31 março 2022

Poemas dos dias que correm

O Erro de Querer Ser Igual a Alguém

Aqui, neste misérrimo desterro
Onde nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz em suma — quanto a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser seu.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

***

Colhe o Dia, porque És Ele

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

30 março 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 VALE A PENA CONFIAR? EM QUÊ /QUEM?

É tão difícil manter a tranquilidade em tempos conturbados! Mas, curiosa e também ironicamente, é mesmo nos contextos turbulentos e perigosos que ela faz mais falta. Por isso, hoje vêm especialmente a propósito escritos inspirados do cientista-jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin. Parece feita para os nossos dias, como acontece nos grandes escritos, por onde ecoa uma lucidez universal e intemporal.  

«ADORA E CONFIA

Não te deixes inquietar com as dificuldades da vida, com os seus altos e baixos, com as suas desilusões, pelo futuro mais ou menos sombrio. Quer o que Deus quer.

Oferece-Lhe, no meio das preocupações e dificuldades, o sacrifício da tua alma simples, que apesar de tudo aceita os desígnios da Sua providência.

Pouco importa se te consideras um frustrado, se Deus te considera plenamente realizado, ao Seu gosto.

Perde-te, confiando cegamente, nesse Deus que te quer e que vem até ti, mesmo que O não vejas.

Pensa que estás nas Suas mãos, tanto mais fortemente agarrado quanto mais apático e triste estiveres.

Vive feliz. Imploro-te. Vive em paz. 
Que nada te possa perturbar. 
Que nada te consiga tirar a tua paz.
Nem a fadiga mental. Nem as falhas morais.

Faz com que brote, e mantém-no sempre no teu rosto, um sorriso doce, reflexo daquele que o Senhor te dirige continuamente.

E no fundo da tua alma coloca, em primeiro lugar, como fonte de energia e critério de verdade, tudo aquilo que te enche da paz de Deus.

Lembra-te: tudo aquilo que te deprime e inquieta é falso. Isto te asseguro em nome das leis da vida e das promessas de Deus.

Portanto, quando te sintas desolado, triste, adora e confia.

***************

ABOVE ALL, TRUST IN THE SLOW WORK OF GOD

We are quite naturally impatient in everything to reach the end without delay.

We should like to skip the intermediate stages.

We are impatient of being on the way to something unknown, something new.

And yet it is the law of all progress that it is made by passing through some stages of instability— and that it may take a very long time.

And so I think it is with you; your ideas mature gradually—let them grow, let them shape themselves, without undue haste.

Don’t try to force them on, as though you could be today what time (that is to say, grace and circumstances acting on your own good will) will make of you tomorrow.

Only God could say what this new spirit gradually forming within you will be.

Give Our Lord the benefit of believing that his hand is leading you, and accept the anxiety of feeling yourself in suspense and incomplete.» 

Teilhard de Chardin tinha especial autoridade para proferir um voto de confiança maior na Vida, ele que realizou avanços prodigiosos na ciência e na teologia, fazendo-as caminhar a par e passo, numa interligação original que foi mal percebida pelo Santo Ofício. A partir de 1925, viu a sua actividade académica e de investigação cada vez mais cerceada e criticada, quer pelos seus superiores na Companhia de Jesus, quer pelo Vaticano. Mas quis sempre continuar ao lado dos seus irmãos jesuítas e no seio da Igreja, fossem ou não percebidas e aceites as suas ideias mais vanguardistas. Nas linhas que escreveu enquanto prestava serviço militar na Primeira Guerra Mundial disse o que poucos teriam ousado dizer, menos ainda escrever: «a guerra foi [para mim] um encontro com o Absoluto». Recebera a fé da mãe, que descendia de Voltaire. Nos últimos anos, Chardin viveu em Nova Iorque, onde morreu no dia que mais gostava (escreveu-o): um Domingo de Páscoa, corria o ano de 1955. 

Teilhard de Chardin: paleontólogo investigador & académico e, em simultâneo, sacerdote-teólogo & filósofo até ao âmago.

Foi postumamente que muitos cientistas, teólogos e Cardeais da Curia Romana confirmaram o arrojo extraordinário do seu pensamento. Francisco citou-o na Encíclica «Laudato Si» e Ratzinger/Bento XVI em dois dos seus livros de fundo (Introdução ao Cristianismo(1) e Introdução ao Espírito da Liturgia). Na qualidade de porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi (também Jesuíta) clarificou, em Julho de 2009: «Hoje, já não ocorre a ninguém dizer que [Teilhard] é um autor pouco ortodoxo, que não deveria ser estudado.» 

Também esta hora crítica para o continente europeu e para o mundo merecerá confiança (reforçada), até para se criar o espaço favorável a um desenlace positivo e muito criativo, capaz de desatar os nós intrincados do nosso presente, como implorou o Papa Francisco a Nossa Senhora, na oração de Consagração da Rússia e da Ucrânia, na Sexta passada – dia 25 de Março.  

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

_____________

 (1)  Escreveu Ratzinger, décadas antes de se tornar Papa: «It must be regarded as an important service of Teilhard de Chardin's that he rethought these ideas [do pensamento cristão] from the angle of the modern view of the world and, in spite of a not entirely unobjectionable tendency toward the biological approach, nevertheless on the whole grasped them correctly and in any case made them accessible once again


28 março 2022

Moleskine (com mau feitio)

Apanho um programa de telefonia já no fim. Há uma senhora que diz, falando de ternura:

Eu tenho muita ternura e amizade pelos animais. Tenho um gato e uma gata; eles percebem se eu estou triste e, se eu estou doente, não me largam até eu ficar boa. Há pessoas que não fazem nada por mim, nem sequer se aproximam. Tenho dito!

Apanho uma senhora que fala com amigos numa mesa de café, referindo-se a alguém que está, aparentemente, com um cancro na cabeça em fase algo terminal:

(...) Que qualidade de vida é que ele tem? Nenhuma. Eu, por exemplo, já assinei o meu testamento vital. Sabe, tenho uma nora farmacêutica; se estiver com uma doença grave ela vem, dá-me uma injecção e já está...

***

Relativamente à primeira situação, quis telefonar à senhora que perorava na telefonia e dizer-lhe o seguinte: 

Sabe, já estive muito em baixo, com coisas sérias que me aconteceram. Tive sempre gente à minha volta. Estava a sofrer e o meu cão mijou-me as gardénias... O exemplo do seu casalinho de gatos ilustra o quê? Que os seus gatos são melhores que os seus amigos? Ou que todos os gatos são melhores do que todas as pessoas? Tenho dito!

Relativamente à segunda quis dizer à senhora que perorava na esplanada:

Sabe, o testamento vital é um "documento no qual é manifestada, antecipadamente, a vontade consciente, livre e esclarecida de um utente, sobre quais os cuidados de saúde que deseja receber ou não, por qualquer razão, caso não seja capaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente." Assinar o testamento vital não lhe garante que a sua nora, farmacêutica a a aviar paracetamol em Corroios, tenho o direito de a eutanasiar... 

