31 janeiro 2022

Texto dos dias que correm

A Idade da Derrota Aceite

Tenho sessenta anos. Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo.
A minha margem de hesitação já não se alonga em anos, mas em meses. As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores; a peste parece improvável, a lepra ou o cancro afiguram-se definitivamente afastados. Já não corro o risco de cair nas fronteiras, atingido por um machado helénico ou trespassado por uma flecha parta; as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu não me afogaria parece ter acertado. Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito, e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa. Serei levado pela décima ou pela centésima crise? É essa a única questão. Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte.
Certas fracções da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo.

Marguerite Yourcenar, in 'Memórias de Adriano'

30 janeiro 2022

IV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lc 4,21-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus começou a falar na sinagoga de Nazaré, dizendo:
«Cumpriu-se hoje mesmo
esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Todos davam testemunho em seu favor
e se admiravam das palavras cheias de graça
que saíam da sua boca.
E perguntavam:
«Não é este o filho de José?»
Jesus disse-lhes:
«Por certo Me citareis o ditado:
‘Médico, cura-te a ti mesmo’.
Faz também aqui na tua terra
o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum».
E acrescentou:
«Em verdade vos digo:
Nenhum profeta é bem recebido na sua terra.
Em verdade vos digo
que havia em Israel muitas viúvas no tempo do profeta Elias,
quando o céu se fechou durante três anos e seis meses
e houve uma grande fome em toda a terra;
contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas,
mas a uma viúva de Sarepta, na região da Sidónia.
Havia em Israel muitos leprosos no tempo do profeta Eliseu;
contudo, nenhum deles foi curado,
mas apenas o sírio Naamã».
Ao ouvirem estas palavras,
todos ficaram furiosos na sinagoga.
Levantaram-se, expulsaram Jesus da cidade
e levaram-n’O até ao cimo da colina
sobre a qual a cidade estava edificada,
a fim de O precipitarem dali abaixo.
Mas Jesus, passando pelo meio deles,
seguiu o seu caminho.

28 janeiro 2022

Da minha declaração de voto

Faço parte de um grupo de amigos que se junta(va) regularmente para almoçar, tendo criado um grupo de Whatsapp. Um dias destes perguntava um dos confrades: 

Pergunta: que recomendam os meus amigos quanto a voto: Voto util no RIO( para ter mais deputados ? será inglório ? ), ou voto no CDS ( para proporcionar mais 1 deputado desperdiçando menos votos ? ), ou até mesmo no IL. Eu voto antecipado no dia 23 mas mantenho duvidas. A Vossa recomendação será util.

Algumas pessoas responderam:

- Não faço recomendações de voto mas estou indeciso entre o CDS e IL. 

IL, não vão ganhar e podem pôr algum realismo nas questões económicas se tiverem que negociar com outros.

- PSD. Para não dividir votos e perder deputados. Com o método de Hondt a divisão de votos é altamente penalizante, e eu não quero voltar a ver o …

- Meus amigos. É preciso um Ventura para abanar o sistema.... Não é nenhum papão. (Um toque de humor: um dos confrades respondeu a esta sugestão de voto no Chega afirmando de forma diplomática: conheço alguns Chegas e têm todos uma coisa em comum: Não são de confiança…

Indeciso entre CDS e PSD… Mais provável CDS.

Meu único objetivo: que o Costa perca as eleições! Voto útil, é o que farei!

A melhor resposta foi a última, considerando que a alguns destes confrades une-os uma amizade com mais de 50 anos:

Embora toda a gente saiba como eu penso (de que aliás não faço nenhum segredo), como considero que o voto de cada um é secreto, não vos acompanho na respectiva divulgação. Penso que partilho convosco a necessidade de virar a actual página político-partidária.

Achei que já ninguém dizia que o voto é secreto (a não ser pela quase vergonha de se dizer em quem se vota), mas pelos vistos estou enganado...

Num almoço de outros amigos voltou a falar-se de política, da necessidade do voto útil e, por isso, do voto no PSD, da urgência em correr com o Costa, etc. Ao almoço, assim como no grupo de Whatsapp, disse claramente: votarei CDS. Embora perceba a lógica da utilidade, vários argumentos me levam a votar no CDS - o que faço, aliás, desde que tenho idade para votar (a partir de 1976):

1. Não quero que o CDS desapareça.

2. Acho que deve haver uma coligação de direita que galvanize uma parte do eleitorado. Excluo deste coligação o Chega, não porque dizem que é fascista, mas porque não confio neles. 

3. No dia em que o CDS desaparecer do mapa parlamentar, desaparece a única voz que, globalmente, discorda daquilo que eu discordo, e que são, nalguns casos, (quase) linhas vermelhas: o aborto, a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a disciplina de Cidadania tal como está concebida, a proibição das corridas de touros ou da caça, etc. Uns partidos são a favor, outros dão liberdade de voto; o CDS tem uma posição clara - e é contra.

Fica a minha declaração de voto. 

JdB    

26 janeiro 2022

Dos relógios e do fado

 

Um primeiro e distraído olhar não encontrará razão alguma para que, a encimar este texto, se encontrem quatro fotografias: de Amália Rodrigues, de Manuel de Almeida, de um IWC e de um Patek Philippe (esta última já utilizada num post meu de há dias. E, no entanto, há um fio condutor que une tudo isto.  

Talvez já tenha feito uma analogia semelhante neste estabelecimento: gosto de fado e gosto de relógios. Imaginemos, em benefício do meu raciocínio, que alguém me formula um pergunta desafiante: se eu só pudesse ouvir um(a) fadista a cantar um único fado, quem me recomendaria? Não hesitaria um segundo na resposta: Amália Rodrigues. Ouvi-la é sermos confrontados com a genialidade, com uma qualidade, enquanto cantora, muito acima do normal. Se essa mesma pessoa me perguntasse que relógio usaria se só pudesse usar um relógio uma vez, o que recomendaria eu? Um IWC (do modelo acima, já agora). 

