aos 18 anos a varrer cabelos, a trocar dinheiro no café da filha da D. Ester, a ouvir conversas sobre os sacanas dos ministros, os incompetentes dos treinadores e as gajas que agora só queriam mandar. 

Um dia, Vítor participou que largava aquela vida. Jantavam em casa, ele e os pais: biryani de legumes, arroz doce caseiro, José Rodrigues Miguéis e a posição encarando o cão, que Irene tinha aprendido, não no contacto com um rafeiro na rua, mas num curso por correspondência com um, dizia ela com garbo, rabi indiano. Vitor endireitou-se, pousou a colher da qual retirou o último bago de arroz com aroma de vanilina, e olhou para o pai, que lhe disse. 

- Acho muito bem que mudes de vida filho; o ramo dos cabelos não te leva a lado nenhum.

- Não é bem assim, papá. Não vou largar o ramo dos cabelos...

- Como assim, Vítor? Achei que mudavas de vida para perseguir algo mais promissor...   

- Vou para cabeleireiro, papá...

- Como assim, cabeleireiro?

- Pagam mais, papá; é só isso...


JdB 

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Baseado num apontamento de Somerset Maugham em "A Writer's Notebook".

08 novembro 2020

XXXII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 25,1-13

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola:
«O reino dos Céus pode comparar-se a dez virgens,
que, tomando as suas lâmpadas, foram a
o encontro do esposo.
Cinco eram insensatas e cinco eram prudentes.
As insensatas, ao tomarem as suas lâmpadas,
não levaram azeite consigo,
enquanto as prudentes,
com as lâmpadas, levaram azeite nas almotolias.
Como o esposo se demorava,
começaram todas a dormitar e adormeceram.
No meio da noite ouviu-se um brado:
'Aí vem o esposo; ide ao seu encontro'.
Então, as virgens levantaram-se todas
e começaram a preparar as lâmpadas.
As insensatas disseram às prudentes:
'Dai-nos do vosso azeite,
que as nossas lâmpadas estão a apagar-se'.
Mas as prudentes responderam:
'Talvez não chegue para nós e para vós.
Ide antes comprá-lo aos vendedores'.
Mas, enquanto foram comprá-lo, chegou o esposo.
As que estavam preparadas
entraram com ele para o banquete nupcial;
e a porta fechou-se.
Mais tarde, chegaram também as outras virgens e disseram:
'Senhor, senhor, abre-nos a porta'.
Mas ele respondeu:
'Em verdade vos digo: Não vos conheço'.
Portanto, vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora.

06 novembro 2020

Poemas dos dias que correm

Sonho


Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho

umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol

quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.

Agostinho da Silva, in 'Poemas'

***

Revolução

Pena que as revoluções
não as façam os tiranos
se fariam bem em ordem
durariam menos anos

liberdade sairia
como verba de orçamento
e se houvesse qualquer saldo
se inventava suplemento

pagamento em dia certo
daria para isto aquilo
o que sobrasse guardado
de todo o assalto a silo

mas o que falta aos tiranos
é só imaginação
e o jeito na circunstância
é mesmo a revolução.

Agostinho da Silva, in 'Poemas'

04 novembro 2020

Carta a um anjo

Foi hoje, mas há 19 anos.

Cruzo-me com uns avós, escrevo a uma amiga que vive no Brasil, sei notícias de alguém que me foi apresentado virtualmente. Não se conhecem entre si, mas têm algo forte em comum: no seu círculo afectivo muito próximo (mais próximo seria difícil) há uma criança com cancro. Uma tem um ano, as outras talvez 6 ou 7 ou 8, por aí. São crianças, não mais do que isso, para quem a pandemia é uma espécie de sufoco em cima de uma angústia. Viram-se privadas de contactos sociais importantes, nos corredores do 7º piso do IPO de Lisboa (um oásis de humanidade e competência num deserto de aflições)  foram proibidos as competições de triciclo, já não há crianças a fazerem corridas entre si - ou com o destino que lhes foi reservado.

São tempos difíceis. Nas Filipinas há crianças com tratamentos em risco, que o tufão dos últimos dias lhes levou telhado e chão e casa e conforto e talvez remédios. Em Beirute tenta-se a reconstrução possível, o retorno à vida normal em cima de escombros de hospitais onde outras crianças lutavam por um futuro mais normal. Noutros sítios - em África, talvez, em cada dez crianças diagnosticadas oito não festejam a cura, porque os remédios não chegam, porque as redes de transporte impedem o regresso aos tratamentos, porque não há diagnóstico precoce.

Vejo os avós na missa, não sei se a mãe que não conheço é crente, recebo do Brasil um texto de que retiro este parágrafo: Falamos tanto de fé inabalável, mas confesso que a minha balançou. E é muito difícil assumir isso. Que vergonha. Que tipo de fé era a minha, condicionada aos meus desejos? Anos e anos, rezando o Pai Nosso, repetindo sempre a frase “Que seja feita a tua vontade”, mas no primeiro momento em que não é a minha vontade eu me enfureci. Recuo 19 anos, aos meus pedidos simples mas que inverteriam o mundo: para que se cure, para que não sofra, para que não me azede com o mundo.

Nenhuma vida ensina mais do que outra, embora se diga que aprendemos mais com os nossos sofrimentos do que com os nossos contentamentos. Acontece que a pergunta que define um caminho e que assenta em perguntar para quê?, em vez de perguntar porquê? é aplicável a tudo, embora perguntemos porque nos acontece o mal e não porque nos acontece o bem. Mas o desafio também deveria ser este: o que faço com esta vida boa que tenho? 

Hoje, mas há 19 anos (e para este efeito alguns meses), fui confrontado com uma janela por onde olhei para um mundo que não conhecia: o mundo das crianças com cancro de , o mundo do espanto, da aflição, das perguntas sem resposta, das procuras de sentido, dos desalentos e das proximidades afectivas. Hoje, 19 anos depois, vejo também o mundo das crianças com cancro de , o mundo das estatísticas desafiantes, dos abandonos dos tratamentos, da determinação dos médicos em inverter o rumo das coisas, dos tufões ou explosões que fazem tábua rasa de tudo. 

À janela por onde espreito o mundo há sempre um anjo a indicar-me o caminho. Assim eu o saiba seguir.

J, 

em nome de todos os que te amaram porque te viram e conheceram, e em nome de todos aqueles que te amaram sem nunca te terem conhecido 

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