***

Sou desafiado à compaixão cristã pela ignorância alheia, pois eu próprio afirmo que aquilo que não sei enche várias bibliotecas de Alexandria. O problema destas duas senhoras não é a ignorância, mas o tom de voz. Não me maça que não se saiba, mas maça-me que não se saiba e se perore em tom afirmativo e decidido. Não me incomoda a senhora achar que a ternura dos gatinhos que se espojam na colcha é superior à ternura da rede familiar que a circunda; não me incomoda a senhora achar que testamento vital ou pedido de eutanásia sejam a mesma coisa. Incomoda-me, isso sim, que o digam alto; ou que o digam com um tom sério, de quem está a determinar visões sobre o futuro da raça humana.

Mau feitio meu, logo no dia da parábola do filho pródigo - ou do pai misericordioso... 

JdB

27 março 2022

IV Domingo da Quaresma

EVANGELHO – Lc 15,1-3.11-32

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
os publicanos e os pecadores
aproximavam-se todos de Jesus, para O ouvirem.
Mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo:
«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».
Jesus disse-lhes então a seguinte parábola:
«Um homem tinha dois filhos.
O mais novo disse ao pai:
‘Pai, dá-me a parte da herança que me toca’.
O pai repartiu os bens pelos filhos.
Alguns dias depois, o filho mais novo,
juntando todos os seus haveres, partiu para um país distante
e por lá esbanjou quanto possuía,
numa vida dissoluta.
Tendo gasto tudo,
houve uma grande fome naquela região
e ele começou a passar privações.
Entrou então ao serviço de um dos habitantes daquela terra,
que o mandou para os seus campos guardar porcos.
Bem desejava ele matar a fome
com as alfarrobas que os porcos comiam,
mas ninguém lhas dava.
Então, caindo em si, disse:
‘Quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância,
e eu aqui a morrer de fome!
Vou-me embora, vou ter com meu pai e dizer-lhe:
Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho,
mas trata-me como um dos teus trabalhadores’.
Pôs-se a caminho e foi ter com o pai.
Ainda ele estava longe, quando o pai o viu:
encheu-se de compaixão
e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos.
Disse-lhe o filho:
‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho’.
Mas o pai disse aos servos:
‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha.
Ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés.
Trazei o vitelo gordo e matai-o.
Comamos e festejemos,
porque este meu filho estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’.
E começou a festa.
Ora o filho mais velho estava no campo.
Quando regressou,
ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças.
Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo.
O servo respondeu-lhe:
‘O teu irmão voltou
e teu pai mandou matar o vitelo gordo,
porque ele chegou são e salvo’.
Ele ficou ressentido e não queria entrar.
Então o pai veio cá fora instar com ele.
Mas ele respondeu ao pai:
‘Há tantos anos que eu te sirvo,
sem nunca transgredir uma ordem tua,
e nunca me deste um cabrito
para fazer uma festa com os meus amigos.
E agora, quando chegou esse teu filho,
que consumiu os teus bens com mulheres de má vida,
mataste-lhe o vitelo gordo’.
Disse-lhe o pai:
‘Filho, tu estás sempre comigo
e tudo o que é meu é teu.
Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos,
porque este teu irmão estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’».

24 março 2022

Poemas dos dias que correm

Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neill, in 'Feira Cabisbaixa'

22 março 2022

Dos raciocínios patetas *

 Na pré-história - e não vou mais atrás por não me parecer necessário encetar especulações sociológicas para as quais não me sinto competente - o homem saía de casa para caçar. Punha-se a caminho, isto é, andava. Obviamente que não havia meios de transporte, mas o verbo "andar" é relevante para a minha dissertação. Ao homem competia prover a subsistência, à mulher competia tomar conta dos filhos, da casa (o que quer que isso fosse na pré-história), da horta e do jardim, o que quer que isso, blábláblá. A vida do homem era andar até ao mamute e, depois deste morto e esquartejado, regressar ao remanso do lar. Andar, andar, andar, enquanto a mulher tinha uma espécie de horizonte geográfico que lhe era dado pela genica das crianças e pela extensão do perímetro de segurança. O homem pousa a lança, o sílex, a marreta, o osso do animal no mesmo sítio onde a mulher (o que quer que isso queira dizer), encostada ao umbral de uma porta, fitou o infinito que não sabe o que é, pôs os olhos num horizonte de onde espera ver o jantar, mais do que suscitar uma meditação sobre o sentido da vida. Não o faz, mas tem essa possibilidade. 


Anos mais tarde - tantos que implicaria muitos zeros - aparecem, as guerras, as diásporas, os empregos. Ao homem cabe-lhe sair de casa, trazer uma cabeça de mouro, uma relíquia da terra santa, um cheque ou um voucher que premeia um ano bom. O osso de mamute é, agora, um nome inscrito num payroll. Ao homem compete-lhe sair armado de uma lança, uma marmita ou ticket restaurante (pouco mais recente que a pré-história). Ao homem compete-lhe andar, enquanto a mulher olha pelas crianças, pelo bonsai, pela panela de pressão ou pelos grandes glúteos. O homem anda, a mulher, no seu espírito feminino mais exacerbado e tradicional,  queda-se pelo perímetro que lhe é dado pelo controlo visual sobre o que interessa. 

***

Temos uma coisa pela frente: esta coisa pode ser um carro,  um coulis de framboesa ou um conjunto de saia e casaco. Mas esta coisa  pode também ser um poema, uma música que apela ao sublime, um quadro que suscita devaneios, a infância que gera recordações. Sobre esta coisa, qualquer que ela seja, podemos raciocinar, agir, ou meditar. O que é agir? É pegar-lhe com as mãos, deitar-lhe um olhar, revirá-lo, discernir-lhe o funcionamento, e o ronronar de um motor de porsche mais não é do que o ritmo de uns versos alexandrinos. Raciocinar é um exercício mecânico que suscita uma acção. Raciocinamos sobre a ligação da maionese com o bacalhau da mesma forma que raciocinamos sobre o jogo de palavras de uns versos de herberto helder onde os silêncios preenchidos são tema de conversa ao jantar.  Para este efeito, zé do pipo poderia ser uns versos de rima branca, ou uma quadra a-b-b-a. Agir é transformar o raciocínio em actos. Raciocinar e agir são a ida de um homem para o mato caçar mamutes ou para um escritório folhear o código civil anotado. Raciocinar e agir implica movimento e só o movimento permite o raciocinar e agir.

Olhar para uma codorniz no seu sarcófago, para uns versos misteriosos ou para uma buganvília por aparar é, também, a possibilidade de meditar sobre as coisas: é imaginar-lhes uma sensação, uma emoção, um frenesim, um olhar embaciado ou um sorriso que ninguém entende. Para isso temos de estar quietos, de olhos postos na coisa mas de coração posto no além onde o olhar se desfoca e a alma se concentra. Na pré-história só a mulher podia meditar sobre as coisas, porque não estava afadigada com a anatomia da besta e com o local do crânio onde assentar a pedra por lascar. Hoje, entre mulher que são provedoras e homens que se quedam sem despertador o mundo está diferente, pelo que meditar sobre as coisas é uma actividade vedada a quem, homem ou mulher, quer sair pelo mato ou pegar nuns versos e ver-lhe uma rima estranha.

JdB 

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* publicado originalmente a 31.10.2016

21 março 2022

Músicas dos dias que correm *

 


* música que ganhou o festival da canção deste ano, com a grata surpresa de ver a filha de uma prima querida a cantar no coro.