Perguntar-me-ão: que fazem o Patek Philippe e o Manuel de Almeida naquele friso de fotografias? Ambos estão ali porque em relação à pergunta e se eu puder ouvir muitos fadistas a cantarem muitos fados ou puder usar muitos relógios? a resposta seria pode ouvir Manuel de Almeida ou usar aquele Patek Philippe

Manuel de Almeida e aquele modelo de relógio não são itens para uma utilização apenas. Relativamente ao fadista, que não nos confronta com a genialidade, é preciso ouvir-se muito para perceber - e só depois apreciar - o estilo, a coerência, os pormenores de interpretação. Relativamente ao relógio, o argumento é o mesmo: há, no meu entender, uma estética muito determinante que impede que seja modelo único no pulso de um utilizador. 

Olhei para o Tiffany Blue Nautilus (o modelo da Patek Philippe) e pensei que não queria tê-lo. Depois percebi que este relógio é o Manuel de Almeida do fado. Não se tem um disco apenas deste fadista, como não se tem apenas este relógio. Quem tem este relógio tem mais modelos, desta ou de outras marcas, quem tem Manuel de Almeida tem vários discos (deste ou de outros fadistas). Este relógio é uma peça de colecção, não é uma peça de utilização (muito embora possa ser utilizado, claro está). 

Numa visão radical da vida, relógios deste tipo (ou fadistas deste tipo) não deveriam ser vendidos a quem só quer este, porque pode parecer exibicionismo; no fundo, como se um ignorante entrasse num restaurante e, no momento de se estrear no consumo de vinho tinto, pedisse um Barca Velha de 1991. Um chefe de mesa ajuizado não o permitiria, dizendo-lhe: beba outros vinhos primeiro; depois pode ir a um Barca Velha de 1991.

JdB 

25 janeiro 2022

Poemas dos dias que correm

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

24 janeiro 2022

O Fado, canção de vencidos

Em cima a versão original, cantada pela Amália. Em baixo uma versão alternativa (talvez se diga 'novas sonoridades') com uns toques muito fortes de Mariachis, que trarei um dia destes.

JdB


23 janeiro 2022

3º Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lc 1,1-4;4,14-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Já que muitos empreenderam narrar os factos
que se realizaram entre nós,
como no-los transmitiram os que, desde o início,
foram testemunhas oculares e ministros da palavra,
também eu resolvi,
depois de ter investigado cuidadosamente tudo desde as origens,
escrevê-las para ti, ilustre Teófilo,
para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado.
Naquele tempo,
Jesus voltou da Galileia, com a força do Espírito,
e a sua fama propagou-se por toda a região.
Ensinava nas sinagogas e era elogiado por todos.
Foi então a Nazaré, onde Se tinha criado.
Segundo o seu costume,
entrou na sinagoga a um sábado
e levantou-Se para fazer a leitura.
Entregaram-Lhe o livro do profeta Isaías
e, ao abrir o livro,
encontrou a passagem em que estava escrito:
«O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque Ele me ungiu
para anunciar a boa nova aos pobres.
Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos
e a vista aos cegos,
a restituir a liberdade aos oprimidos
e a proclamar o ano da graça do Senhor».
Depois enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-Se.
Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga.
Começou então a dizer-lhes:
«Cumpriu-se hoje mesmo
esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».

21 janeiro 2022

Dos relógios e dos fetiches

Amigo próximo, entendido e apreciador de relógios, mandou-me o link para um artigo publicado no site da CNBC cujo título era: Patek Philippe’s Tiffany Blue Nautilus watch fetches $6.5 million at auction. Ou seja, para quem é menos versado na língua inglesa, um modelo específico de relógio da Patek Philippe atingiu os 6.5 milhões de dólares num leilão. O fabricante de relógios havia descontinuado o modelo - preço de catálogo de 52.000 dólares - e fizera uma edição limitada de 170 unidades. 

O Tiffany Blue Nautilus (imagem tirada do artigo citado)
Sobre este relógio - sobre este modelo específico - não passou a patine do tempo ou a exclusividade de um modelo único; não foi usado por assassinos famosos nem por assassinados famosos, não incluía poeira da lua ou pó dos anjos na sua lista de materiais. E, no entanto, foi vendido por 120 vezes mais o seu valor numa loja.

Diz ainda o artigo (numa tradução livre minha): o relógio, leiloado pela Phillips em associação com a Bacs & Russo de Nova York, foi o primeiro de 170 edições limitadas do Nautilus Ref. 5711 que serão feitos e vendidos em algumas boutiques Tiffany. O relógio será vendido oficialmente por cerca de US $ 52.000. No entanto, como a procura supera em muito a oferta e é o relógio novo mais popular [hottest new watch, no original], os coleccionadores ricos estavam dispostos a pagar muito mais pelo primeiro a ser colocado à venda.

Qual a diferença entre este relógio e o segundo que for posto à venda numa loja? Nenhuma. E entre este relógio e o quinto, ou o 170º? Nenhuma. Ninguém, em momento algum, vai ler no pulso do coleccionador que aquele relógio específico - aquele exemplar - foi o primeiro a ser vendido e que, por isso, mereceu que se licitasse até à obscenidade dos 6,5 milhões de dólares. E, no entanto, houve alguém que, no remanso da sua sala, onde quer que seja, achou que aquele relógio valia 120 vezes mais o preço de catálogo. Não havendo valor objectivo que o justifique, só podemos falar de fetiche - o fetiche das primeiras coisas, ou das primeiras utilizações, ou dos primeiros lugares.

Há fetiches mais baratos, confesso.

JdB          

19 janeiro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

PEÇAS DE ARTE, JUNTO À AV. DA LIBERDADE

No cruzamento da rua Rosa Araújo com a Mouzinho da Silveira, à vista da casa que alberga a Cinemateca, fica situada a Casa-Museu Medeiros e Almeida, repleta de peças lindas, bem expostas e invulgarmente bem documentadas. Na newsletter mensal, costuma sugerir-se a ‘peça do mês’, para ajudar a redescobrir o rico acervo daquela Fundação, muito portuguesa desde a origem, o que é raro com aquela qualidade.

