31 agosto 2020

Poemas dos dias que correm

As Causas

Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.


Jorge Luis Borges, trad. Fernando Pinto do Amaral

30 agosto 2020

22º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 16,21-27

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus começou a explicar aos seus discípulos
que tinha de ir a Jerusalém
e sofrer da parte dos anciãos,
dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas;
que tinha de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia.
Pedro, tomando-O à parte,
começou a contestá-l'O, dizendo:
«Deus Te livre de tal, Senhor! Isso não há-de acontecer!»
Jesus voltou-Se para Pedro e disse-he:
«Vai-te daqui, Satanás.
Tu és para mim uma ocasião de escândalo,
pois não tens em vista as coisas de Deus, mas dos homens».
Jesus disse então aos seus discípulos:
«Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo,
tome a sua cruz e siga-Me.
Porque, quem quiser salvar a sua vida há-de perdê-la;
mas quem perder a sua vida por minha causa,
há-de encontrá-la.
Na verdade, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro,
se perder a sua vida?
O Filho do homem há-de vir na glória de seu Pai,
com os seus Anjos,
e então dará a cada um segundo as suas obras».

26 agosto 2020

Vai um gin do Peter’s ?

PRESENTE À HUMANIDADE: UMA VACINA

Em 1961-63, um médico-cientista judeu, nascido na periferia do Império dos Czares (hoje integrada na Polónia) e cedo radicado no Novo Mundo, lançou a versão final da vacina contra a poliomielite, com total eficácia preventiva e de fácil administração, por via oral. Como resultado, em poucos anos, a solução de Albert Sabin (1906-1993) quase erradicou aquela terrível doença infantil –  denominada «paralisia infantil» nalgumas latitudes. As estatísticas oficiais contabilizam 122 países beneficiados e 2,5 mil milhões de crianças imunizadas. 

Sabin nascera Abram Saperstejn, mas simplificou o seu nome ao receber a cidadania norte-americana, em 1930, nove anos depois de ter desembarcado no porto de Nova Iorque. 

Sabin foi muitos vezes fotografado rodeado de crianças – primeiras beneficiárias da sua vacina.

Somou um segundo mérito à descoberta daquela vacina:  prescindir dos ganhos avultados que a patente lhe teria proporcionado, para assegurar um custo de comercialização acessível e assim facilitar a rápida disseminação interplanetária. Para chegar às quatro partidas do mundo, delegou a sua administração na Organização Mundial de Saúde, na altura, a instância com maior impacto internacional a nível sanitário. 

A resposta que repetia aos que o tentavam demover da loucura de não patentear a sua descoberta fulgurante era: este é o meu presente à humanidade! Contentou-se em viver dos honorários de académico e de investigador, em vez de enriquecer de supetão. 

A generosidade universal foi o fio condutor da sua vida: durante a Segunda Guerra, contribuiu para os avanços surpreendentes na imunização dos soldados contra as doenças contraídas na frente do Pacífico: febre de dengue e encefalite japonesa. Nos anos 50, já em plena Guerra Fria, formou equipa com cientistas russos para optimizar a vacina contra a pólio, numa cooperação além-fronteiras despojada de rivalidades. Em 1967, conseguiu estabelecer uma parceria científica entre os EUA e Cuba, apesar de os dois países não terem sequer relações diplomáticas. Notabilizou-se no combate às doenças virais, para mitigar os vários surtos epidemiológicos a que assistiu. Bateu-se ainda para que as suas descobertas tivessem utilidade imediata e amplitude global, começando pelos menos abonados. Defendia: «[research must] not remain something beautiful on the shelves of libraries or like the works of art hanging in museums, but that it be used, as far as possible, to solve basic and human problems» 

Monumento de homenagem na Universidade de Cincinatti, onde é imortalizado junto àqueles que mais protegeu.  