20 março 2022

III Domingo da Quaresma

 EVANGELHO – Lc 13,1-9

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
vieram contar a Jesus
que Pilatos mandara derramar o sangue de certos galileus,
juntamente com o das vítimas que imolavam.
Jesus respondeu-lhes:
«Julgais que, por terem sofrido tal castigo,
esses galileus eram mais pecadores
do que todos os outros galileus?
Eu digo-vos que não.
E se não vos arrependerdes,
morrereis todos do mesmo modo.
E aqueles dezoito homens,
que a torre de Siloé, ao cair, atingiu e matou?
Julgais que eram mais culpados
do que todos os outros habitantes de Jerusalém?
Eu digo-vos que não.
E se não
vos arrependerdes,
morrereis todos de modo semelhante.
Jesus disse então a seguinte parábola:
«Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha.
Foi procurar os frutos que nela houvesse,
mas não os encontrou.
Disse então ao vinhateiro:
‘Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira
e não os encontro.
Deves cortá-la.
Porque há-de estar ela a ocupar inutilmente a terra?’
Mas o vinhateiro respondeu-lhe:
‘Senhor, deixa-a ficar ainda este ano,
que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo.
Talvez venha a dar frutos.
Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano».

18 março 2022

Poemas dos dias que correm

A Guerra que Aflige com seus Esquadrões

A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.

A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.

Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.

Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.

A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.

A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

17 março 2022

Orações dos dias que correm

REZAR O FUTURO DO MUNDO

Ensina-nos, Senhor, a desarmar o nosso coração, multiplicando os gestos de não-agressão e de respeito pela dignidade de todos.

Ensina-nos, Senhor, em cada dia a desativar as sementes e as razões da violência, dentro e fora de nós. 

Recorda-nos que a paz é um artesanato paciente e muitas vezes escondido, mas que o futuro do mundo depende dele.

Mostra-nos como estar, de forma incondicional, ao lado das vítimas, no socorro aos perseguidos, na fronteira onde acorrem os refugiados (que, se abrirmos os olhos, compreenderemos que é mesmo a nosso lado), no serviço humano a quantos vivem o drama da guerra ou lutam desamparados com sofrimentos maiores do que as suas forças.

Ajuda-nos a transitar da informação para a acção; a superar a passividade do medo pela audácia do compromisso generoso; a abrir com rasgo profético as portas do coração, o espaço da nossa família, a condivisão da palavra e dos bens. 

Desinstala-nos, Senhor, deste sentimento de impotência que nos bloqueia, pois todos podemos fazer alguma coisa, a começar pela oração. 

P. Tolentino

14.03.2022

16 março 2022

Vai um gin do Peter’s ?

PELA UCRÂNIA, ATÉ OS PIANOS, VIOLINOS E VOZES RESSOAM PELO MUNDO… 

Enquanto assistimos a uma invasão bárbara, com pormenores de crueldade vergonhosos e escusados, também nos deparamos com episódios de heroísmo e generosidade espantosos. O pior e o melhor da humanidade parecem ter-se concentrado na e a propósito da Ucrânia, reverberando pelo mundo fora, a partir daquele palco de guerra.

Uma das maiores cadeias de supermercados da Polónia – a Biedronka, detida pela portuguesa Jerónimo Martins – retirou logo de venda 16 produtos de origem russa e bielorussa e em 43 lojas localizadas perto da fronteira com a Ucrânia desceu os preços de meia centena de produtos de primeira necessidade. 

A plataforma de mercado imobiliário CASAFARI está a alocar metade do seu trabalho ao alojamento de refugiados e usa a sua rede social para transmitir as mensagens impressionantes dos ucranianos, que se batem por uma pátria livre e soberana.

O pavilhão ucraniano na Expo universal no Dubai tem sido revestido pelos visitantes com post-its encorajadores e de simpatia, a ponto de as paredes estarem forradas a papelinhos multicolores. Mais curioso ainda (segundo o jornalista do Público, que partilhou a experiência), é o silêncio respeitoso que reina naquele espaço, que passou a ter uma afluência inusitada, precisamente desde 24 de Fevereiro…  

A principal cerimónia britânica dos galardões do cinema – os BAFTA – decorrida neste Domingo, foi animada pelas cores da bandeira ucraniana, que se tornaram familiares para todo o Ocidente livre, a somar às incontáveis manifestações de apoio, incluindo um par de gestos de caserna contra Putin. De pins a emblemas, vestidos, faixas, laços do smoking, não faltaram pretextos para envergar o azul e o amarelo ou exibir alguns dos ícones do movimento #UKRAINE:

A plataforma da Airbnb tem estado especialmente dinâmica a alugar apartamentos na Ucrânia, por generosidade de muitos ocidentais, que assim fazem chegar dinheiro fresco aos sitiados pelo cerco russo. 

Nos concertos Gulbenkian de 3 e 4 de Março, a orquestra tocou o hino ucraniano, num gesto aplaudido com emoção pelo público. Para abrilhantar o momento, no final, abriram-se os panos por detrás da orquestra, para o jardim bem iluminado ficar à vista do grande auditório. O esplendor da natureza ajudou à homenagem. No site, a Fundação publicou: «Face ao conflito armado no território ucraniano, manifestamos solidariedade com os povos que sofrem as consequências deste grave desrespeito pelos princípios do Direito Internacional e dos Direitos Humanos.» 


O pianista alemão Davide Martello voltou a tocar junto à nova zona de guerra. Desta vez, percorreu 5000 km com o seu piano portátil para receber os refugiados na fronteira polaco-ucraniana. Era o pequeno contributo para humanizar o medo e a tristeza dos que fugiam ao massacre dos bombardeamentos selváticos das milícias russas contra alvos civis, por ordem de um déspota sádico:  



Sting pegou na guitarra para reactualizar o tema que tinha composto durante a Guerra Fria («Russians», de 1985), agora convertido em clamor pela Ucrânia e pelos russos que, no seu país, se insurgem contra o insidioso ataque de Putin, conforme explica o cantor britânico na introdução à música: 


Sean Penn, com a sua proverbial coragem, viajou até Kyiv (é o nome da capital em ucraniano, enquanto “Kiev” é a versão russa), para realizar um documentário sobre a beligerância do Kremlin, visando expor os efeitos de uma guerra iníqua que o Politburo apelida de “operação especial” para repor a paz e a ordem no “país irmão”! Aproveitou para se reunir com o presidente Zelensky, bem como animar os que resistem e as populações flageladas. Em 2018, estivera na Turquia para rodar um documentário (ainda não lançado) sobre o macabro assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, perpetrado no Consulado saudita de Istambul.

«Actor and director Sean Penn attends a press briefing at the Presidential Office in Kyiv [Ukrainian Presidential Press Service/Handout via Reuters]»

No próximo dia 25 de Março (Sexta-feira), o Papa irá consagrar a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, numa cerimónia em simultâneo entre o Vaticano e Fátima [16h no horário de Portugal continental]. Na capelinha das Aparições estará o enviado especial de Francisco – o Cardeal polaco Krajewski. Esta consagração vem na senda da consagração do mundo presidida pelo Papa S.João Paulo II, a 25 de Março de 1984, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, que foi transportada para o Vaticano.  