Há um ano, a obra em destaque foi um contador alemão, das oficinas de Augsburgo, famosas, a partir do séc. XVI, pela produção de móveis refinados em madeiras exóticas, casca de tartaruga, madrepérola, pedras duras, prata, ouro, gemas, marfim, etc., feitos por uma equipa de artesãos de marcenaria, relojoaria, miniaturas e ourivesaria. Os palácios e melhores casas da Europa encheram-se de espelhos, contadores, relógios, altares, relicários, estojos, autómatos provenientes daquela cidade bávara. 

O contador da Medeiros e Almeida soma ao esplendor da peça de mobiliário, um relógio precioso e incrustações de pintura e de ourivesaria num conjunto magnífico. Não cede (creio) ao risco dos virtuosos, que tendem a pecar por excesso e puro exibicionismo. Aqui, beleza e utilidade formam uma simbiose notável. 

O contador aberto, sendo bem visíveis os três corpos que o compõem. 

O corpo central fechado, guarnecido por colunas revestidas a lápis-lazúli.

Sintetizando a explicação detalhada disponível no portal da Fundação(1), aquele móvel insere-se na moda das miniatura dos célebres ‘Gabinetes de Curiosidades’, onde se coleccionavam e mostravam as preciosidades e os exotismos que a velha Europa descobria nos continentes recém-descobertos. 

Composto por materiais nobres e raros, como o ébano, a tartaruga, a prata, o ouro, o lápis-lazúli, além de prata, o contador possui múltiplos compartimentos para servir de guardador de joias, documentos secretos, dinheiro e outras raridades do proprietário. Na proveniência consta o nome da família judia mais poderosa da Europa – os Rothschild (desconhecendo-se o ramo). 

Datado do início do séc. XVIII, apresenta três corpos: (i) a base, onde se esconde um espelho e uma gaveta, para apoio (provável) à toilette, (ii) o corpo central fechado por duas portas com pinturas no interior, a resguardar oito gavetas separadas por uma coluna coríntia em lápis-lazúli; e (iii) o topo em formato de frontão com um relógio circular sustentado por uma figura mitológica (Atlas?)

A sumptuosidade da sua decoração barroca, repleta de figuras mitológicas, convida a colocá-lo desencostado das paredes, para poder ser apreciado de todos os lados: do interior ao exterior, da frente à parte traseira, igualmente revestida a materiais nobres, quer no folheado de madeira, quer nas incrustações em prata.  

Atrás, a decoração é mais simples, embora digna de nota.

Até no remate em baixo, este contador é excepcional, pois em vez dos habituais pés em enrolamento, estes são esferas achatadas, em madeira, com a parte inferior dourada e a superior revestida a prata dourada.

A nova peça em foco, neste início do ano, é a tela «VISTA DO COLISEU DE ROMA», atribuída a Giovanni Paolo Panini, do primeiro quartel do séc. XVIII. Em Panini (ou Pannini) é recorrente a junção de diferentes exemplares da Roma imperial, ocupando o Coliseu lugar cimeiro. Em 2007, na votação pública para reactualizar as Maravilhas do Mundo, o Coliseu de Roma integrou o número mágico das novas Sete Maravilhas legadas pela Antiguidade e mais votadas pelo público. O maior anfiteatro antigo foi escolhido, quer pela sofisticação arquitectónica, quer pela longevidade incrível da construção preservada em relativo bom estado, quer pela história dramática tingida de sangue inocente de gladiadores contratados à força e de cristãos atirados às feras por causa da sua fé, quer ainda pelo seu impacto social como principal espaço de entretenimento do grande Império, ou melhor, de inebriamento manipulativo do povo por imperadores cruéis, guiados pela máxima maquiavélica de anestesiar as populações com  «pan et circus». 

A tela mostra «uma vista da cidade de Roma. Junto ao Coliseu, numa paisagem campestre, diversos elementos com vestígios arqueológicos compõem um cenário bucólico. Várias mulheres trajando à maneira do século XVIII, lavam roupa, enquanto duas figuras vestidas à maneira clássica conversam, junto a um pequeno riacho e a uma fonte com tanque. O enquadramento cenográfico é complementado por capitel e pedaço de coluna caídos no chão e por duas esculturas de cariz clássico: uma feminina e outra de leão deitado. (…) A junção de elementos reais como o Coliseu, com vestígios arqueológicos e a cena pitoresca, colocam esta pintura nos chamados cappriccio ou vista idealizada, característica do trabalho de Panini.»
(in Coliseu de Roma - Destaque Janeiro 2022 - Casa-Museu Medeiros e Almeida).

Numa curta-metragem de divulgação histórica simplificada, desfiam-se as datas mais marcantes do conhecido anfiteatro da capital do Império, edificado em areia e uma massa argilosa, com revestimentos em pedra, mármore, ladrilho. Construído sobre o lago da casa de Nero, começou por se chamar ‘Domus Áurea’, mas rapidamente tomou o nome Colosseo (Coliseu) inspirado na estátua colossal do imperador ali colocada. Aos dois andares iniciais, adicionou-se um terceiro, que permitiu albergar 80 mil espectadores. Por baixo da arena, uma estrutura de madeira formava andares subterrâneos com aberturas e elevadores vários, que alimentavam uma animada actividade de palco. Na grande arena recriaram-se batalhas navais com água e embarcações reais, realizaram-se duelos mortíferos entre gladiadores ou contra feras vindas de África com cenários feéricos, executaram-se prisioneiros (mais tarde, cristãos pelo simples facto de serem cristãos) devorados por leopardos e leões famintos, sob o olhar de uma multidão embrutecida com aquelas cenas sanguinárias e aviltantes. Só a partir do séc. IV, foi proibida a morte de seres humanos no Coliseu, que também começou a cair em desuso. A partir de 1999, tornou-se símbolo da luta contra a pena de morte, emitindo uma luz sempre que há notícia de uma sentença nesse sentido.

