29 setembro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

ARMADILHA DA NOUVELLE CUISINE

Há uns anos, circulou um texto atribuído a Rui Vieira Nery (RVN) sobre a moda dos Chefes e da panóplia de novidades com que revolucionaram e também desassossegaram a ida ao restaurante. Em vez de esclarecedores, os menus encriptaram-se com termos estranhos ao universo gastronómico e incontáveis estrangeirismos. Óbvio mesmo foi o descarte da cozinha tradicional, pelo menos a portuguesa: rica, farta e descomplicada. 

Como se a nomenclatura indecifrável fosse pouco, ainda veio a redução abrupta das quantidades, demasiado evidente porque o tamanho dos pratos de porcelana se manteve. O cocuruto de outrora deu lugar a um minúsculo epicentro comestível, enquadrado por um emaranhado de pingos a enfeitar ou, melhor, a preencher o vazio da loiça, qual arte efémera. Passou a investir-se no efeito estético (nem sempre conseguido), tomando-se à letra a boa divisa de que também ‘se come com os olhos’, embora não apenas… Naturalmente que a ideia é o cliente embarcar na modalidade ‘menu degustação’ – quase sempre cansativa pela extensão e uma carestia – para ter acesso a um rodopio de amostras de comida, que tentam somar a massa crítica adequada à dieta alimentar de adultos saudáveis.   

A legenda é eloquente sobre o cariz do prato e da moda: «nouvelle cuisine delicada»,
equivalendo delicado por etéreo, desmaterializado ou invisível

Apanhámo-nos assim numa era, onde a mera lembrança da refeição simples e divinal servida ao Jacinto numa povoação perdida do Norte de Portugal, faz crescer água na boca! Aliás, para quem dispense doses avantajadas, a canja suculenta que deliciou o protagonista de «As cidades e as Serras» já dará uma refeição muito aconchegante. 

De facto, para lá das quantidades exíguas, falta à frieza laboratorial das cozinhas vanguardistas, o desvelo maternal que embeveceu Jacinto e o libertou do “mal de vivre” em que se enfastiara na glamorosa Paris do século XIX. A beleza arquitectónica (quando há) que aterrou nos pratos da actualidade, aproxima-se mais de uma peça de museu cristalizada, que conviria deixar intacta. Percebe-se por que RVN fala do sentido de comunidade das boas cozinheiras de outros tempos. Podíamos acrescentar a ternura e a generosidade, que transbordam das suas mesas: 

As cozinheiras do antigamente...

Antigamente as cozinheiras dos bons restaurantes portugueses eram umas Senhoras rechonchudas e coradas, em geral já de idade respeitável, com nomes bem portugueses ainda a cheirar a aldeia – a D. Adozinda, a D. Felismina, a D. Gertrudes – e por vezes com uma sombra de buço que parecia fazer parte dos atributos da senioridade na profissão.

Tinham começado por baixo e aprendido o ofício lentamente, espreitando por cima do ombro das mais velhas. E tinham apurado a mão ao longo dos anos, para saberem gerir cada vez com mais mestria a arte do tempero, a ciência dos tempos de cozedura, os mistérios da regulação do lume.

A escolha dos ingredientes baseava-se numa sabedoria antiga, de experiência feita, que determinava o que “pertencia” a cada prato, o que “ia” com quê, os sabores que “ligavam” ou não entre si.

Traziam para a mesa verdadeiras obras de arte de culinária portuguesa, com um brio que disfarçavam com a falsa modéstia dos diminutivos – “Ora aqui está o cabritinho”..., -  “Vamos lá ver se gosta do bacalhauzinho”... - , “Olhe que o agriãozinho é do meu quintal”...

Ficavam depois a olhar discretamente para nós, para nos verem na cara os sinais do prazer de cada petisco, mesmo quando à partida já tinham a certeza do triunfo, porque cada novo cliente satisfeito era como uma medalha de honra adicional. E a melhor recompensa das boas Senhoras era o apetite com que nos viam: “Mais um filetezinho?” “Mais uma batatinha assada?”.

Hoje em dia, ao que parece, nestes tempos de terminologias filtradas, já não há cozinheiros, há “chefes”, e a respectiva média etária ronda a dos demais jovens empresários de sucesso com que os vemos cruzarem-se indistintamente nas páginas da “Caras” e da “Olá”.

Os nomes próprios seguem um abcedário previsível – Afonso, Bernardo, Caetano, Diogo, Estêvão, Frederico, Gonçalo, … – e os apelidos parecem um anuário do Conselho de Nobreza, com uma profusão ostensiva de arcaísmos ortográficos que funcionam como outros tantos marcadores de distinção – Vasconcellos, Athaydes, Souzas, Telles, Athouguias, Sylvas…

Quase nunca os vemos, claro, porque os deuses só raramente descem do Olimpo, mas somos recebidos por um exército de divindades menores cuja principal função é darem-nos a entender o enorme privilégio que é podermos aceder a semelhante espaço tão acima do nosso habitat social natural.

A explicação da lista é, por isso, um longo recitativo barroco, debitado em registo enjoado, em que, mais do que dar-nos uma ideia aproximada das escolhas possíveis, se pretende esmagar-nos com a consciência da nossa pressuposta inadequação à cerimónia em curso.