Entretanto, o Pontífice enviou dois Cardeais à Ucrânia para prestarem apoio à população e se inteirarem do que pode fazer a Santa Sé para aliviar o sofrimento dos locais. O cardeal Konrad Krajewski, que se prepara para regressar ao Vaticano após uma semana em missão, afirmou que na Ucrânia se deparou com muito sofrimento e muita fé! 

Francisco tem intensificado os apelos pelo fim do conflito bélico e denunciado o horror da invasão com clareza meridiana: «Em nome de Deus, peço-vos: parem com este massacre!». Recordou as vítimas de Mariupol e assinalou a «barbárie da matança de crianças, inocentes e civis indefesos», implorando pelo fim imediato daquela «inaceitável agressão armada, [antes que] reduza as cidades a cemitérios.» Alertou igualmente para a gravidade de invocar motivos religiosos para tentar justificar o injustificável: «Deus é o Deus só da paz, não é o Deus da guerra, e quem apoia a violência profana o Seu nome» (Angelus do Domingo, 13 de Março). Palavras duras, que levaram o Secretário de Estado do Vaticano a comentar que o «Papa parecia particularmente entristecido e só pode ser assim. Estamos todos aflitos e consternados diante desta guerra que não faz qualquer sentido.»

Nas excepcionalidades: chegou a vez de o Japão prescindir da sua política muito restritiva (ou mesmo nula) de acolhimento a refugiados estrangeiros e abrir as portas a ucranianos que queiram transplantar-se para aquele país asiático. Entretanto, na cidade suíça sede do calvinismo, realizou-se um gesto ecuménico repleto de alcance histórico: volvidos cinco séculos, foi rezada a primeira Missa católica na catedral de Genebra. A celebração estivera marcada para o final de Fevereiro de 2020, mas a pandemia obrigou ao adiamento. Por fim, acabou por ter lugar no Sábado, 5 de Março de 2022, 486 anos depois de o templo ter sido ocupado pelos protestantes. Ainda hoje, as paredes contêm inscrições expressivas daquela expulsão violenta dos católicos: «No ano de 1535, abateu-se a tirania do anticristo romano e foi abolida a superstição; a Santa religião de Cristo foi restabelecida na sua pureza (…)». Mas hoje, é a união dos cristãos que marca o novo tempo, no cantão helvético francês. Naquela celebração eucarística de reconciliação, além da língua francesa, várias orações foram recitadas em português, italiano e espanhol, para se adequar a grande parte dos presentes. Rezou-se ainda pela Ucrânia e foram evocados o sacerdote ucraniano concelebrante e uma refugiada recém-chegada a Genebra. 

Junto aos escombros de uma cidade ucraniana, um batalhão de militares tocou o hino do país, numa imagem (e vídeo) que se tornou viral. Adivinhamos que haverá trabalho de marketing na gestão mediática desta guerra, sendo caso para dizer: ainda bem! Comunicar capazmente mensagens válidas e verdadeiras é imperioso e sem contraindicações, como demonstrou Churchill durante a Segunda Guerra. Felizmente que Zelensky é um comunicador exímio, para ajudar a transmitir o horror a que os seus conterrâneos estão sujeitos e continuar a mobilizá-los. Tal qualidade em nada deslustra a sua óbvia coragem, antes ajuda a internacionalizá-la.  

Fátima também aceitou ajudar a Ucrânia e, além de receber refugiados, vai enviar uma das imagens peregrinas de Nossa Senhora – a 13ª – para o país, anuindo ao pedido de uma das dioceses martirizadas! Percebe-se quanto a mensagem da Senhora da Cova de Iria voltou a ecoar além-fronteiras. Repete-se, sobretudo, o aviso da aparição de 13 de Julho de 1917, sobre os erros de uma Rússia expansionista, a partir de 1917 sob a batuta comunista, que sempre persistiu na expansão territorial (e ideológica), apesar de banida da praxis internacional, após a Segunda Guerra. É nisso que difere dos Romanov, pois estes seguiam a tradição da época, sendo que foram exterminados pelos revolucionários leninistas-trotskistas, em Julho de 1918. Porém, é incontornável o entusiamo de Putin pelo czar Nicolau I, cujo lema «Ortodoxia, autocracia e nacionalismo» poderia conferir algum substrato histórico (como se servisse de legitimação) à sua intenção de reunificar o «mundo russo» (ou «Russkiy Mir»). Enfim, um passadismo megalómano, impiedoso e inaceitável no século XXI.  

É dramático que as palavras duríssimas de Vasco Pulido Valente, esperando o pior de um ex-KGB manipulador como Putin e de uma ex-grande potência decadente, se revelem certeiras, 7 anos depois! Quando foram publicadas, em Fevereiro de 2015, VPV fazia conjecturas a partir da invasão da Crimeia pelo sempiterno presidente russo, a quem os diferentes ventos da história parecem não ter humanizado e pouco ou nada ensinado, de positivo. Mostra-se, antes, mais empedernido num nacionalismo descabelado e sem escrúpulos. Na altura da queda do Muro de Berlim, Vladimir Putin prestava serviço na filial da KGB, em Dresden, que se viu rodeada por uma multidão a manifestar-se contra aqueles agentes sádicos. Putin contou, em entrevista, que telefonou logo para Moscovo a pedir reforços. Como ninguém atendeu, percebeu que estava em marcha a nova política da ‘Perestroika’. Decidiu, então, queimar os documentos incriminatórios da actividade sinistra da KGB, na Alemanha de Leste. Teve tanto para fazer desaparecer – disse, parodiando – que o forno explodiu! Sem eufemismos, o historiador português fala abertamente do início da Terceira Guerra Mundial:

Opinião

«Ver ou não ver 

Os movimentos preliminares da III Guerra Mundial estão em curso: para o Ocidente ver – ou não ver.
Com as nossas preocupações domésticas, não nos sobra o tempo para pensar em coisas muito mais sérias como o expansionismo da Rússia.

Vem na Wikipédia, mas convém repetir, que a Rússia é uma federação de 22 repúblicas, 46 regiões autónomas (como a da Madeira) e nove territórios. Pior ainda, tem 160 etnias diferentes, 100 línguas diferentes, quatro grandes religiões diferentes (a ortodoxa, a islamita, a judaica e a budista) e uma enorme variedade de seitas, que constantemente varia e se multiplica. Tudo isto para uma população relativamente pequena de 140 milhões de habitantes. Qualquer pessoa de senso compreenderá que, segundo um velho hábito do século XVIII, chamamos Rússia a um Império que só pode ser governado autocraticamente e onde a democracia está para sempre condenada. 

O autocrata de hoje já não é o czar Nicolau II, nem Lenine, nem Estaline, nem Khruschev, nem Brejnev. É um antigo membro da polícia secreta e, por consequência, um dissimulador, um mentiroso, um torcionário e um assassino, que dá pelo nome de Putin e que preside a uma cleptocracia, largamente caótica, a que só a violência e o seu arbítrio garantem uma vaga coesão e uma aparência de Estado. Além disso, na falta de uma legitimidade dinástica como a dos Romanov, ou ideológica como a URSS, Putin precisa, para se ir aguentando, de invocar a legitimidade imperial, principalmente depois da maior derrota que o Império sofreu desde 1613. O que não seria importante, se depois da implosão do comunismo a Rússia não permanecesse a segunda potência militar do mundo.