           

Para completar a visita à Casa-Museu das redondezas da av. da Liberdade: na esquina da rua Alexandre Herculano com a rua do Vale de Pereiro nº 19, acabou de abrir o hotel com esplanada e restaurante, da cadeia francesa Mama Shelter (https://mamashelter.com/lisboa/eat-drink/), pertencente aos fundadores do Club Med. Pode ser uma alternativa à simpática cafetaria da própria Medeiros e Almeida ou ao restaurante da Cinemateca – o «39 DEGRAUS», que tem uma esplanada gira e ampla no terraço superior da casa (https://www.cinemateca.pt/Servicos/Restaurante.aspx). 

Tudo bons motivos para explorar esta zona tão apetitosa de Lisboa, sob o sol de Inverno e o céu turquesa da cidade, privilégios nossos ideais para estas incursões culturais & gastronómicas com muito arejo.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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 (1) https://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/pecas/contador-com-relogio-destaque-em-janeiro-2021/


18 janeiro 2022

Dos lados por onde se olha para uma tragédia

 Aviso prévio: não é um post animado.

***

Já aqui falei neste caso, penso eu. Não tenho a data certa, mas foi certamente em Abril do ano passado que pediram a minha intervenção no caso de um pai confrontado com o cancro num filho com 6 ou 7 anos. O meu apoio seria emocional, nada mais do que isso. Do IPO tinham-lhe dito que pouco havia a fazer pela criança, mas quem é o pai que está preparado para aceitar não lutar até às últimas consequências pela vida de um filho? Assim foi: o pai recorreu a medicinas alternativas, a terapeutas alternativos, viu melhoras no filho. O Verão prometia boas notícias. Em Setembro o pai percebeu que pouco havia a fazer; em Dezembro, pouco antes do Natal, num fim de tarde gelado e ventoso, disse-me que tudo estava no domínio do milagre. A criança está em casa da mãe à espera que chegue a hora dele. A ideia de que ninguém sabe dia nem hora é algo de tormentoso. O pai sabe que o fim se aproxima; no entanto, estou certo, no momento antes, naqueles segundos antes, talvez ainda seja vencido pela ideia do milagre, do inexplicável. Ou talvez seja vencido pelo sossego.  

Podemos olhar para este caso sob vários prismas, embora o que nos domina será o da compaixão. Nenhum pai merece isto (não conheço a mãe), nenhuma criança merece isto. Sobreviver a este calvário é obra que requer muito equilíbrio, muito acompanhamento, muita força. Ou muita fé, que o pai não tem, embora, disse-me ele, gostasse de ter, de acreditar em alguma coisa.

O lado médico. Como se diz a um pai que o filho com 7 anos vai morrer? A última vez que me comovi, numa conferência internacional, foi quando uma médica confessou que tinha sido treinada para curar, não para dizer a uma adolescente que ia morrer. Este pai pergunta a uma médica muito jovem o que vai acontecer, quer estar preparado para os sinais. A médica, muito jovem, diz que não sabe. Como é que se diz não sei a um pai aflito, perdido, angustiado? Será que os médicos não deviam saber mais destas coisas, saber o que dizer, como dizer, o tom de voz que se deve usar ou os gestos físicos que se devem empregar? 

O lado da fé. Um amigo que enviuvara disse-me que, na altura, se tinha zangado com a religião. Este pai diz-me que gostava de ter fé, de acreditar em alguma coisa. O que faz a religião por nós? Qual a intervenção que atribuímos a Deus nestes acontecimentos? Se acreditarmos que Deus está por trás de tudo isto queremos acreditar em Deus? Ou não pensamos nisso, e a fé ajuda-nos em que sentido? Serei eu capaz de amar um Deus que provoca tanto sofrimento a uma criança pequena? Ou é por este absurdo violento que se comprova a ideia de que Deus não é senão amor, que permite que as coisas aconteçam mas que não tem intervenção directa?

O lado das dúvidas. Sempre que converso com ele penso se estarei à altura. Questiono-me se serei capaz, não porque revivo coisas, mas porque não sei o que dizer. O que se diz a um pai que me conta as angústias do filho, as dores, os pânicos? Sabendo eu que ele fala comigo porque ele sabe que eu sei que ele sabe que eu sei, o que lhe digo, como mostro a um homem que oiço, um homem a quem abraço porque seremos iguais um dia, ainda que só nos tenhamos visto duas vezes, o que é manifestamente pouco para manifestações físicas de amizade? 

O lado das interrogações. Vamos à lua, pomos telescópicos gigantes na atmosfera, somos donos de tecnologia avançada, identificamos micróbios do tamanho de nada, sabemos o que se passou há um milhão de anos na Terra. E no entanto, em 2021, uma criança de 7 anos vai morrendo em casa com sofrimento físico, emocional e psíquico. Enquanto isto acontecer, ou acontecer numa dose superior à aceitável - seja por que motivos for - ainda vivemos na idade da pedra.

Há-de chegar o dia em que receberei um whatsapp de quem não está tão emocionalmente próximo. Há-de chegar o dia em que me encontrarei com este pai. Não terei palavras para confortá-lo, lhe dar esperança em dias diferentes, porque não serão melhores. Só me resta rezar para que Deus acompanhe este pai; o mesmo Deus que não está por trás de tudo isto.

JdB 

17 janeiro 2022

Toda a arte é autobiográfica? *

Quem me está mais próximo leu os dois livros que eu escrevi: um, em co-autoria, já publicado, e o outro que dificilmente verá a luz do dia. O primeiro era fortemente autobiográfico, o segundo tinha algumas pinceladas. Este segundo livro foi lido por meia dúzia de pessoas. Para além de outros comentários, mais do que uma pessoa afirmou o mesmo: o teu livro só tem pessoas boas. Dei por mim a pensar no tema. Como não sou escritor, não tenho grandes hábitos de construção elaborada de personagens. Assim sendo, saiu o que saiu....

A discussão não é de agora e não é disparatada: a arte é autobiográfica ou é totalmente extrínseca do seu criador? E a pergunta aplica-se a toda a arte? Isto é, conseguimos ver registos autobiográficos num romancista? E num poeta? E num escultor, num pintor ou num músico? Há num busto, numa tela ou numa pauta vestígios daquilo que foi a vida do criador, ou pode ser algo totalmente extrínseco e, nesse sentido, ser absolutamente (enfim...) impessoal?