A regra de ouro é, claro, o inusitado das propostas culinárias em jogo e, preferivelmente, a sua absoluta ininteligibilidade para o cidadão comum. Mandam, pois, o bom senso e o próprio instinto de auto-defesa que se delegue na casa a escolha do menu, sabendo-se, no entanto, que não vale a pena sonhar com que pelo meio nos apareça um pobre cabrito assado no forno, um humilde sável com açorda, ou uma honesta posta de bacalhau preparada segundo qualquer das “Cem Maneiras” santificadas das nossas Avós.

Seja o que Deus quiser! E começam então a chegar a “profiterolle de anchova em cama de gomos de tangerina caramelizados, com espuma de champagne”, o “ceviche de vieira com molho quente de chocolate branco e raspa de trufa”, a “ratatouille de pepino e framboesa polvilhada com canela e manjericão”, e por aí fora, em geral com largos minutos de intervalo entre cada prato e o seguinte, para nos dar tempo de meditar sobre a experiência numa espécie de retiro espiritual momentâneo…

E é de experiência que se pode aqui falar no sentido mais fugaz do termo. Deliciosa ou intragável, a oferta tende a ser, por princípio, “one time only”, porque quando o empregado anuncia, na sua meia voz enfadada, o “camarão salteado em calda de frutos silvestres e açafrão”, o uso do singular não é metafórico – é mesmo um exemplar único da espécie que se nos apresenta em toda a sua glória, ainda que possa reinar isolado no meio de um prato em que em tempos caberia um costeletão de novilho com os respectivos acompanhamentos.

Se se detestar, há pelo menos a consolação de que não haverá qualquer hipótese de reincidência do crime; se se adorar – o que há que reconhecer que muitas vezes acontece – ficará apenas a memória fugidia do prazer inesperado.

A função do “chefe” é proporcionar-nos no palato esta sucessão de sensações momentâneas irrepetíveis, todas elas em doses cuidadosamente homeopáticas, um pouco como as configurações sempre novas de um caleidoscópio – ou, se se preferir uma imagem mais forte, como a versão gastronómica de uma poderosa substância alucinogénea, daquelas que faziam as delícias da geração hippie dos anos 60 quando lhes davam a ver, ora elefantes cor-de-rosa, ora hipopótamos azul-celeste. Wow!

Que saudades das Donas Adozindas, das Donas Felisminas, das Donas Gertrudes, mais camponesas ainda do que citadinas, com a sua sabedoria, as suas receitas de família, a sua simplicidade, a sua fartura, o seu gosto de servir bem, o seu sentido de tradição e de comunidade.»

Rui Vieira Nery

Será que estas modas extremistas, caras e algo descarnadas terão longevidade?… 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


28 setembro 2021

Da feminilidade

Sou um senhor antigo, pelo que a utilização da expressão sou do tempo de... se me aplica com propriedade, ainda que uma pessoa que tenha nascido nos anos 70 possa dizer que é do tempo de... O que é facto (ou pelo menos uma impressão muito forte) é que há 45 ou 50 anos as raparigas eram femininas. Isto é, usavam-se mais vestidos ou mais saias - roupa mais característica das mulheres. Todas as raparigas das minha adolescência tinham figura para usar vestidos ou saias? Não! Algumas talvez não tivessem grandes figuras, mas o facto de usarem um traje mais feminino obrigava-as (e talvez elas detestassem) a uma postura física mais contida. 

Estou certo de que a generalização de utilização das calças permitiu às mulheres um maior conforto, com menos cuidados ou preocupações com a forma como se sentam ou andam. No entanto, se isto é um benefício - e estou certo que é - também tem um senão: o facto de estarem mais à vontade pode levar a que, por vezes, estejam mais à vontadinha, perdendo-se aquele toque elegante e feminino tão do agrado de algumas pessoas.

Vem este arrazoado a propósito de uma cena a que assisti neste fim de semana num centro comercial. Uma rapariga nova jantava com amigas, todas elas, talvez, de calças e sentadas à vontade. Ela, esta rapariga, composto, discreta, elegante e feminina. Porquê? Porque estava de traje académico. A saia não a constrangia, não a obrigava a nada - a feminilidade dela era natural e isso via-se bem, porque ela aparentava estar bem naquela pele de saia pelos joelhos. Estivesse ela de calças e lá se ia a feminilidade toda. Sim, muitas vezes o hábito faz o monge.

JdB 

26 setembro 2021

XXVI Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 9,38-43.45-47-48

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
João disse a Jesus:
«Mestre,
nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais;
porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim.
Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que crêem em Mim,
melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