O tempo mostra que são sobretudo os pequenos gestos quotidianos, ínfimos, a sustentar e inspirar os grandes gestos, mesmo nas pessoas cujo carácter lhes confere inclinação natural para a magnanimidade. Não existem campeões por pura sorte, menos ainda por facilitismo, sem um percurso de crescimento intenso e persistente no rumo. No Império Romano, ditava a vox populi que ‘a sorte favorece os audazes’, intuindo-se que a sorte nunca é o ingrediente único do sucesso, precisando de vontade férrea. No fundo, a força propulsora estaria (e está) no protagonista, nos talentos que se esforçasse por desenvolver, fiel na catadupa das pequenas decisões de um dia-a-dia gerido com lucidez, pulso e adaptabilidade sábia aos solavancos da história. 

Mas, apesar dessa constância acumulada e reforçada no tempo, nenhuma boa escolha está garantida para ninguém. Há uma fragilidade imensa em cada deliberação, portanto também uma especial riqueza. Daí que a vacina oferecida por Sabin à humanidade seja igualmente um colosso de generosidade pela longa fidelidade à opção tomada em 1961, que nunca foi revertida. Isso permitiu um happy end clínico à escala mundial, ainda hoje útil para imunizar focos onde a doença persiste, em zonas remotas de África e da Ásia. 

Sabemos quanto este tempo clama por outra vacina. Sabemos que as melhorias nas telecomunicações agilizaram o trabalho em equipa. Sabemos que as actuais condições de mobilidade permitem uma distribuição relâmpago e em larga escala. Só não sabemos se o gesto maior de Sabin consegue inspirar a nossa geração. 

A história repete-se e, como sempre, voltarão a depender do coração (bem menos dos meios técnicos, onde estamos à frente) as decisões de maior alcance.   

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


25 agosto 2020

Divagações

 


Duas reflexões do livro acima:

"Quando François Renard, ignorando o conselho do filho para tomar um clister, pegou numa caçadeira, usou uma bengala para acionar os dois canos e produzir um 'ponto escuro acima da cintura, como um pequeno fogo apagado', Jules escreveu: 'Não me censuro por não o ter amado mais. Censuro-me por não o ter compreendido'" (p. 157)

"Talvez Stravinsky, na velhice extrema, tivesse esses finais em mente quando chamava do quarto a mulher ou algum membro da família. 'De que precisas?', perguntavam-lhe. 'De ter a certeza da minha própria existência', respondia. E a confirmação podia vir sob a forma de um afago de mão, de um beijo ou de lhe porem a tocar um dos seus discos preferidos." (p. 163)

***

As citações estão separadas,  no livro, por meia dúzia de páginas; poderiam estar separadas por uma, ou por cem. E, no entanto, ligam-se fortemente, não porque falem da morte, mas porque falam de amor e de entendimento. Segundo o próprio, não foi a falta de amor de Jules Renard pelo pai que levou este ao suicídio, mas a falta de compreensão, como acontece tantas vezes. Por outro lado, talvez Stravisnky não desejasse uma simples prova de vida. Talvez quisesse, mais do que os outros o amassem, que os outros o vissem, para assim ele próprio poder ver-se. Uma compreensão no sentido do entendimento. Querermos ter a certeza da nossa própria existência é querermos ter a certeza de que não somos transparentes, de que não somos, como dizia um padre que conheci bem, "um móvel velho, no qual toda a gente dá encontrões mas ao qual ninguém liga". 

É o amor que nos salva, diz uma sabedoria antiga. Mas o amor, se não lhe tiver associado a compreensão, o entendimento do que é o outro, de nada serve, é apenas afecto. Ainda que mal comparado vi isso ontem,  no consultório onde o meu cão foi vacinado. 

JdB

24 agosto 2020

23 agosto 2020

21º Domingo do Tempo Comum

Evangelho: Mt 16,13-20

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus foi para os lados de Cesareia de Filipe
e perguntou aos seus discípulos:
«Quem dizem os homens que é o Filho do homem?»
Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista,
outros que é Elias,
outros que é Jeremias ou algum dos profetas».
Jesus perguntou: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Então, Simão Pedro tomou a palavra e disse:
«Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo».
Jesus respondeu-lhe:
«Feliz de ti, Simão, filho de Jonas,
porque não foram a carne e o sangue que to revelaram,
mas sim meu Pai que está nos Céus.
Também Eu te digo: Tu és Pedro;
sobre esta pedra edificarei a minha Igreja
e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Dar-te-ei as chaves do reino dos Céus:
tudo o que ligares na terra será ligado nos Céus,
e tudo o que desligares na terra será desligado nos Céus».
Então, Jesus ordenou aos discípulos
que não dissessem a ninguém
que Ele era o Messias.