E se a Europa não se tivesse desarmado, como desarmou, para pagar o Estado social. A Inglaterra, por exemplo, gasta em defesa menos do que 2 por cento do PIB, no momento em que Putin (de resto, provocado pela França e pela Alemanha) embarcou numa política claramente agressiva e revanchista. A Crimeia foi o primeiro objectivo, como já o fora para Catarina, porque o Império fica fechado ao exterior sem um porto de água quente; e o segundo foi parte da bacia do Donetsk, porque a Crimeia não serve de nada sem uma ligação fácil e segura ao coração do Império.

Estaline e Hitler perceberam este ponto essencial. Putin também; e não há a sombra de uma dúvida de que não recuará. Como, tarde ou cedo, vai acabar por querer que as repúblicas bálticas voltem ao seu domínio e que a Ásia Central aceite obedientemente a sua ordem. Os movimentos preliminares da III Guerra Mundial estão em curso: para o Ocidente ver – ou não ver.»

Vasco Pulido Valente no PÚBLICO de 
27 de Fevereiro de 2015
 
Notícia de última hora: hoje, arranca uma nova rádio digital falada em português e em ucraniano, com informações úteis para os refugiados refazerem a sua vida em Portugal e com programação musical do seu país, para os fazer sentir em casa. Trata-se de uma iniciativa muito oportuna da Rádio Comercial.

Tempos inimagináveis para muitos de nós, tempos de conversão para os cristãos (em plena Quaresma) e tempos de decisão para todos! Naturalmente, também de possibilidade de amadurecimento pessoal e de solidariedade com quem precisa. Mas há tantas incertezas difíceis, até porque falta entrar nesta equação a grande incógnita que é a China… Possa a humanidade estar à altura da encruzilhada histórica, que tem pela frente! O caminho, embora difícil, qual porta estreita e árdua, tem sido sulcado pela bravura e com o sangue dos ucranianos, a quem não tem faltado heroísmo para se baterem pelos valores mais elevados. Luminosos no seu exemplo.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

14 março 2022

Textos dos dias que correm *

Três notas sobre a Guerra

A invasão da Ucrânia por parte da Rússia começou no passado dia 24. Não faltam por estes dias bons textos de análise política, geopolítica, histórica, ou sociológica de uma situação que será tão complexa quanto mais for levada a sério. Esta é uma altura em que se justifica de maneira particular atender à qualidade da informação que se lê e se ouve: a cacofonia é geralmente inimiga do rigor e a informação de má qualidade é infelizmente portadora de desinformação. Quanto melhor qualidade tiver a informação que recolhemos nesta altura e quanto mais garantirmos que as fontes às quais recorremos – jornais, redes sociais, livros, comentadores – são fidedignas, melhor poderemos contribuir para um debate que terá enormes consequências no futuro do nosso mundo.

Do ponto de vista do pensamento cristão, há três notas que neste momento parecem ser especialmente relevantes para pensar no fenómeno da guerra. Todas podem facilmente ser desenvolvidas tanto por via da leitura quanto de conferências online.

Três condições para que uma guerra seja justa

O horizonte cristão aponta permanentemente para a paz, como nos lembra o Papa Francisco no capítulo VII da encíclica Fratelli Tutti. Contudo, a tradição cristã não é ingénua em relação à necessidade de em algumas situações muito específicas recorrer ao uso da força para com isso defender o inocente. Numa formulação inspirada em Santo Agostinho e desenvolvida ao longo de toda a história da Igreja, há três condições que simultaneamente têm que ser reunidas para que uma guerra possa ser considerada justa: a causa tem que ser ela própria justa; a intenção tem que ser reta; e a autoridade que sanciona a intervenção tem que ter legitimidade para o fazer. A estas três condições, a jurisprudência medieval e moderna foi associando outras. São especialmente relevantes as condições de o uso da força só poder ter lugar como intervenção de último recurso; e de haver probabilidade de sucesso na intervenção a ter início. Apesar de confusa na apresentação, esta página esquematiza bem a terminologia da guerra justa e dá exemplos que ilustram bem o seu uso.

No que diz respeito à invasão russa da Ucrânia, só um exercício de fantasia permite pensar que estas cinco condições estão reunidas em simultâneo. A causa invocada por Putin de defender as populações russófilas de duas províncias de um genocídio seletivo em curso não é reconhecida pela comunidade internacional; é difícil de fugir ao facto de a intenção de Putin consistir numa declaração feita perante o mundo sobre a força da nação Russa e da sua capacidade militar; esta não é uma intervenção sancionada pela ONU ou por nenhuma nação com credibilidade diplomática internacional; a ação não teve lugar como último recurso; e a probabilidade de sucesso, como se tem visto ao longo dos últimos dias, existe mas não é garantida. De um ponto de vista cristão, a menos que surja informação que altere radicalmente o conhecimento que neste momento a comunidade internacional tem da realidade, não é possível de modo algum encontrar justiça na invasão iniciada pela Rússia no mês passado.

O problema do tiranicídio

Têm-se sucedido, não só nas redes sociais, mas também da parte de ativistas políticos ou de comentadores de assuntos internacionais, sugestões de que para terminar esta guerra bastaria eliminar a cabeça da serpente – seja por via da prisão de Putin na condição de criminoso de guerra, ou mesmo do seu assassinato. O argumento habitualmente utilizado formula-se mais ou menos da seguinte maneira: esta guerra é decretada por um homem concreto; é uma guerra injusta e que provoca sofrimento a uma grande quantidade de inocentes; parar este homem concreto faz com que a guerra deixe de ter condições para existir; portanto, deve-se fazer tudo o que for possível para parar este homem concreto.

Note-se que a tradição cristã não se opõe de modo absoluto à possibilidade do tiranicídio. Num caso em que um tirano, legitimamente eleito para ocupar um cargo de poder ou não, faz perigar a vida da comunidade e impede de maneira grave a possibilidade de viver uma vida moralmente sã, não havendo possibilidade de recurso a uma autoridade superior que destitua este tirano da sua posição e não havendo alternativa para que a grave ofensa à comunidade deixe de acontecer, a porta abre-se para a discussão sobre a morte do tirano. Esta discussão ocupou São Tomás de Aquino, o Papa Pio XII e mais recentemente uma quantidade significativa de académicos a propósito de algumas das nações tirânicas com capacidade nuclear ou na iminência de adquirirem capacidade nuclear.

O problema do argumento de que “para terminar esta guerra basta eliminar a cabeça da serpente” prende-se com uma das condições que em qualquer ponderação que justifique o tiranicídio tem que estar reunida: a certeza de que a eliminação do tirano permitirá restaurar a paz e a justiça. E essa certeza, no caso de Putin, não existe. O desconhecimento sobre o grau de adesão do establishment russo ao seu Presidente é grande, não havendo nenhuma garantia de que não surgisse no lugar de Putin outra figura agregadora que mantivesse a retórica pró-URSS e securitista que tem marcado o governo do Presidente russo.