24 setembro 2021

Textos dos dias que correm

A Poesia não se Inventou para Cantar o Amor

A poesia não se inventou para cantar o amor — que de resto não existia ainda quando os primeiros homens cantaram. Ela nasceu com a necessidade de celebrar magnificamente os deuses, e de conservar na memória, pela sedução do ritmo, as leis da tribo. A adoração ou captação da divindade e a estabilidade social, eram então os dois altos e únicos cuidados humanos: — e a poesia tendeu sempre, e tenderá constantemente a resumir, nos conceitos mais puros, mais belos e mais concisos, as ideias que estão interessando e conduzindo os homens. Se a grande preocupação do nosso tempo fosse o amor — ainda admitiríamos que se arquivasse, por meio das artes da imprensa, cada suspiro de cada Francesca. Mas o amor é um sentimento extremamente raro entre as raças velhas e enfraquecidas. Os Romeus, as Julietas (para citar só este casal clássico) já não se repetem nem são quase possíveis nas nossas democracias, saturadas de cultura, torturadas pela ansia do bem-estar, cépticas, portanto egoístas, e movidas pelo vapor e pela electricidade. Mesmo nos crimes de amor, em que parece reviver, com a sua força primitiva e dominante, a paixão das raças novas, se descobrem logo factores lamentavelmente alheios ao amor, sendo os dois principais aqueles que mais caracterizam o nosso tempo: o interesse e a vaidade. Nestas condições, o amor que voltou a ser, como na Grécia, um Cupido pequenino e brincalhão, que esvoaça, surripiando aqui e além um prazer fugitivo — é removido para entre os cuidados subalternos do homem, muito para baixo do dinheiro, muito para baixo da política... É uma ocupação, sem malícia o digo, que se deixa para quando acabar o dia verdadeiro e útil, e com ele os negócios, as ideias, os interesses que prendem. «Já não há hoje nada de produtivo a fazer? Já não há nada de sério em que pensar?... Bem! Então, um pouco de perfume nas mãos, e abra-se a porta ao amor que espera!» A isto está reduzida a Vénus fatal e vencedora!
Ora quando uma arte teima em exprimir unicamente um sentimento que se tornou secundário nas preocupações do homem — ela própria se torna secundária, pouco atendida e perde a pouco e pouco a simpatia das inteligências. Por isso hoje, tão tenazmente, os editores se recusam a editar, e os leitores se recusam a ler, versos em que só se cante de amor e de rosas. E o artista que não quer ser uma voz clamando no deserto e um papel apodrecendo no armazém, começa a evitar o amor como tema essencial da sua obra.

Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes'

22 setembro 2021

Das novelas e da ficção científica

 Declaração de interesses: não sou especialista em cinema. Em bom rigor não sou especialista em nada.

***

Assumamos que há filmes de ficção científica e filmes de antecipação científica. Os primeiros abordam realidades do mundo da mais absoluta e desregrada imaginação, de um futuro apenas concebido, provavelmente nunca tornado realidade. Os segundos abordam realidades possíveis do futuro. Não se sabe se acontecerão, mas é possível que aconteçam. Entre uns e outros falamos de Regresso ao Futuro, Logan, Star Wars, A Origem, etc.

As novelas portuguesas, cujos nomes desconheço em grande medida, são exemplos de filmes de ficção científica. É certo que não há torres de marfim em Marte, que não há pessoas verdes ou robotizadas, que não há transmutações através da introdução de uma password numa pulseira feita de kryptonite. E, no entanto, embora as pessoas sejam de carne e osso, andem em carros actuais, se chamem Ana, Manuel, Vanda, Ulisses ou Nelson (e não Ur ou M-327) e circulem em locais que parecem do nosso tempo, nada daquilo existe, é uma ficção: ninguém vive em moradias sem entradas, ninguém vive num país onde nunca chove ou faz frio, ninguém tem pequenos almoços com sumos exóticos e bolos sempre feitos de novo. E, por outro lado, ninguém vive uma realidade onde a iluminação é sempre igual - como me disseram no outro dia, como se fosse numa cervejaria, tudo iluminado por cima. Por último, ninguém tem irmãos gémeos que desaparecem ou aparecem tardiamente, filhos que não são dos pais ou que foram roubados de um hospital, ministros que nunca trabalham.

Há umas semanas segui uma série inglesa no Canal 2 intitulada O Último Tango em Halifax. Podia falar da qualidade dos actores, mas também não precisamos de ir por aí. A trama passa-se em casas / famílias diferentes: uma família mais urbana com alguma qualidade de vida e formação académica, outra mais rural, com pessoas como menor formação / educação. O que se come em cada casa é diferente, a forma como se come é diferente, a iluminação é diferente, a forma de falar é diferente. Por último, mas não menos importante, tudo aquilo que se diz ou sente é verosímil, o que retira a série da classificação de ficção científica. 

Amantes do género: vejam novelas portuguesas, porque nada daquilo se passará nunca. A verosimilhança de uma novela é nula; no fundo, tal como é nula a possibilidade de me crescerem garras de urso na ponta dos dedos. 

JdB


20 setembro 2021

Crónicas de um doutorando tardio

Voltei aos bancos da faculdade 18 meses depois de lá ter saído - em Março de 2000, quando a expressão pandemia entrou no nosso léxico quotidiano. Apesar da alteração de rotinas (o café, diz o letreiro, está em Românicas e a utilização de máscara é desconfortável) gostei do regresso, das novas leituras, do convívio com outros alunos, da activação de neurónios que se quedaram dormentes e gordos neste ano e meio. 

A perda da rotina académica teve um efeito nefasto em várias áreas da minha vida "mental": não tendo avançado com a tese de doutoramento, esta andou para trás: perdi criatividade, disciplina, memória, associações. Terei de recomeçar quase tudo do zero; por outro lado, a minha mente tornou-se mais mono-temática, pois suspendi uma certa expansão da mente que me advém de ouvir conversas que não têm a ver com as actividades mais diárias da minha vida - profissional ou de voluntariado.