20 agosto 2020

Do que somos e do vocabulário

Há, entre os membros de uma determinada comunidade (que pode ser um país) um vocabulário comum, constante dos dicionários mais triviais: é aquilo que nos permite, ao nível de uma sociabilidade genérica, pedir, perguntar, responder, comentar. Traduz o que aprendemos em casa, na escola primária, no liceu, na convivência com família ou amigos; é uma linguagem não técnica, um não-jargão, pese embora a possibilidade de jargões familiares. 

A escolha de uma determinada actividade (advogado, canalizador, mecânico, enfermeiro, engenheiro, doceiro) permite o acesso a um vocabulário diferente, mais alargado, porém mais específico: é o que nos possibilita manter uma conversa mais técnica entre pares, ou graças a um fenómeno a que se chama curiosidade, entre singulares diferentes: um engenheiro electrotécnico a falar de relés com um engenheiro electrotécnico, mas também um advogado a discutir travões de disco com um mecânico. 

Entre o detentor do mister e o vocabulário estabelece-se uma relação biunívoca. Por um lado, ao atingir-se um determinado patamar de experiência, alcança-se um nível suplementar de vocábulos; isto é, a prática da doçaria provê o acesso a um conjunto diferente de expressões: ponto de espadana, açúcar mascavado, massa lêveda. Ou seja, quanto mais experiente se é, mais termos se dominam. Por outro lado, a posse crescente da linguagem técnica expande uma certa consciência do indivíduo: o domínio do ponto pérola permite manter uma discussão sobre a manufactura de compotas. O mundo alarga-se por via da possibilidade de diálogo.

***

O estabelecimento de uma relação entre o que fazemos e o vocabulário que utilizamos é, dir-se-ia, auto-explicativo. Parece-nos normal que um advogado utilize expressões como enfiteuse ou usucapião, mas talvez nos surpreenda ver o mesmo advogado a utilizar expressões como anisocoria ou esplenotomia, mais do domínio da prática médica. Contudo, podemos ir mais longe e procurar uma relação entre o que somos e o vocabulário que utilizamos. Somos preguiçosos, coléricos, generosos, românticos, egoístas, socialmente distantes ou com aversão ao contacto físico; gostamos de meditação, de agitação, de silêncio; somos perfeccionistas ou não queremos estar parados. 

Tudo isto, não sendo, em bom rigor, um mister, tem-lhe associado um vocabulário que, como vimos acima, é causa e consequência da influência no agente. O romântico usa expressões como amor ou quero dar-te a minha liberdade; as pessoas que se realizam a fazer coisas usam expressões como sextavado, com menos frequência grosa ou, amiúde, ainda não parei um minuto desde que acordei. Tal como o engenheiro gosta de usar expressões como indutância ou electroíman, o avesso ao contacto físico usa, sem incómodos de maior, expressões como distância ou hoje ainda não, que amanhã também tenho de levantar-me cedo.     

***

O que fazemos ou o que somos configura o vocabulário que usamos, sendo que a inversa também é verdadeira: as expressões traduzem sentimentos tanto como induzem sentimentos. Assim como não podemos evitar expressões como motor ou sistema de biela-manivela se habitarmos o mundo da engenharia de máquinas, dificilmente poderemos usar a expressão amo-te se não sentirmos desejo de tocar o outro; inversamente, se tivermos um certo horror ao contacto físico dificilmente nos ocorrerá dizer amo-te, derivado a um total desfasamento entre emoção e discurso. Ao contrário do discurso técnico, o discurso afectivo é uma retórica, uma técnica antiga (para Cícero, com vista a persuadir, provar e entreter) que utiliza palavra e gesto. Perceber a coerência entre um vocabulário e um feitio não é uma perca de tempo; é descortinar uma (in)coerência que nos explica muito do outro. 

Dá-me o teu dicionário e eu dir-te-ei quem és. 