(Parêntesis: quando um actor chora, quem chora de facto? É o personagem ou o actor? De quem são, verdadeiramente, as lágrimas que vemos correr por uma cara abaixo? De quem é a emoção que provoca o pranto?)

Aceitemos, por uma questão académica, que a arte - e nomeadamente a escrita - é autobiográfica. O que diz então de mim o facto de, no livro que permanecerá numa gaveta, só ter criado personagens boas, sabendo eu que não foi um processo totalmente racional? E sabendo eu, obviamente, que o mundo não se compõe de gente exclusivamente boa. O que diz isso da minha infância, dos meus genes ou do meu meio ambiente? 

Na peça de Shakespeare (que não li) o tio de Hamlet, depois de matar o pai, casa com a mãe (pai e mãe de Hamlet), usurpando o poder. Visitado pelos espíritos, Hamlet sabe que tem de matar o tio mas, ao longo da obra, nunca o faz. Este mistério (que o é, de facto) nunca teve resposta cabal. Há quem ache que Hamlet não teve oportunidade, há quem ache que havia por ali o complexo de Édipo. Hamlet, apaixonado pela mãe, quer matar o pai. Mas o tio já o fez, pelo que... No fundo, quem sofria do complexo de Édipo, que se desconhecia à época? Shakespeare ou Hamlet? Podemos confirmar, aqui, que há dados fortemente autobiográficos na obra?  

Num longo ensaio intitulado Leonardo da Vinci and a memory of his childhood, datado de 1916, Sigmund Freud discorre sobre a obra do cientista e pintor italiano. Durante quase tres mil palavras (a quarta parte do ensaio, de um total de seis) o pai da psicanálise disseca a Gioconda e o quadro chamado Santa Ana do Louvre (Santa Ana, Nossa Senhora e o Menino Jesus). No sorriso da Mona Lisa e no facto da idade de Santa Ana e da filha, Nossa Senhora, parecerem iguais, encontra fonte de explanação: o drama associado à rejeição da mãe (já que Leonardo, filho de uma relação irregular, foi viver com o pai e com a madrasta, uma segunda mãe), as memórias mais recônditas do pintor em que um abutre agitava a sua cauda junto à boca do artista, ainda bebé, o que seria um símbolo fálico, etc. Os mais entendidos em Freud saberão melhor do que eu do que se trata. Será isto a prova evidente (a acreditar-se, nem que seja em parte, na visão freudiana) que também num quadro há sinais do nosso subconsciente?

Talvez haja mais de autobiográfico nas nossas vidas do que aquilo que se pensa. Perceber o que somos e porque somos é um caminho interessante, desafiante e proveitoso. Seja num livro, numa poesia, num quadro a óleo - ou simplesmente na forma como encaramos um slow lento.  

JdB 

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* publicado a 28.02.2014

16 janeiro 2022

II Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Jo 2,1-11

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
realizou-se um casamento em Caná da Galileia
e estava lá a Mãe de Jesus.
Jesus e os seus discípulos
foram também convidados para o casamento.
A certa altura faltou o vinho.
Então a Mãe de Jesus disse-Lhe:
«Não têm vinho».
Jesus respondeu-Lhe:
«Mulher, que temos nós com isso?
Ainda não chegou a minha hora».
Sua Mãe disse aos serventes:
«Fazei tudo o que Ele vos disser».
Havia ali seis talhas de pedra,
destinadas à purificação dos judeus,
levando cada uma de duas a três medidas.
Disse-lhes Jesus:
«Enchei essas talhas de água».
Eles encheram-nas até acima.
Depois disse-lhes:
«Tirai agora e levai ao chefe de mesa».
E eles levaram.
Quando o chefe de mesa provou a água transformada em vinho,
– ele não sabia de onde viera,
pois só os serventes, que tinham tirado a água, sabiam –
chamou o noivo e disse-lhe:
«Toda a gente serve primeiro o vinho bom
e, depois de os convidados terem bebido bem,
serve o inferior.
Mas tu guardaste o vinho bom até agora».
Foi assim que, em Caná da Galileia,
Jesus deu início aos seus milagres.
Manifestou a sua glória
e os discípulos acreditaram n’Ele.

13 janeiro 2022

Poemas dos dias que correm

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny, in 'Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano'

***

Um Grande Utensílio de Amor

um grande utensílio de amor
meia laranja de alegria
dez toneladas de suor
um minuto de geometria

quatro rimas sem coração
dois desastres sem novidade
um preto que vai para o sertão
um branco que vem à cidade

uma meia-tinta no sol
cinco dias de angústia no foro
o cigarro a descer o paiol
a trepanação do touro

mil bocas a ver e a contar
uma altura de fazer turismo
um arranha-céus a ripar
meia-quarta de cristianismo

uma prancha sem porta sem escada
um grifo nas linhas da mão
uma Ibéria muito desgraçada
um Rossio de solidão

Mário Cesariny, in 'Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano'

12 janeiro 2022

Dos duques *

(Dos dicionários): Duque, título nobiliárquico, imediatamente superior ao de marquês.

***

Na semana passada, por ocasião de um jantar de aniversário, recebemos em casa o 7º duque de L., convidado na condição de primo e amigo, não de titular. Puxo pela memória e olho em redor: era tudo família e, ainda que a nota seguinte pareça bizarra,  gente com o liceu apenas, licenciaturas antigas ou modernas, mestrados feitos ou em vias de, hipóteses de doutoramentos. No meio de todos um duque, também com uma licenciatura que data do tempo em que Bolonha era apenas uma cidade italiana. 

O que significa ser-se duque em 2015? Do ponto de vista legal, nada. Do ponto de vista histórico, já pouco. Do ponto de vista do mérito também nada, pois limitou-se a herdar, sem esforço, o que deixará a outros, até que tudo se perca na voragem de tempos diferentes. Do ponto de vista familiar alguma coisa, pois é o representante do ramo onde vou buscar o meu apelido; é, por assim dizer, o nosso "chefe".   