Que seja um bom ano lectivo, é que o desejo a mim próprio, começando por tentar perceber o que deve ver-se ao perto e o que deve ver-se ao longe.

JdB  

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Tópicos de Teoria Literária (Miguel Tamen)

Perto ou longe

Existe um debate recorrente nos estudos literários entre quem acha que as obras literárias devem ser examinadas de perto e quem acha que lê-las de perto é uma perda de tempo.  Os primeiros defendem que os pormenores num poema ou num romance têm prioridade em relação a considerações gerais sobre a história, a sociedade ou a cultura; os segundos que os pormenores são sempre explicados por essas considerações gerais, e por isso são dispensáveis.  Seguiremos o debate através de discussões recentes das noções de “close reading” e de “distant reading.” Cada participante terá de escrever um ensaio por semana.

19 setembro 2021

XXV Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 9,30-37

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus e os seus discípulos caminhavam através da Galileia,
mas Ele não queria que ninguém o soubesse;
porque ensinava os discípulos, dizendo-lhes:
«O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens
e eles vão matá-l'O;
mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará».
Os discípulos não compreendiam aquelas palavras
e tinham medo de O interrogar.
Quando chegaram a Cafarnaum e já estavam em casa,
Jesus perguntou-lhes:
«Que discutíeis no caminho?»
Eles ficaram calados,
porque tinham discutido uns com os outros
sobre qual deles era o maior.
Então, Jesus sentou-Se, chamou os Doze e disse-lhes:
«Quem quiser ser o primeiro será o último de todos
e o servo de todos».
E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles,
abraçou-a e disse-lhes:
«Quem receber uma destas crianças em meu nome
é a Mim que recebe;
e quem Me receber
não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou».

17 setembro 2021

Poemas dos dias que correm *

CURRICULUM VITAE RESUMIDO


Mal se conhecem
mas já se fazem
algumas perguntas de ocasião:

que comida preferes
onde vives
que país gostarias de visitar.

Claro que pronunciarão
cem vezes a resposta
Repetem-na
por hábito e perseverança
embora a tenham alterado
no caminho até hoje.

Para compreender a alma dos outros
apenas uma pergunta seria suficiente:
o que te fez chorar.


Marisa Martinez Pérsico, Argentina (1978)
Tradução de Jorge Sousa Braga

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* tirado daqui 

15 setembro 2021

Vai um gin do Peter’s?

VATICANO PRECURSOR DAS PARAOLIMPÍADAS

No alvor do século XX, o mundo assistiu impotente ao despique agressivo entre as grandes potências europeias, no limite da irresponsabilidade para deflagrar em conflito bélico, como veio a acontecer no Verão de 1914. Guerreavam-se na expansão ultramarina. Nessa corrida aos territórios além-mar, esquartejavam África a régua e lápis nos gabinetes do Velho Continente, com o fito de ter acesso aos recursos naturais do continente africano. Assim se afanavam na construção dos seus impérios.

Em contraciclo, o Papa da altura – Pio X – procurava ajudar os mais necessitados e criar uma onda solidária (dito na linguagem do nosso tempo) a favor dos esquecidos do progresso industrial e tecnológico, que enfeitiçava as sociedades mais ricas e pujantes. Com originalidade, inventou uma réplica das competições olímpicas para atletas com deficiências, oferecendo-lhes um palco para poderem mostrar ao mundo as suas proezas. Para tal, abriu as portas do Vaticano e, entre 1905 e 1908, acolheu os jogos desportivos, que foram pioneiros dos Paraolímpicos.  Na edição de 1908, concorreram 2.000 atletas, quase metade dos que marcaram presença no Japão (4.400)! 

Primeira página do L'Osservatore Romano de 29 de setembro de 1908 

Para acolher aquele projecto de desporto inclusivo, o espaço vaticano “Cortile del Belvedere” foi transformado em pista de atletismo, no Pátio de S.Dâmaso decorreram a maioria das actuações desportivas e na Porta de Bronze foi montada a recepção e o ponto informativo. Por junto, tudo ficou ao serviço dos Jogos: a Guarda Suíça e o corpo de polícias da Santa Sé asseguravam o acolhimento aos atletas, quer no apoio organizativo, quer na animação do ambiente com as suas bandas. O “L'Osservatore Romano” garantia a cobertura mediática, qual gazeta de desporto, com entrevistas aos campeões, a mensagem do Papa aos jogadores, notas de informação aos participantes, fichas técnicas sobre os principais acontecimentos, até os reportados pela equipe médica Fatebenefratelli, que incluía o diagnóstico das lesões. 

Nos Jogos de setembro de 1908: competiram, na velocidade, atletas com membros amputados, como Baldoni (vitória irlandesa). No salto em altura, participaram atletas surdos e 9 jovens cegos do Instituto Sant'Alessio. 

À época, a iniciativa de Pio X deu brado e não pouca polémica, mesmo na Santa Sé, onde a imagem de atletas deficientes levou um interlocutor mais próximo do círculo papal a dar voz ao típico anúncio da desgraça iminente: «onde vamos parar?». Sem se intimidar, Pio X respondeu em veneziano: «Meu caro, ao paraíso!» E assim se antecipava a promoção de uma percepção diferente da deficiência. 