JdB

19 agosto 2020

Poemas dos dias que correm

Não sei, Amor

Não sei, amor, sequer, se te consinto
ou se te inventas, brilhas, adormeces
nas palavras sem carne em que te minto
a verdade intemida em que me esqueces.

Não sei, amor, se as lavas do vulcão
nos lavam, veras, ou se trocam tintas
dos olhos ao cabelo ou coração
de tudo e de ti mesma. Não que sintas

outra coisa de mais que nos feneça;
mas só não sei, amor, se tu não sabes
que sei de certo a malha que nos teça,

o vento que nos leves ou nos traves,
a mão que te nos dê ou te nos peça,
o princípio de sol que nos acabes.

Pedro Tamen

18 agosto 2020

De um mundo saudável por decreto

Com algumas vantagens, a pandemia matou uma certa silly season... Dantes (e dantes, neste caso, são o verões pré-covid) chegava-se a esta altura e os jornais inventavam notícias, faziam inquéritos proustianos, revelavam as férias paradisíacas de pessoas cuja celebridade advinha da arte de representar nas novelas. Agora há sempre qualquer coisa, quanto mais não seja o vírus e temas associados: a estatística, as estratégias, o drama das mortes, a ligeireza com que a ministra parece olhar para os lares.

Leio nos jornais que em Espanha já não é permitido fumar na rua; reconheço que preferia saber o que é o amor para os actores jovens do que ler esta triste notícia. Devo informar que deixei de fumar em 1984; penso nunca ter-me tornado um ex-fumador maçador (a não ser, talvez, com os meus filhos, por motivos óbvios) embora me incomode o cheiro do cigarro muito perto e esteja certo da sua perigosidade para a saúde. Contudo, a proibição de fumar na rua incomoda-me, ainda que me incomodasse alguém na rua a fumar ao meu lado. O incómodo advém de uma sensação de imposição de um mundo higiénico, asséptico, vigiado, saudável por decreto e por economia de recursos sempre escassos.

Não nos iludamos: na tabela desta espécie de guildas a vigiar, a seguir a fumadores vem obesos

(conheço gente com dois dedos de testa que acha que os obesos deveriam pagar mais impostos, por serem um factor de risco superior...)

vem obesos, dizia eu, por causa da noção de saúde decretada no seio de um qualquer ministério. Nesta onda de procura obsessiva da higienização da sociedade, os obesos têm uma vantagem clara sobre os judeus em tempos de nazismo: não carecem de estrela que os identifique. Um dia proibir-se-ão as refeições excessivamente calóricas (cada empregado de restaurante terá um mestrado em dietética e uma pós-graduação em delação) e os gordos serão olhados de soslaio na rua, como criminosos que fugiram ao controlo do Grande Irmão. A seguir aos obesos talvez venham os que bebem álcool, com os estabelecimentos do canal HORECA a inverterem a regra das boîtes do meu tempo: já não haverá consumo mínimo, mas consumo máximo. Ao servir-me, o empregado, de bandeja equilibrada e sorriso mascarado, alertar-me-á: tome atenção, que já é a segunda imperial... E mencionará a aplicação informática onde, em conjunto com as entradas e saídas de dinheiro, se reportam a uma entidade competente os consumos suspeitos.

Espero citar bem: em Grande Sertão: Veredas (livro de João Guimarães Rosa) há um personagem que afirma constantemente: viver é perigosíssimo. A mim talvez me ocorra dizer que viver é chatíssimo: é a máscara constante, a desinfecção permanente, o distanciamento social (que é apenas um distanciamento físico) a que se junta a proibição de fumar na rua, remetendo o acto de puxar de um cigarro para algo sórdido, obsceno, que deve fazer-se às escondidas num lupanar que foge ao fisco e aos bons costumes. Os governos e as boas mentes vão atacar os gordos, os que bebem muito, os excessivamente sedentários, os que parecem não produzir nada de útil, os que referem de forma pecaminosa a palavra "prazer" e não fustigam de imediato as costas arrependidas. Um dia mais tarde, e não faltará muito, morreremos todos saudáveis, sem excesso de colesterol, sem tensão alta nem gordura visceral - e sem deleites.