A frase "recebemos em casa o duque de L." pode ser lida como um exibicionismo pateta, uma snobice ridícula, um pretensiosismo deslocado. Mas a mesma frase pode ser uma bandeira que combate a ideia demolidora do "já não faz sentido nos dias que correm..." que eliminou tradições e nos condicionou a viver irremediavelmente no momento presente, como se não houvesse ontem e a beleza das coisas não persistisse para além das modas.

Adquirir um grau académico é a persistência do esforço: requer trabalho continuado, por vezes doloroso e isolado dos outros. É um sinal de alguma excelência ou, pelo menos, de labor. Estuda-se para se ser mais, para se ter mais, para se ir mais longe na satisfação própria ou na carreira e, com isso, ganhar estatuto ou qualidade de vida. Por outro lado, os títulos nobiliárquicos já não garantem prebendas nem significam particular mérito. Bem usados, são apenas uma responsabilidade, o dever de honrar um nome antigo ao qual foi acrescido um título também já antigo. Ser-se duque ou marquês é, por isso, a persistência da memória.

O mundo de hoje é utilitário, eficiente, prático, ao qual a memória humana não faz falta. Não precisamos de nos lembrar de nada porque está tudo no infinito google ou na imperfeita wikipédia. O que quisermos saber do passado está no éter, não no nosso cérebro; está numa peça de equipamento made in china, não num espaço do corpo que estabelece sinapses e se comove. A nossa lembrança das coisas antigas (relativamente às quais já não temos interlocutores vivos) é uma artificialidade tecnológica, não um saber que se transmitia oralmente. 

A existência de um duque, que já só tem, aparentemente, uma valência vagamente estética, é uma arma empunhada, não contra a cultura do mérito e do esforço, mas contra a ideia do presente absoluto. Um duque ou um marquês ou um dom antes do nome são a evidência de que todos nós somos uma História que já existia antes dos pais dos nossos pais, História essa que é contemporânea de um tempo que se media em séculos, não em velocidade do sinal ou em largura da banda. A existência de um duque não configura um revivalismo, apenas um fio condutor que se pretende intacto. Infelizmente o combate está irremediavelmente perdido, pois a memória de hoje serve o imediato, o comando informático, a programação de dispositivos, a vida vivida ao ritmo de um aparelho de cozinha alemão.  

A persistência da memória é uma arma contra a ditadura do instante imediato. Um duque não é mais nem menos do que ninguém. É apenas alguém que nos liga ao que passou de moda, ao que faz ainda sentido, apesar de já não parecer fazer sentido.

JdB       

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* publicado originalmente a 21 de Outubro de 2015. Republico com gosto, porque ontem faria anos o 7º Duque de L., se ainda estivesse entre nós. 

11 janeiro 2022

Música para o dia de hoje

 


When I'm sixty-four
When I get older losing my hair
Many years from now
Will you still be sending me a Valentine
Birthday greetings bottle of wine
If I'd been out till quarter to three
Would you lock the door
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four
You'll be older too
And if you say the word
I could stay with you
I could be handy, mending a fuse
When your lights have gone
You can knit a sweater by the fireside
Sunday mornings go for a ride
Doing the garden, digging the weeds
Who could ask for more
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four
Every summer we can rent a cottage
In the Isle of Wight, if it's not too dear
We shall scrimp and save
Grandchildren on your knee
Vera, Chuck and Dave
Send me a postcard, drop me a line
Stating point of view
Indicate precisely what you mean to say
Yours sincerely, wasting away
Give me your answer, fill in a form
Mine for evermore
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four

09 janeiro 2022

Festa do Baptismo do Senhor

EVANGELHO – Lc 3,15-16.21-22
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
o povo estava na expectativa
e todos pensavam em seus corações
se João não seria o Messias.
João tomou a palavra e disse-lhes:
«Eu baptizo-vos com água,
mas vai chegar quem é mais forte do que eu,
do qual não sou digno de desatar as correias das sandálias.
Ele baptizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo».
Quando todo o povo recebeu o baptismo,
Jesus também foi baptizado;
e, enquanto orava, o céu abriu-se
e o Espírito Santo desceu sobre Ele
em forma corporal, como uma pomba.
E do céu fez-se ouvir uma voz:
«Tu és o meu Filho muito amado:
em Ti pus toda a minha complacência».

07 janeiro 2022

Textos dos dias que correm

A Saturação da Servidão

Hoje estão em causa, não as paradas, que é tudo em que as multidões são adestradas, ou a guerra, a que se convidam; está em causa toda uma dinâmica nova para criar o habitat duma humanidade que atingiu a saturação da servidão, depois de há milénios ter dado o passo da reflexão. As pessoas interrogam-se em tudo quanto vivem. A saturação da servidão não é uma revolta; é um sentimento de desapego imenso quanto aos princípios que amaram, os deuses a que se curvaram, os homens que exaltaram. (...) Mas foi crescendo a saturação da servidão, porque a alma humana cresceu também, tornou-se capaz de ser amada espontaneamente; tudo o que servimos era o intermediário do nosso amor pelo que em absoluto nós somos. Serviram-se valores porque neles se representava a aparência duma qualidade, como a beleza, o saber, a força; esses valores estão agora saturados, demolidos pela revelação da verdade de que tudo é concedido ao corpo moral da humanidade e não ao seu executor.
Um grande terror sucede à saturação da servidão. Receamos essa motivação nova que é a nossa vontade, a nossa fé sem justificação a não ser estarmos presentes num imenso espaço que não é povoado pela mitologia de coisa alguma. Somos novos na nossa velha aspiração: a liberdade é doce para os que a esperam; quando ela for um facto para toda a gente, damos-lhe outro nome.

Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'

06 janeiro 2022

O Fado, canção de vencidos

 


Fado Anarquista Ciência humanitária Um símbolo de altruísmo Tem como fim condenar Deus, pátria e militarismo O mundo há-de assistir Aos pobres livres do jugo Espezinhar é o futuro Da burguesia a surgir E depois quando existir, O ideal ... Esplendor e bem-estar Incitar o patriotismo A miséria, o anarquismo tem por base condenar Mas o povo subjugado Esfacela-se sob a tortura Quando o seu mal tinha cura O ideal desejado Viver na prisão Nas garras dos inimigos Ai ela bem cai no abismo A fanática humanidade Pois fia-se nesta trindade Deus, pátria e militarismo

05 janeiro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

FESTA DE REIS COM JACQUES BREL E UM DISCÍPULO DE FRA ANGELICO 

Em véspera de Dia de Reis, entramos na contagem decrescente para uma das festas luminosas da sequência iniciada na noite de 24 de Dezembro. Cores quentes e festivas, enfeites e luzes de todos os tamanhos, tecidos aconchegantes e coloridos, doçaria rica, tudo é convocado para ajudar a comemorar o nascimento do Bebé de Belém. Na arte, a chegada dos Magos ao presépio é apoteótica e os italianos têm jeito para festejar, como confirma a «Adoração» concebida por um discípulo de Fra Angelico – Zanobi Strozzi (1412-1468).

A cena decorre em pleno dia e a profusão de dourados salpica de brilhos estelares os trajes sumptuosos das figuras, como se os raios cintilantes da abóbada celeste tivessem descido à terra e tocado a humanidade. Cumpre-lhes assinalar a presença das personagens ali reunidas para celebrar e tornar único aquele momento. As cintilações do ouro destacam-se em vestes onde domina uma paleta variada de tons carmesins e azuis.

«Adoração dos Magos» (1433-4), atribuído a Zanobi Strozzi (1412–1468).
Do acervo da National Gallery de Londres. 

A paisagem sóbria, onde apenas sobressaem os verdes frescos das copas das árvores e do chão viçoso pontuado de flores, oferece o enquadramento ideal para a descoberta do Menino anunciado por uma estrela misteriosa. Misteriosa até por só ter sido perceptível aos Magos, que a reconheceram como guia até ao rei dos reis. 

O pintor italiano adopta o costume de diferenciar os Sábios pela idade, mas não pela etnia, como se tornou depois comum, a fim de os tornar representativos da humanidade, para lá do universo judaico. Strozzi segue igualmente a tradição de os hierarquizar pelo ancião, a quem cabe a honra de se acercar da mãe com o Menino ao colo e, significativamente, mais se inclinar, colocando-se literalmente de gatas para lhe poder beijar o pé. 

Da tela irrompe uma beleza harmoniosa e uma tranquilidade subtil e sólida, sumamente serena junto à Sagrada Família, à direita, onde o tempo parece ter ficado suspenso. Já no extremo oposto do cortejo reina algum movimento, certa azáfama, pois os pajens dos ilustres visitantes não resistem a comentar o insólito episódio, em que os Magos se ajoelham com enorme reverência e o mais velho chega ao cúmulo de se despojar da sua coroa, prostrar-se aos pés de um Bebé, que não é seu neto, e oferecer-lhe ouro. De facto, aos Reis bastara-lhes ver, como a Maria e a José, que mansamente (e, talvez, também com espanto) aceitam apresentar o Filho a quantos se aproximaram – todos desconhecidos! –, sabendo que lhes cabe velar pelo Bebé. A simplicidade da gruta que os abriga diz tudo sobre a sua pobreza.

A par dos sábios, são os poetas que gostam de ser guiados por estrelas. Assim aconteceu ao compositor e cantor belga Jacques Brel, para quem a festa se faz com música e poesia, mesmo – ou mais ainda – quando a dor imensa prevalece na linha do horizonte visível. Por isso é menos tranquila, mas não menos lúcida, a composição que fala do astro-guia dos três Sábios do Oriente. Qual Mago do século das duas Guerras Mundiais e dos totalitarismos mais mortíferos, Brel ousou pedir uma estrela capaz de iluminar uma vida: 


«Sonhar um sonho impossível / carregar a dor das partidas / 
arder de uma qualquer febre/ partir para onde ninguém parte/ 
amar até à laceração/ amar, mesmo em excesso, mesmo mal/ 
tentar, sem força nem armadura,/ alcançar a inacessível estrela./
ESTA É A MINHA DEMANDA: 
SEGUIR A ESTRELA».

Como é habitual na estrela dos poetas, também a de Brel conduz ao amor na versão mais elevada, pelo que corresponde ao maior sonho do ser humano. Será impossível?... Nesse amor encontrou o Cardeal-poeta José Tolentino Mendonça a síntese do Natal: «Amou-nos tanto que nos deu o Seu próprio Filho. O milagre do Natal assenta sobre este dom absoluto, que nos faz perceber que só somos na medida em que nos damos.»

No mesmo sentido, um escritor norte-americano do século XIX, Henry van Dyke, criou a lenda do Quarto Rei Mago («The other Wise Man», publicada em 1895), chamado Artaban, que viu e reconheceu a estrela que impressionara Gaspar, Melchior e Baltasar. Juntou pedras preciosas e uma pérola extraordinária para servirem de presente ao soberano de todas as gerações. No caminho, cruzou-se com indigentes, a quem acudiu com o dinheiro da safira. Só que essa demora, fê-lo perder o cortejo dos três. A viagem sozinho foi mais atribulada, pelo que chegou demasiado tarde a Belém. O Menino já tinha fugido para o Egipto. Artaban tentou ir-lhe no encalce, em vão. Mas continuou a deparar-se com gente em engulhos, que pôde socorrer vendendo o rúbi. Após três décadas de buscas infrutíferas pelo Menino, apanhou-se em Jerusalém na Páscoa do ano 33. Mal entrou na cidade, viu uma pobre camponesa, em vias de ser escrava. Resolveu resgatá-la com a última preciosidade do seu presente-tesouro: uma pérola esplendorosa. Depois, foi arrastado por uma multidão, que se encaminhava para o monte calvário, onde três condenados iriam ser crucificados. Na confusão da turbamulta, acabou fulminado por uma telha pesada, que escorregou de um telhado para onde tinham trepado uns mirones. Mesmo antes de sucumbir, sentindo que falhara no principal, ouviu uma voz segredar-lhe: «Vem, bendito de meu Pai, (…) porque tive fome, e deste-me de comer; tive sede, e deste-me de beber; (…). (Q)uando o fizeste a um dos meus irmãos mais pequenos, a Mim o fizeste.». Artaban fechou os olhos com um sorriso radioso, pois o Rei que buscara toda a vida, tinha vindo ao seu encontro. 