Primeira página do L'Osservatore Romano de 29 de setembro de 1908

L'Osservatore Romano de 29 de setembro de 1908

Quase quatro décadas depois, a estreia das Paraolimpíadas decorreram na Grã-Bretanha, em 1948, numa iniciativa de Sir Ludwig Guttmann (1899-1980, judeu nascido em território alemão, hoje pertencente à Polónia, que se mudou para Inglaterra, em 1939, em fuga aos Nazis) para honrar os veteranos da II Guerra, que tinham ficado feridos durante o conflito. Quatro anos depois, em 1952, a segunda edição dos Jogos ganhou um pouco de internacionalidade com a participação de atletas holandeses. Aos poucos, outros países se juntaram, até se atingir a universalidade merecida. 

Na senda de Pio X, em 2019, o Papa Francisco lançou a equipa de desporto da Santa Sé – a Athletica Vaticana – para participar em competições desportivas, onde prevaleça o cunho fraternal. As recomendações de Francisco à Athletica Vaticana foram claras: «viver sempre um estilo de comunidade, treinando juntos, correndo juntos, sem nunca perder de vista a dimensão amadora da atividade desportiva», bem nos antípodas do espírito de alta competição, por que se pauta a carreira dos atletas de nível olímpico. 

Há dias, na cerimónia de encerramento das Paraolimpíadas de Tóquio (5 de Set.), França protagonizou um dos momentos mais elevados, com a apresentação oficial da próxima edição dos Jogos, em Paris – no ano de 2024. Resumindo: após a passagem do testemunho com a bandeira paraolímpica a mudar de mão, o hino francês foi entoado à vista da Vitória de Samotrácia, na escadaria do Louvre, enquanto a letra da música era legendada coreograficamente em linguagem gestual (1:33:15 da versão integral da cerimónia com link infra*). Seguiu-se a coreografia composta por Sadeck Waff, interpretada por bailarinos em cadeiras de rodas, que usaram apenas os braços para comporem uma dança magnífica, ao som da música composta por Yoann Lemoine (versão compactada abaixo e ao 1:35:11 na cerimónia).  Por videochamada, de Tóquio saltou-se até ao Trocadero, onde estava reunida a equipa gaulesa paraolímpica, que iria dançar ao som do DJ tetraplégico, a comandar o som só com os olhos (1:37:29). Por fim, a bandeira das Paraolimpíadas de Paris’ 2024 foi desfraldada na Torre Eiffel, onde ficou a esvoaçar com garbo (1:40:46).

https://www.instagram.com/p/CTcgw6OCOwA

São espantosos os efeitos da criatividade, quando rola para o bem, multiplicando-se em rastilhos de bondade com ignições benignas por todo o planeta, ao longo das gerações que alinhem na boa onda.   


Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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14 setembro 2021

Das amizades

 Sobre mim disse o meu querido amigo fq, frequentador e, numa dada altura, contribuinte para este estabelecimento:

"... um homem nostálgico que vive por vezes do passado..." 

Também disse outras coisas, mas estas são as que interessam para agora. 

Num telefonema que lhe fiz ontem ao fim da tarde confirmou-me a efeméride, materializada na data de aniversário de quem já cá não está. Hoje, mas há 45 anos, começávamos uma amizade ininterrupta até aos dias de hoje: 45 anos de algumas viagens, de muita partilha de citações queirozianas ou de músicas, de valores que nos tornam iguais, apesar das diferenças, de almoços no clube de que escolhemos ser sócios em simultâneo, de muita partilha de sucessos e desafios, de muito jogo de cartas onde o vi ser o que é hoje: um misto invejável de risco e segurança.

Este sábado estive no casamento da filha do meu querido amigo ATM, igualmente frequentador e contribuinte deste estabelecimento. À conversa com alguém que conheci ao jantar, informei: tenho pelo ATM uma amizade recente, com 20 anos. A pessoa que me ouviu espantou-se com a junção de 20 anos e de recente. Olho para o ATM e, salvaguardadas todas as diferenças, é uma amizade igualmente partilhada: muita conversa, muito debate, muita confidência. Num certo sentido, 20 anos são 45 anos. As amizades são um produto da antiguidade e da intensidade. Por isso, dizer uma amizade recente, com 20 anos, é apenas uma constatação cronológica, não um juízo de valor. Talvez pudesse dizer dele o que uma amiga escritora dizia de algumas pessoas: é a minha mais recente amizade de infância.   

Num perfil que me fizeram para uma revista de fim de semana afirmei que nunca recorrera a psicólogos ou psiquiatras. Não porque tivesse algo contra esta classe médica, mas porque fui fazendo a minha terapia com amigos. Tanto o fq como o ATM se incluem nesse rol. Bons ouvintes, bons interlocutores, inteligentes diferentes mas igualmente notáveis.

Sou, de facto, um homem nostálgico que vive por vezes do passado. As minhas amizades não se medem pelo que ainda vem, mas pelo que já passou. O passado é certo, o futuro não. E só o passado nos permite rir com citações que a mais ninguém dizem nada, porque feitas num momento que só fica na memória dos que fixam tudo, até os pequenos-nadas.