Felizmente já não se fabrica Português Suave sem filtro, ou eu não responderia por mim...

JdB

17 agosto 2020

Música e memórias para o dia de hoje

 


Para o meu querido amigo fq, em lembrança do dia de hoje e de uma (para nós, que é o que interessa) célebre e divertida viagem a Nova Iorque há 40 anos, mais coisa menos coisa. Também poderia citar Eurico o Presbítero (Eurico, o gardingo...) e os cavalos que resfolegavam na fúria da carreira, que ele saberá do que falo.

JdB

16 agosto 2020

20º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 15,21-28

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus retirou-Se para os lados de Tiro e Sidónia.
Então, uma mulher cananeia, vinda daqueles arredores,
começou a gritar:
«Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim.
Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio».
Mas Jesus não lhe respondeu uma palavra.
Os discípulos aproximaram-se e pediram-Lhe:
«Atende-a, porque ela vem a gritar atrás de nós».
Jesus respondeu:
«Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel».
Mas a mulher veio prostrar-se diante d'Ele, dizendo:
«Socorre-me, Senhor».
Ele respondeu:
«Não é justo que se tome o pão dos filhos
para o lançar aos cachorrinhos».
Mas ela replicou:
«É verdade, Senhor;
mas também os cachorrinhos
comem das migalhas que caem da mesa de seus donos».
Então Jesus respondeu-lhe:
«Mulher, e grande a tua fé.
Faça-se como desejas».
E, a partir daquele momento, a sua filha ficou curada.

15 agosto 2020

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

 EVANGELHO - Lc 1,39-56

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direcção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».
Maria disse então:
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre».
Maria ficou junto de Isabel cerca de três meses
e depois regressou a sua casa.

14 agosto 2020

Textos dos dias que correm

O equilíbrio do casamento: Entre continuidade e mudança

Numa das cenas cruciais do filme “Vamos dançar?”, com Richard Gere e Susan Sarandon, decorre uma interessante troca de palavras entre a protagonista e o detetive privado que ela contratou para perceber se o marido a traía.

A mulher pergunta ao detetive: «Qual é, na sua opinião, a razão por que as pessoas se casam?».

O homem responde: «A paixão!». «Não», devolve ela. Diz ele: «É interessante, porque eu diria que é uma pessoa romântica. Então qual é?».

E a mulher explica: «Porque precisamos de uma testemunha da nossa vida… Há milhões de pessoas no planeta. Que importância tem a vida de cada pessoa? Mas num casamento, a promessa é importar-se com tudo… quer das coisas boas, quer das terríveis, ou frívolas. Com tudo, sempre, todos os dias. Quem promete, diz: a tua vida não passará sem ser notada, porque eu estou lá para a notar; a tua vida não ficará sem testemunhas, porque eu serei a tua testemunha…».

Então, no casamento não entra a paixão? Não entra o sentimento?

Talvez, mais simplesmente, paixão e sentimento não são suficientes por si só para justificar uma relação complexa como o casamento.

O casamento é realmente uma história na qual cada um dos dois é única e verdadeira testemunha da vida do outro: conhece o outro como ninguém, inclusive nas dobras mais secretas do ser, conhece-o e vê-o inclusive nos momentos em que ele próprio não se vê.

No casamento vemos o outro em ação a cada dia, em qualquer tipo de situação, na relação consigo próprio, além da relação com o mundo; podemos observá-lo “de costas”, conhecer lados dos quais ele próprio não tem consciência.

Vemo-lo sofrer, vemo-lo estar alegre e triste, desanimado ou confiante; vemo-lo envelhecer. Admiramo-lo, detestamo-lo, amamo-lo, rejeitamo-lo. Mas se a relação é verdadeira, o tempo torna-o cada vez mais precioso, apesar de toda a dificuldade.

Para poder ser tudo isto, o casamento tem de ser redefinido por aquilo que é: uma relação pensada para durar no tempo, não uma relação a termo. É precisamente esta característica que dele faz, no plano afetivo e psicológico, um ligame altamente específico, muito diferente das outras relações, mesmo intensas e significativas, que não têm como pressuposto partilhado o compromisso recíproco para a continuidade e duração.