Não deixar que a violência se internalize

Um ponto que entre os primeiros cristãos levantava muita dificuldade prendia-se com aquilo a que se veio a designar como o problema da internalização da violência. É verdade que para Tertuliano, Orígenes e muitos outros padres da Igreja, se assume que por vezes, para alcançar a paz, é preciso usar a força. Por vezes, para corrigir a violência que impede a paz de existir, é preciso ser violento com o intuito de que a paz se instale. Esta é a posição dominante para o pensamento cristão e é daqui que nasce a necessidade de definir quais os critérios que fazem com que uma guerra possa ser considerada justa.

Mas é preciso notar que para todos estes padres da igreja, há uma preocupação fundamental que tem que ser assegurada: é preciso garantir que a força não corrompe. Na carta que escreve a Fausto, por exemplo, Santo Agostinho pergunta-se sobre qual é o mal que existe na guerra. E a resposta não refere a morte, nem a dor causada, nem a destruição provocada – mas sim a possibilidade de se ganhar amor à violência, de se ficar apegado ao poder, etc. Esta é uma visão da qual em grande medida nos afastámos: a guerra preocupa-nos por causa da destruição que provoca e do mal que causa. Mas não deixa de ser interessante perceber que durante uma grande parte da nossa história esta preocupação fundamental com a internalização da violência tenha sido o principal foco de atenção.

Em tempos de guerra, levar seriamente esta preocupação dos primeiros cristãos é crucial. O horizonte cristão aponta permanentemente para a paz e por isso a nossa resposta à guerra não é a guerra, mas a paz. A guerra nunca é uma resposta: em algumas circunstâncias muito específicas e raras, é uma necessidade – mas não é e nunca será uma resposta. Não deixar por isso que o amor à violência, na nossa maneira de pensar e de falar, ganhe raízes dentro de nós, não é um extra para os virtuosos: é uma condição básica para os cristãos viverem no meio do mundo sem serem do mundo.

P. Francisco Mota, sj 

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O P. Francisco Mota, sj tem escrito sobre este tema na revista Brotéria, nomeadamente:

Pode uma guerra ser justa? Notas a propósito do 4º centenário da morte do P. Francisco Suárez, SJ – I , Vol. 185, Nº. 6, 2017, págs. 979-990

Da indignação justa – I Vol. 186, Nº. 4, 2018, págs. 511-520

O problema da força e da guerra – I Vol. 191, Nº. 5, 2020, págs. 401-409

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* publicado no Ponto SJ em 9.11.22 

13 março 2022

II Domingo da Quaresma

EVANGELHO – Lc 9,28b-36

Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago
e subiu ao monte, para orar.
Enquanto orava,
alterou-se o aspecto do seu rosto
e as suas vestes ficaram de uma brancura refulgente.
Dois homens falavam com Ele:
eram Moisés e Elias,
que, tendo aparecido em glória,
falavam da morte de Jesus,
que ia consumar-se em Jerusalém.
Pedro e os companheiros estavam a cair de sono;
mas, despertando, viram a glória de Jesus
e os dois homens que estavam com Ele.
Quando estes se iam afastando,
Pedro disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias».
Não sabia o que estava a dizer.
Enquanto assim falava,
veio uma nuvem que os cobriu com a sua sombra;
e eles ficaram cheios de medo, ao entrarem na nuvem.
Da nuvem saiu uma voz, que dizia:
«Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O».
Quando a voz se fez ouvir, Jesus ficou sozinho.
Os discípulos guardaram silêncio
e, naqueles dias, a ninguém contaram nada do que tinham visto.

10 março 2022

Do Endurance descoberto

A 5 de Dezembro de 2016 escrevia o texto abaixo, sobre o livro South, de Sir Ernest Shackleton. Li ontem, no Observador, que o navio Endurance, no qual o explorador e a sua tripulação navegaram até ao Polo Sul, há mais de um século, fora descoberto em óptimo estado, a 10 mil pés de profundidade. Vale a pena ler o livro, não apenas como uma livro (quase) de aventuras sobre um tipo de pessoas que já não existe, mas como uma metáfora para muitas coisas: a refeição com espaço tribal de coesão contra o desmoronar das coisas, a impossibilidade de ser-se explorador num certo sentido da palavra. 

JdB 

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Retomo South, de Sir Ernest Shackleton.

Nota prévia: em bom rigor, e defendi-o ontem numa apresentação, o livro tem um título errado. Não deveria chamar-se South, mas sim We Leave no Man Behind, uma ideia que já vem de tempos muito antigos e que, de facto, ilustra bem melhor a epopeia deste explorador, que conseguiu resgatar todos os seus companheiros.

Shackleton tem um conjunto imenso de características e valores dentro de si: a lealdade, a tenacidade, a liderança, os conhecimentos técnicos, o carisma, a capacidade de estabelecer laços entre as pessoas em condições particularmente difíceis. E tem uma grande qualidade que marca a diferença para o seu rival, Scott. Há uma altura em que ele sente que a expedição está em risco e não hesita em decidir voltar para trás. E em vários momentos, o líder da expedição tem de fazer escolhas: não só uma escolha de caminho em função de ventos, características da neve ou do iceberg, de proximidade com um vislumbre de existência humana e salvadora, mas uma escolha de equipamento. É preciso alijar carga, reduzir o peso transportado ao exclusivamente necessário. 

O que é exclusivamente necessário? Shackleton entende que a viagem de regresso pode ser longa, a equipa poderá ter de passar o inverno em instalações precárias numa costa inóspita. Nessas condições, entende ele, um homem pode precisar de algo que lhe ocupe a mente, algumas recordações tangíveis de casa e da família. É por isso que descartam as moedas e mantêm as fotografias. E é por isso, ainda, que levam consigo duas folhas da Bíblia que a rainha Alexandra oferecera ao barco: aquela onde consta a sua dedicatória e outra, onde está um excerto do livro de Job (Jb, 38:29). 

De que seio sai o gelo?,
E quem produz a geada do ar,
quando as águas endurecem como pedra,
e se congela a superfície do abismo

O que significa exclusivamente necessário? Falamos de sobrevivência, mas uma folha da Bíblia e um punhado de fotografias não são essenciais ao corpo e à fome a -20ºC... O exercício da equipa de Shackleton é uma boa metáfora para a vida: o que podemos deitar fora para continuarmos a ser o que somos? O que é essencial e acessório?  O que garante a subsistência do corpo ou da alma? Se o soubéssemos sempre, talvez fossemos mais felizes ou, no confronto com um desaire, conseguíssemos perceber que podemos perder muito mais do que pensamos e, mesmo assim, manter a nossa integridade.

JdB

07 março 2022

Da oncologia pediátrica na UcrÂnia

A Ucrânia está na hora do dia. Nada que possamos ter vivido nos faz imaginar o que é a angústia e as dificuldades da população, o nível de ansiedade e de preocupação por um futuro que, em sendo optimistas, é interrogado. Os pessimistas - ou os realistas? - saberão o que vai passar-se: uma desgraça em tempo real, sem que o mundo ocidental faça nada - porque não pode ou porque entende que não deve.

Por razões óbvias acompanho o drama da comunidade da oncologia pediátrica: crianças que fazem quimioterapia nas caves dos hospitais ou nas estações de metro, tratamentos que se atrasam com consequências potencialmente dramáticas, falta previsível de medicamentos, diagnósticos que se farão demasiadamente tarde. A acrescer a isto, os pais destas crianças na guerra, as mães a aguentarem tudo sozinhas, a tomar conta de outros irmãos ou de gente mais idosa que também sofre e tem limitações.