Era Eurico, o gardingo!

JdB

13 setembro 2021

Do luto parental

Num das suas cartas a Lucíio, diz Séneca:

"Venho enviar-te uma cópia da carta que escrevi a Marulo aquando da morte de um filho de tenra idade - morte que, dizia-se, ele suportou com quase nula coragem. "

Diz a referida carta:

"Estavas à espera de consolo? Pois vais apanhar uma descompostura! Tanta cobardia tu mostras pela morte do teu filho? Que farias se tivesses perdido um amigo? Faleceu-te um filho, de futuro incerto, de pouca idade; perdeu-se apenas um breve espaço de tempo."

Aquando do preparação da petição que a Acreditar lançou sobre o luto parental, contactei várias pessoas convidando-as a serem primeiras signatárias. Era gente de vários quadrantes políticos, de várias áreas de actividade: jornalistas, escritores, gente ligada ao desporto ou às artes, músicos, políticos. Uma destas pessoas - político respeitado, ex-ministro, comentador de televisão, escreveu-me amavelmente dizendo que assinaria a petição se ela contemplasse a morte de filhos até aos 18 anos.

Eu próprio, quando começámos a discutir internamente a petição, interroguei quem me ouvia: para efeitos de dias de licença parental, a morte de um filho com 7 anos deve ser igual à de um filho de 30? A resposta foi.-nos óbvia: um filho é um filho. De uma certa forma, o ex-ministro e Séneca estão nos antípodas. A comparação tem um intuito de curiosidade, não de juízo de valor. São muitos séculos a separar um e outro.

É difícil - se não mesmo impossível - quantificar desgostos pela perda de filhos. Pessoa que conheço, que perdeu um filho muito próximo com 30 anos, talvez, acharia que o desgosto dela seria maior do que alguém que tivesse perdido um filho aos 7. Nunca o verbalizou, mas intuí-lhe sempre este raciocínio, talvez porque este filho tivesse uma importância grande ao nível da disponibilidade para a família. Havia uma dimensão instrumental importante.

O pressuposto de que filho é um filho elimina discussões e interrogações sem fim previsível: e se for um acidente ou uma doença prolongada? E se tiver 19 anos ou for recém-nascido? E se tiver 25 anos mas viver no estrangeiro, ou tiver 28 mas viver em casa?

Como presidente da Acreditar regozijo-me com a adesão à petição que lançámos e com o facto da generalidade dos partidos se ter mostrado disponível para rever a lei; como presidente de uma associação que também acompanha pais que perdem filhos teria gostado (e espero ainda vê-lo) uma discussão sobre estes temas do luto parental, da morte, do que pode fazer-se para ajudar estas pessoas que passam por um enorme drama.

Duas notas finais:

- se ainda não assinou a petição pode fazê-lo aqui.

- é impressionante o número de pessoas letradas, urbanas, instruídas, geralmente informadas, que desconhece - e se indigna com esse facto - que o Estado dá 5 dias a quem perde um filho. O mesmo número de dias que dá por morte de um sogro.

JdB 

12 setembro 2021

XXIV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mc 8,27-35

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus partiu com os seus discípulos
para as povoações de Cesareia de Filipe.
No caminho, fez-lhes esta pergunta:
«Quem dizem os homens que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns dizem João Baptista; outros, Elias;
e outros, um dos profetas».
Jesus então perguntou-lhes:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».
Ordenou-lhes então severamente
que não falassem d'Ele a ninguém.
Depois, começou a ensinar-lhes
que o Filho do homem tinha de sofrer muito,
de ser rejeitado pelos anciãos,
pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;
de ser morto e ressuscitar três dias depois.
E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.
Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l'O.
Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos,
repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,
porque não compreendes as coisas de Deus,
mas só as dos homens».
E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:
«Se alguém quiser seguir-Me,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.
Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho,
salvá-la-á».

09 setembro 2021

Poemas e fotografias dos dias que correm

 

Amarante, Setembro de 2021

Poema do fecho éclair


Filipe II tinha um colar de oiro
tinha um colar de oiro com pedras rubis.
Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.

Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.

Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.

Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco
a tíbia de um santo
guardada num frasco.

Foi dono da terra,
foi senhor do mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.

Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safiras, topázios,
rubis, ametistas.

Tinha tudo, tudo
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.

Um homem tão grande
tem tudo o que quer.

O que ele não tinha
era um fecho éclair.


António Gedeão


08 setembro 2021

Das montras e do pudor

Penafiel, Setembro de 2021

 Sou de um tempo e de uma educação com pudor de linguagem: só entre homens é que se diziam palavrões, podia dizer-se merda mas a expressão gaja era proibida; havia palavras feias, como sovaco, virilha ou ânus ou seio que não se pronunciavam não porque fossem verdadeiramente feias (gosto de Estômbar, não gosto de craca) mas porque remetiam para zonas do corpo de que não se falavam ou que eram domínio de uma certa intimidade. Em bom rigor, e não porque fosse uma palavra feia, também não se dizia cancro, mas uma coisa má. A fealdade das palavras era definida, não pelo seu som, mas por aquilo que representavam. 