Mas o projeto de fazer durar a ligame de amor “para sempre” comporta como consequência igualmente específica a necessidade de desenvolver algumas competências que não podemos dar por adquiridas: trata-se de competências necessárias para fazer frente às inevitáveis situações de crise que, mais cedo ou mais tarde, se vão apresentar, sem nunca chegar a destruir a relação.

Isto exige ao homem e à mulher que aceitem o casamento como um longo caminho, que os coloca diante do desafio de um crescimento continuado. Quer a nível individual quer enquanto casal, têm de passar, com efeito, por numerosas mudanças e momentos de renegociação da sua relação, porque a decisão inicial não é senão o primeiro ato de uma longa aventura, interessante e riquíssima.

Ler o casamento como um processo dinâmico é muito importante: a relação de casal, efetivamente, não pode ser pensada como algo de estável e definido de uma vez por todas, porque a mutação da vida no tempo e a evolução pessoal de cada um tornam necessárias contínuas adaptações recíprocas.

O desafio é o de encontrar um justo equilíbrio entre a continuidade e a mudança: continuidade que permite encontrar e manter a identidade única da relação, mudança que permite a cada um continuar a crescer, sempre no respeito pelo outro.

Precisamente em consequência de tudo isto, o aparecimento de momentos de crise não pode ser considerado um facto excecional, e não indica necessariamente uma disfunção ou uma patologia do casal; cada crise tem, antes, a função de assinalar que chegou o momento de colocar em discussão o próprio ligame, para o reorganizar sobre equilíbrios novos, e introduzir as mudanças necessárias para que a relação se mantenha ao mesmo tempo estável e sempre vital.


Mariolina Ceriotti Migliarese (Neuropsiquiatra infantil, psicoterapeuta) 

In Avvenire (Trad.: Rui Jorge Martins)

Publicado pelo SNPC em 13.08.2020

13 agosto 2020

Das minhas (aparentes) convicções

Sou católico. Muitas vezes me questionei se seria um bom católico (cristão sei que sou fraco) por ir contra algumas práticas / tradições / posições da Igreja: a necessidade dos dois milagres em processos de canonização, o excesso de facilitismo em processos de declaração de nulidade de casamentos, o impedimento de um segundo casamento pela Igreja (com regras...), a proibição quase absoluta de ordenação de mulheres, a devoção inexplicável a alguns santos (o que configura a perpetuação de um certo analfabetismo religioso), a ideia de um Deus por trás de tudo o que de bom acontece. 

Sou monárquico. Muitas vezes me questionei se seria um bom monárquico, pois tenho uma visão crítica, que não escondo se indagado, sobre algumas pessoas que, em Portugal, têm responsabilidades elevadíssimas na promoção do ideal. Tenho dificuldade em ser acrítico e achar que algumas coisas ou pessoas não se questionam ou que merecem um respeito quase absoluto. Gosto da ideia (que me parece hoje em dia prevalecente) de que o nome ou o título nos dão mais responsabilidades do que direitos, até porque prerrogativas práticas já nenhum marquês, conde ou duque tem... 

Vem este intróito a propósito dos acontecimentos que têm vindo a abalar Espanha: os escândalos amorosos (conhecidos de há muito) e financeiros atribuídos a Juan Carlos (é cansativo escrever rei emérito...). Tenho lido alguma coisa com que me cruzo ou que me mandam. Quase tudo o que leio tem um duplo menor múltiplo comum: a enorme importância que o Rei emérito (vá lá, um pouco de esforço) teve na passagem da ditadura para a democracia e a campanha orquestrada contra a monarquia. Ora, nada do que é dito em abono de Juan Carlos é falso; e nada do que é referido contra a monarquia é inocente.

Cansado desta ideia sempre apregoada da presunção de inocência (uma espécie de prudência levada ao limite, travestida de justiça), não sei, contudo, se Juan Carlos é culpado de receber 100 milhões de euros (ou era dólares?) e dar 65% a uma amante; Deve ser verdade, até, talvez, pelo facto do Rei Felipe ter renegado uma parte (toda?) da herança; muito provavelmente não gostaria de receber o que sobrasse daquela verba saudita, que talvez lhe sujasse as mãos.