Um dos pormenores curiosos da estória de van Dyke tem a ver com a origem da narrativa, que sempre considerou um presente de Natal, daqueles que não cabem em embrulhos: «I do not know where this little story came from--out of the air, perhaps. One thing is certain, it is not written in any other book, nor is it to be found among the ancient lore of the East. And yet I have never felt as if it were my own. It was a gift, and it seemed to me as if I knew the Giver.» Hollywood e a Broadway adaptaram o argumento para filmes e peças de teatro, onde é uma constante o Quarto Mago ser uma figura em aberto, clamada por quem mais precisa, época-a-época, chamando-nos… 

Um tempo novo, inaugurado durante a época festiva começada na noite mais estrelada da história, favorece um futuro benigno, com possibilidade de luz, para lá das nuvens que, eventualmente, ensombrem o horizonte mais próximo. Possa este fogo de artifício ecológico, da autoria da artista de Berlim, Sarah Illenberger, servir de metáfora às mil formas de pontilharmos de esperança cada dia de 2022!  Feliz Dia de Reis.



Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

04 janeiro 2022

Moleskine desinteressante

 Como já tive oportunidade de escrever neste estabelecimento, dentro de mim há um optimista acanhado; tão acanhado que quase nunca surge, cedendo o palco ao pessimista que me habita há mais de seis décadas. Ao contrário de todos os comentadores da televisão, sorridentes e confiantes com um renque de livros por trás, não acredito na redenção da humanidade; acredito, isso sim, que o virus suspendeu o pior que nos habita, sendo que a suspensão dura o tempo que medeia o grito há virus e o grito há vacina. Vi gente assim: vítimas de uma doença grave tornam-se melhores; logo que se curam voltam ao mesmo...

Escrevi o parágrafo acima, parte de um texto maior,  em Julho de 2020. Detesto esta ideia de ser um pessimista com razão: em dois anos de pandemia não me parece que o mundo tenha mudado para melhor. Não me parece que consigamos ver um módico de melhoria no país ou no mundo: há pobreza, desemprego, casais em dificuldades devido a excesso de proximidade, falências sem perspectivas de solução, vidas suspensas, descrença adicional na classe política, problemas de saúde graves nas áreas não-COVID. A pandemia não trouxe nada de bom, a não ser uma certa ideia de colaboração entre cientistas. Somos o que sempre fomos, o que significa que é preciso mais do que uma pandemia para nos mudar.

***

Vejo um filme ao fim da tarde. Numa mesa onde convivem amigas, fala-se de uma delas que acabou uma relação com o namorado. Uma delas diz: largaste fulano? Mas ele é tão bonito... Confesso a minha ligeira irritação pela ideia da beleza interior, como se fosse o único critério para gerar ou manter um encantamento, mas também me cansa esta obsessão pela beleza física das pessoas, pela magreza das pessoas, pelo sucesso das pessoas. Deixar um gordo ou uma gorda é mais aceitável ou recomendável do que deixar uma pessoa muito bonita? 

Volto ao filme. O diálogo que se segue no convívio de amigas centra-se na beleza do rapaz abandonado. Em momento algum se refere o interesse, a cultura, o divertimento, a boa formação da pessoa. Vivemos tempos ligeiros, superficiais, de consumo rápido, um pouco como se o corpo (e não os olhos) é que fosse o espelho da alma.

JdB

02 janeiro 2022

Solenidade da Epifania do Senhor

EVANGELHO – Mt 2,1-12

Tinha Jesus nascido em Belém da Judeia, nos dias do rei Herodes,
quando chegaram a Jerusalém uns Magos vindos do Oriente. «Onde está – perguntaram eles –
o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente
e viemos adorá-I’O».
Ao ouvir tal notícia, o rei Herodes ficou perturbado e, com ele, toda a cidade de Jerusalém.
Reuniu todos os príncipes dos sacerdotes e escribas do povo e perguntou-lhes onde devia nascer o Messias.
Eles responderam: «Em Belém da Judeia,
porque assim está escrito pelo Profeta:
‘Tu, Belém, terra de Judá,
não és de modo nenhum a menor entre as principais cidades de Judá, pois de ti sairá um chefe,
que será o Pastor de Israel, meu povo’».
Então Herodes mandou chamar secretamente os Magos e pediu-lhes informações precisas
sobre o tempo em que lhes tinha aparecido a estrela. Depois enviou-os a Belém e disse-lhes:
«Ide informar-vos cuidadosamente acerca do Menino; e, quando O encontrardes, avisai-me,
para que também eu vá adorá-I’O».
Ouvido o rei, puseram-se a caminho.
E eis que a estrela que tinham visto no Oriente seguia à sua frente
e parou sobre o lugar onde estava o Menino. Ao ver a estrela, sentiram grande alegria. Entraram na casa,
viram o Menino com Maria, sua Mãe,
e, prostrando-se diante d’Ele, adoraram-n’O.
Depois, abrindo os seus tesouros, ofereceram-Lhe presentes: ouro, incenso e mirra.
E, avisados em sonhos
para não voltarem à presença de Herodes, regressaram à sua terra por outro caminho.

01 janeiro 2022

Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

EVANGELHO – Lc 2, 16-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém
e encontraram Maria, José
e o Menino deitado na manjedoura.
Quando O viram,
começaram a contar o que lhes tinham anunciado
sobre aquele Menino.
E todos os que ouviam
admiravam-se do que os pastores diziam.
Maria conservava todos estes acontecimentos,
meditando-os em seu coração.
Os pastores regressaram,
glorificando e louvando a Deus
por tudo o que tinham ouvido e visto,
como lhes tinha sido anunciado.
Quando se completaram os oito dias
para o Menino ser circuncidado,
deram-Lhe o nome de Jesus,
indicado pelo Anjo,
antes de ter sido concebido no seio materno.

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