Há 50 anos ou mais, talvez, as senhoras não tinham ovários, pelo mesmos motivo que os homens não tinham testículos.  Se uma amiga da minha mãe tivesse de ser operada a essa zona do corpo, fazia-se menção de forma discreta a coisas de senhora ou lá em baixo. O pudor da linguagem atingia um nível que não sei qualificar quando a referência a esses orgãos femininos era feita através da expressão miudezas

Vale a pena conhecer Penafiel - e um dia destes posto aqui algumas fotografias. Nunca lá tinha estado e fiquei muito agradado com a parte velha da cidade: cuidada, limpa, característica. Passar por Penafiel é, também, passar pelo mundo das miudezas que, segundo a tabuleta que encima a entrada, vende lingerie e têxteis para o lar. Ver esta palavra assim exposta fez-me recuar 50 anos, quando miudezas não era bem lingerie, menos ainda têxteis para o lar...

JdB   

06 setembro 2021

Texto e fotografia dos dias que correm

 

Amarante, Setembro de 2021

A Mentira é a Base da Civilização Moderna

É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc... A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. ...
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. Porque é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? A enxada será irmã da pena? A fome de pão paracer-se-à com a fome de luz?...

Teixeira de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo"

05 setembro 2021

XXIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mc 7,31-37

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus deixou de novo a região de Tiro
e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia,
atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar
e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, afastando-Se com ele da multidão,
meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu,
suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem,
soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar correctamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava,
tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam:
«Tudo o que faz é admirável:
faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

02 setembro 2021

O luto de uma vida não cabe em 5 dias

Setembro é, um pouco por todo mundo, o mês de sensibilização para o cancro pediátrico. Em Portugal a Acreditar decidiu lançar uma petição que pretende aumentar o período de licença por luto parental de 5 para 20 dias. Sim, perceberam bem: há anos (sei lá quantos) que o Estado dá 5 dias de nojo a quem perde um filho - o mesmo que para Pais e Sogros. Poderia discorrer aqui sobre o assunto, mas talvez seja preferível deixar um texto escrito na página da Acreditar, um link para um texto da Lusa publicado no Observador (pode ler aqui) e um link para a página onde poderá assinar a petição e obter mais informações e testemunhos. 

Assinem e divulguem, já agora.

JdB

O luto de uma vida não cabe em 5 dias

Dedicamos este Setembro Dourado - mês internacional de sensibilização para o cancro pediátrico, aos cuidadores.

Na Acreditar acompanhamos milhares de pais que se confrontam com a doença oncológica dos seus filhos, um percurso de uma exigência tremenda para a família.

Porque a taxa de sobrevivência ainda é de 80%, é também nossa missão apoiar e defender os direitos dos pais que perdem os seus filhos.

Lançamos agora a petição que propõe o alargamento do período de luto pela perda de um filho para 20 dias, sendo que a legislação prevê actualmente apenas 5 dias consecutivos.

Mesmo quando o retorno à vida laboral é um contributo positivo para o processo de luto, este período não chega. O luto parental é uma das experiências mais traumáticas, um processo intenso, complexo e que pode durar uma vida.

5 dias é um tempo manifestamente insuficiente para se fazer o luto de uma vida.

Uma sociedade mais solidária e justa tem de dar tempo aos seus. 5 dias é pouco.

https://www.peticaolutoparental.com/



01 setembro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

A HISTÓRIA REPETE-SE, NO AFEGANISTÃO

De tempos a tempos, as invasões ao Afeganistão por grandes potências externas, dá azo a que uma das crónicas de Eça de Queiroz – escrita em 1880 e publicada nas «Cartas de Inglaterra» – seja citada na íntegra, porque descreve com precisão o desastre em que redundam as fracassadas incursões naquele enclave da Ásia Central. As fraquezas daquele país atípico, de fronteiras porosas e quase sem instituições com alcance nacional, tornou-o presa regular das grandes potências, que pensam ser fácil conquistar um território de geografia acidentada e poder periclitante. Zona de passagem, por onde corria a Rota da Seda, foi invadida pelos hunos, os turcos, os mongóis a mando de Genghis Khan, os persas, acabando por adoptar uma matriz islâmica radical. Porém, manteve uma estrutura de poder pulverizada pelas diferentes etnias que ali se instalaram, apesar de sobressair a pachtun. Chegou ao século XIX cobiçada pelos Czares, pela Índia britânica e pela Pérsia.  Ciclicamente (1839, 1847, 1878-80), a Grã-Bretanha fez investidas para tomar as principais cidades, a pretexto de conter os Impérios russo e persa. Mas resultaram em conquistas curtas, terminadas com banhos de sangue, a vitimar sobretudo os ocupantes. Finalmente, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial e de nova derrota britânica, o Afeganistão liberta-se da coroa inglesa e torna-se independente. Corria o ano de 1919. 

Começando como monarquia, o país procurou sair do estilo medieval com a abolição da escravatura /servidão, o ensino obrigatório e generalizado, a construção de hospitais e demais infraestruturas, a redução da autoridade dos chefes tribais e religiosos, e até a melhoria da condição feminina. Esta foi a reforma mais polémica, que forçou o rei Amanullah Khan ao exílio. Ainda que turbulenta, a sucessão de soberanos, até ao início dos anos 70, permitiu desenvolver o país, que atingiu um grau de liberalismo assinalável. Mulheres com cara descoberta e a guiar nas estradas era comum, em Cabul. Mas tudo foi revertido com a crescente islamização da sociedade e a subida ao poder do Partido Comunista, logo após a invasão soviética, em 1978.  