Pela primeira vez na vida acompanhei de perto as estratégias para minorar o sofrimento destas crianças: grupos de trabalho que se reunem diariamente para actualizar informações, para identificar corredores humanitários negociados com governos, para reportar o sucesso de transportes aéreos específicos ou a capacidade instalada para receber estas crianças. 

Não falamos de milhares de crianças; não falamos de gestos heróicos ou de movimentações secretas. Falamos apenas de dedicação, de colaboração, de partilha de informação, de pessoas dos Estados Unidos, da Polónia, da Áustria, de Inglaterra ou de Portugal, que se reunem para garantir que ninguém fica para trás, que cada criança ou adolescente que morrerá - e nunca saberemos o número de crianças que morreu por falta de tratamento atempado - é o regresso à barbárie e à escuridão da alma. Provavelmente, à hora a que este grupo se reune, reunem-se outros grupos para tratar de outras comunidades de gente vulnerável. 

No fim de Spanish Train, de Chris de Burgh, o narrador diz:

And far away in some recess
The Lord and the Devil are now playing chess
The Devil still cheats and wins more souls
And as for the Lord, well, he's just doing his best

O mundo é este spanish train, onde o melhor da humanidade se confronta com o pior da humanidade. Espero que consigamos fazer mais do que apenas o nosso melhor...

JdB 

06 março 2022

I Domingo da Quaresma

 EVANGELHO – Lc 4,1-13

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus, cheio do Espírito Santo,
retirou-Se das margens do Jordão.
Durante quarenta dias,
esteve no deserto, conduzido pelo Espírito,
e foi tentado pelo diabo.
Nesses dias não comeu nada
e, passado esse tempo, sentiu fome.
O diabo disse-lhe:
«Se és Filho de Deus,
manda a esta pedra que se transforme em pão».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Nem só de pão vive o homem’».
O diabo levou-O a um lugar alto
e mostrou-Lhe num instante todos os reinos da terra
e disse-Lhe:
«Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos,
porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser.
Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Ao Senhor teu Deus adorarás,
só a Ele prestarás culto’».
Então o demónio levou-O a Jerusalém,
colocou-O sobre o pináculo do Templo
e disse-Lhe:
«Se és Filho de Deus,
atira-te daqui abaixo,
porque está escrito:
‘Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito,
para que te guardem’;
e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão,
para que não tropeces em alguma pedra’».
Jesus respondeu-lhe:
«Está mandado:
‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
Então o diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação,
retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo.

04 março 2022

Textos dos dias que correm

Moral e Guerra

As leis da moral são uma invenção da humanidade para privar dos seus direitos os mais poderosos em favor dos fracos. As leis da história subvertem as leis da moral a cada passo. A validade de uma perspectiva moral nunca pode ser confirmada ou infirmada por um qualquer exame definitivo. Quando um homem cai morto num duelo, isso não demonstra que as suas ideias eram erradas. O facto de ele se ter envolvido numa tal prova apenas atesta uma nova e mais vasta perspectiva. A vontade dos duelistas de renunciar a quaisquer novas discussões, reconhecendo o carácter trivial de todo e qualquer debate, e de apelar directamente às instãncias do absoluto histórico indica claramente a pouca importância de que se revestem as opiniões e a grande importância das divergências em torno dessas mesmas opiniões. Pois a discussão é efectivamente trivial, mas o mesmo não se pode dizer das vontades opostas que a discussão pôs em relevo.
A vaidade humana é bem capaz de tocar as raias do infinito, mas o seu saber permanece imperfeito, e, por mais que ele acabe por valorizar os seus próprios juízos, em última análise vê-se obrigado a submetê-los a um tribunal superior. Na guerra, não há lugar a recurso. Aí, quaisquer considerações em torno da equidade, da rectidão e dos direitos morais são esvaziadas de todo o valor e fundamento e os pontos de vista dos litigantes são desprezados. As decisões de vida e de morte, do que há-de ser e do que não há-de ser, ultrapassam todos os critérios de certo ou errado. As escolhas desta magnitude subordinam aos seus ditames todos os dilemas menores, morais, espirituais, naturais.

Cormac McCarthy, in 'Meridiano de Sangue'

02 março 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 A UCRÂNIA ACORDOU A EUROPA 

A democracia ressoou com uma vitalidade espantosa por toda a Europa, desde que as tropas de Putin se precipitaram sobre o país vizinho, à revelia dos acordos internacionais que permitem a coabitação pacífica dos povos. Quando os tanques russos violaram as linhas fronteiriças, os relógios ucranianos marcavam as 5h05 da madrugada de Quinta-feira, 24 de Fevereiro. Aconteceu um par de dias depois do encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno, decorridos em Pequim, e antes de o degelo começar a atrapalhar o avanço dos tanques por caminhos transformados em lamaçais.

Apesar da saraivada de notícias sobre a militarização junto à fronteira com a Ucrânia, em crescendo desde Novembro, o Ocidente acordou sobressaltado com a perfídia do ataque russo em três frentes simultâneas e distantes entre si. Foi muito além do esperado assalto às repúblicas ditas separatistas, pelo que nem os piores cenários traçados pelos media tinham previsto uma invasão tão descaradamente extensa.

A desculpa esfarrapada de que os governados de Kiev eram neo-nazis e toxicodependentes caiu no ridículo, pois rapidamente se ficou a saber que vários dirigentes ucranianos eram judeus dos quatro costados, como o presidente Zelenskyy, que ficará para a história como um herói de guerra. Esperemos que não venha a ser também um mártir. A segunda mentira, de que a Rússia se propunha repor a paz na Ucrânia, perdeu razão de ser face à revolta generalizada e frontal da população invadida, que não se reconhece como “irmã” do povo russo, a menos que se trate de violência doméstica inaceitável. A firmeza e bravura da reacção ucraniana depressa criou rastilho no Ocidente. 

Adiantando-se aos governantes, foram as multidões aos milhares que encheram as ruas em protesto contra a beligerância do Kremlin. Assim pressionaram os Governos a adoptarem medidas verdadeiramente penalizantes contra um agressor sem escrúpulos, disposto a impor-se pela força bruta e primitiva das armas. 

Transmitido na ABC NEWS e noutras cadeias de televisão por todo o Ocidente: «We don’t need a cold, or hot, or hybrid war. But if we are attaked by troops, if they try to take away our country, our freedom of life, the lives of our children, we will defend ourselves.» E respondeu à proposta de Biden de o acolhe nos EUA, que não estava a pedir uma boleia para salvar a pele, mas armas e recursos para defender o seu povo do invasor.  

No Vaticano, o Papa Francisco rompeu o protocolo e deu um passo inédito ao dirigir-se, pelo seu pé, à Embaixada da Rússia acreditada junto da Santa Sé, para pedir o cessar-fogo e uma solução pacífica imediata. 

Noticiado pela Reuters, a 25.FEV.2022. O Embaixador russo referiu apenas que o Pontífice tinha pedido protecção para as crianças, os doentes e a população civil. A 14 de FEV., o Embaixador ucraniano junto da Santa Sé afirmou que o seu país estava aberto a uma mediação do conflito pelo Vaticano.

A Suíça afirmou-se disposta a romper a tradição de neutralidade bélica para auxiliar o povo ucraniano. 

No mundo da cultura também se terçaram armas pelos invadidos e o famoso maestro russo Valery Gergiev, amigo de Putin mas de qualidade musical superlativa, viu cancelada a generalidade dos compromissos com as melhores salas de concerto do Ocidente, onde era presença assídua. O Carnegie Hall de Nova Iorque marcou logo posição. Seguiu-se Roterdão. Munique despediu-o de Maestro Principal da sua Filarmónica. No Scala, onde o maestro regia (com sucesso) uma ópera de Tchaikovsky, a manifestação popular junto da sala de ópera de Milão, levou os responsáveis a instar Georgiev a enviar uma carta de condenação da beligerância do Kremlin. Face ao seu silêncio ensurdecedor, a sua agenda de eventos foi cancelada. 

Na Polónia, que se tem recusado a receber refugiados em geral, a população mobilizou-se espontaneamente para ir recolher ucranianos à fronteira. Foi tal a adesão, que as autoridades tiveram de desentupir o trânsito que ficou logo congestionado na zona da raia, para permitir que a generosidade polaca pudesse continuar a salvar o maior número possível de vidas ucranianas. 

NOTÍCIA DA FORBES de 27.FEV.2022:  «POLISH BUSINESSES AND ORDINARY CITIZENS SCRAMBLE TO HELP UKRAINIAN REFUGEES.  A volunteer carries a child of Ukrainian citizens as they arrive with buses in Przemsyl, eastern . Poland, from the Medyka pedestrian border crossing as they flee the conflict in their country following Russia's invasion of Ukraine, in the late hours of February 25, 2022. - The UN said more than 50,000 Ukrainians had fled the country in the past two days, calling for "safe unimpeded access" for aid operations. Streams of people in cars and on foot were seen crossing into Hungary, Poland and Romania while hundreds camped out in a train station in the Polish border city of Przemysl. (Photo by Wojtek RADWANSKI / AFP) (Photo by WOJTEK RADWANSKI/AFP via Getty Images)»

Também do lado russo se assistiu a alguns actos heróicos, com risco de vida, a começar pela manifestação no coração de Moscovo, dispersada com violência e prisões. Na Bienal de Veneza, os artistas e o curador do pavilhão russo recusaram-se a representar o seu país, enquanto a invasão continuar. Nas manifestações pela Europa fora, alguns têm mostrado cartazes a pedir desculpa pela ofensiva do seu país, com uma frontalidade e uma coragem à russa.

Noticiado no JAPAN ASIA TIMES de 28.FEV.2022.

A fotografia do russo com o cartaz foi tirada numa manifestação anti-Putin, na Geórgia, e divulgada no tweet do Eurodeputado polaco Radek Sikorski. 


Em 1987, o grupo de rock britânico Barclay James Harvest lançou uma música profética para os tempos de hoje «KIEV», num videoclip que oferece uma visita virtual pela majestosa capital ucraniana. A ária integrou o álbum Face to Face, dos rockers que conseguiram a proeza de ser os primeiros a dar um concerto em Berlim oriental (1987), dois anos antes da queda do muro. Ficou conhecido como «Concert for the People» e foi autorizado pelos comunistas para atrair turistas, pois comemoravam-se os 750 anos da cidade. Nesse ano, KIEV chorava o desastre nuclear de Chernobyl, provocado pela má qualidade das infraestruturas soviéticas, geridas a partir de Moscovo e mantidas com repressão brutal. Era o modo de esconder a clamorosa incapacidade tecnológica para gerir equipamentos sofisticados. Mas lembram os ucranianos que Chernobyl foi só o segundo grande horror inflingido pelos russos, depois do “holomodor” do período estalinista, que matou 12 milhões à fome. A ária é bem conhecida por cá, porque também foi integrada no repertório sacro-pop dos coros acompanhados à viola:


Diz tudo, o facto de as sociedades mais críticas deste perigoso ataque provirem dos países da Cortina de Ferro. São a prova viva do trauma causado pelo totalitarismo bolchevique, de que ainda guardam memória fresca, mais de 30 anos volvidos. Durante o jugo soviético, a instituição mais odiosa do mundo comunista era a polícia política, onde Vladimir Putin fez carreira. Curiosamente, na noite em que teve início a derrocada do muro de Berlim, encontrava-se na capital alemã, a assessorar a temível Stasi. Adivinhe-se para que lado as pessoas fugiram, aos magotes?   

Quarenta anos depois, os sons dos Barclay James Harvest renascem proféticos para fazer jus à história de um país martirizado, ao mesmo tempo que lembram às democracias como a chama da liberdade é uma vela frágil, que precisa de ser defendida(1). O muito glosado poema composto por um pastor luterano alemão para denunciar o nazismo, explica-o com argúcia e boa dose de realismo:  «First they came for the socialists, and I did not speak out—  Because I was not a socialist. Then they came for the trade unionists, and I did not speak out— Because I was not a trade unionist. Then they came for the Jews, and I did not speak out— Because I was not a Jew. Then they came for me—and there was no one left to speak for me.» [de Martin Niemöller]

A possibilidade de esta música nostálgica nos instigar a contribuir para a restauração de tudo o que possa ser arrasado na Ucrânia abre a possibilidade de a vida prevalecer sobre a morte, sobre o ódio e a voragem. Por isso, apetece cantá-la aos quatro ventos, como recomendam os fãs – let's play KIEV loud now.

Para quem é crente, não é preciso lembrar que a hora pede oração, e que gostaríamos de ser atendidos antes que demasiado sangue seja derramado e as maiores loucuras sejam cometidas… pois o desespero não costuma ser bom conselheiro, menos ainda de megalómanos. Precisamente, hoje, o Papa Francisco pediu um dia de jejum e de oração pelo fim da guerra na Ucrânia. É um bom arranque para uma Quaresma, já indissociavelmente ligada aos desafios concretos do nosso tempo. Talvez possa ficar para a história por boas razões... Tenhamos nós fé para nos apoiarmos na força imensa que vem de rezarmos juntos, numa hora que também pede um verdadeiro ecumenismo!

Na Ucrânia, todos lutam, cada um com os recursos que tem. Esta idosa confia no poder da oração.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) Letra de KIEV, dos Barclay James Harvest:  

«My friends it's not what you were famous for
But now the whole world's watching you
If we could help you then you know we would
But we don't know just what to do
Eye to eye our ways are not the same
We never tried to understand
But it could pass to each of us you name
Then who's the one to take the blame

Kiev, a candle with a flame
You'll never be the same
Our hearts go out to you
And what you're going through
They've thrown away your past
Just like an empty glass
Into the fire

Someone wiser took the Steppe from you
I'm sure with reason it was right
But now it seems the whole world's blaming you
And who's the one to put things right

Kiev, a candle with a flame
You'll never be the same
Our hearts go out to you
And what you're going through
They've thrown away your past
Just like an empty glass
Into the fire

Kiev, a candle with a flame
You'll never be the same
We all will understand
You're really not to blame
They've thrown away your past
Just like an empty glass
Into the fire Kiev.»

01 março 2022

Poema para o dia de hoje

Um homem e seu Carnaval

Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.

O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.

Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.

Carlos Drummond de Andrade (in Brejo das Almas, 1934)

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