Curiosamente, os comunistas até reduziram o ascendente dos chefes religiosos das diferentes tribos, deram maior liberdade às mulheres, construíram mais escolas e hospitais. Mas a militância ateísta do novo governo tornou-o odioso para a população, também revoltada com a típica purga assassina dos regimes marxista-leninistas contra intelectuais e todos os que consideravam pertencer às elites. A carnificina terá atingido mais de 100 mil pessoas, segundo os dados da Human Rights Watch. A revolta generalizada restituiu poder aos chefes dos clãs – óptimos orquestradores da sabotagem contra o invasor. É sabido como os EUA tiraram partido dessa rebelião, para organizar a guerra de guerrilha, que humilhou o Exército Vermelho, obrigando-o a bater em retirada, numa década de desgaste e perdas colossais para o Kremlin.  

No início do século XXI, repete-se o “assalto” ao Afeganistão. Desta vez, são os Estados Unidos, que resolvem acabar com o regime dos talibãs, que responsabilizavam pelo apoio dado ao autor moral do 11 de Setembro – o saudita ex-aliado dos EUA contra os russos, 20 anos antes – Bin Laden. A grande produção de ópio, que já era pujante em solo afegão, disparou, a ponto de, em 2008, já ser o líder da produção mundial de opiáceos. Também o haxixe começou a proliferar, sendo outros dos maiores produtos de exportação. Mas nada de se conseguir domar os talibãs, que lideram com mestria os inúmeros clãs em que se subdivide a população afegã. 

A retirada apressadíssima dos EUA e da NATO de um país turbulento, teve o óbvio efeito de aumentar a turbulência, o que tem favorecido os talibãs! Os mais arrevesados, admitem que Washington quisesse deixar um presente muito envenenado à China e à Rússia, ambas interessadas em pontificar nos destinos daquele Estado indomável, que se prevê voltar a ser o campo de treino dos terroristas islâmicos mais ferozes. 

Infelizmente, pouco disto é novo, à parte da nacionalidade de uma ou duas novas grandes potências interessadas no Afeganistão. De resto, o diagnóstico de Eça, escrito em 1880, mantém-se actual, descortinando com precisão o custo disparatado da cruzada bélica promovida por Londres contra aquela potência da Ásia Central:   

«Os ingleses estão experimentando, no seu atribulado império da Índia, a verdade desse humorístico lugar comum do sec. XVIII: «A História é uma velhota que se repete sem cessar».

O Fado e a Providência, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu os episódios da campanha do Afeganistão em 1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma imaginação exausta.

Em 1847 os ingleses, «por uma Razão de Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia…» e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente, retorcendo os bigodes - invadem o Afeganistão, e aí vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame, e fuma o cachimbo da paz… Assim é exactamente em 1880.

No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes enérgicos, Messias indígenas, vão percorrendo o território, e com os grandes nomes de «Pátria» e de «Religião», pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o «homem vermelho», e em pouco tempo é tudo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia… E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o.

Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então os restos debandados do exército refugiam-se nalguma das cidades da fronteira, que ora é Ghasnat ora Kandahar: os afegãos correm, põem o cerco, cerco lento, cerco de vagares orientais: o general sitiado, que nessas guerras asiáticas pode sempre comunicar, telegrafa para o vice-rei da Índia, reclamando com furor «reforços, chá e açúcar»! (Isto é textual; foi o general Roberts que soltou há dias este grito de gulodice britânica; o inglês, sem chá, bate-se frouxamente). Então o governo da Índia, gastando milhões de libras, como quem gasta água, manda a toda a pressa fardos disformes de chá reparador, brancas colinas de açúcar, e dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavalos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa… Foi assim em 1847, assim é em 1880.

Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras colunas de tropa índia, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a quarenta milhas por hora; daí começa uma marcha assoladora, com cinquenta mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas hidráulicas, e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã avista-se Kandahar ou Ghasnat; e num momento, é aniquilado, disperso no pó da planície o pobre exército afegão com as suas cimitarras de melodrama e as suas veneráveis colubrinas do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Kandahar está livre! Hurrah! Faz-se imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como Apolos, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser assim em 1880.

No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela «fronteira científica», lá ficam, pasto de corvos - o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem de retórica: aí, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas.

E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica…

Consoladora filosofia das guerras!

No entanto, a Inglaterra goza por algum tempo a «grande vitória do Afeganistão» - com a certeza de ter de recomeçar, daqui a dez anos ou quinze anos; porque nem pode conquistar e anexar um vasto reino, que é grande como a França, nem pode consentir, colados à sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanáticos, batalhadores e hostis. A «política» portanto é debilitá-los periodicamente, com uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades dum grande império.

Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois pés de alface para as merendas de verão…»

                                                                 In «Cartas de Inglaterra»

É triste que o cenário traçado por Eça só pareça pecar por defeito!

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


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