(Questiono-me sempre, ingenuamente, para que quereria Juan Carlos mais dinheiro que manteria secreto. Para comprar uma Montblanc melhor? Para fazer um upgrade ao computador?)

O que não percebo - e com que não concordo - é esta defesa do Rei emérito (lá está, outra vez) com base na importância que ele teve no passado e na infame campanha anti-monarquia. Primeiro, o bem que fizemos no passado não nos dá permissão a errar no presente, quando esse erro é notório e consciente; em segundo, sabendo-se que há uma campanha anti-monarquia, aquilo que devemos fazer é tomar mais atenção e fazer (quase) tudo bem, e não assacar responsabilidades a quem nos quer fazer mal. A culpa dos nossos erros estarem escarrapachados no jornal não é de quem os publica... 

Continuo a ser um monárquico crítico. Espero que se comprove que Juan Carlos nada fez de mal (para além das amantes e da tristemente famosa e empolada fotografia ao lado de um elefante morto). Porém se se comprovar que teve um comportamento pouco ético (já não falo de ilegalidades), que com isso prejudica a monarquia em Espanha e dá uma machadada no ideal monárquico, não me venham falar no passado dele nem de campanhas orquestradas. Ele que se tivesse portado bem, porque assim não teria de sair por uma porta muito pequenina, ele que entrou para a História por uma porta muito grande. E este auto-exílio (ou as pessoas que o empurraram para fora de Espanha)...

Qual o nível de criticismo que posso ter relativamente à Igreja ou à Monarquia antes que me digam: hmmmm, o meu amigo não é bem católico nem monárquico...

JdB 

12 agosto 2020

Vai um gin do Peter’s ?

UM OBRIGADO 173 ANOS DEPOIS 

Uma história com índios, cowboys, galhardia, forte sentido de honra, reveses e actos heroicos reúne os ingredientes dos westerns. Aliás, passou-se na época que os westerns evocam. Só que em vez de corresponder a um argumento épico concebido e rodado em Hollywood, decorreu na vida real entre uma das principais tribos dos nativos norte-americanos e os irlandeses, pais de muitos dos brancos emigrados para o Novo Mundo e futuros vaqueiros das grandes pradarias do país nascido meio século antes. Muito do folclore americano tem ecos da origem gaélica que o inspira, cheio de ritmo e vitalidade.  

O primeiro gesto generoso veio dos EUA, a meio do século XIX. E a réplica deste lado do Atlântico concretizou-se este ano, para mitigar as dificuldades causadas pelo coronavírus e pelo confinamento, como narra o autor do artigo gentilmente cedido para enriquecer o gin: 

«Os Choctaw e a Covid

A tribo dos índios Choctaw é a terceira maior tribo de índios norte-americanos, logo depois das tribos Cherokee e Navajo. Entre os anos 1830 e 1850, os Choctaw, que povoavam os actuais Estados do Mississippi, da Louisiana, do Alabama e da Florida, foram expulsos das suas terras e fechados numa «Reserva». Neste tempo humilhante e de profundo sofrimento para eles, concretamente em 1847, os Choctaw tiveram a notícia de que ocorria uma fome terrível na Irlanda e cotizaram-se para ajudar esses desconhecidos, que sofriam mais do que eles.

O facto é surpreendente em si mesmo: em meados do século XIX, uns índios iletrados, que nunca tinham saído da América, nem conheciam o Atlântico ou a Europa, identificaram-se de tal maneira com a angústia dos irlandeses que se privaram do pouco que ainda tinham para ajudar quem lhes parecia mais necessitado. Assim como os Choctaw não sabiam muito acerca da Irlanda, a maioria dos irlandeses ignorava que existia uma tribo chamada Choctaw. Mas esta ignorância mútua acabou para todo o sempre.

O extermínio massivo dos irlandeses ocorreu entre 1845 e 1849. Nesses quatro anos, cerca de milhão e meio de irlandeses morreu à fome, cerca de dois milhões fugiram para os Estados Unidos e um grande número naufragou no Atlântico. Muitas vezes fala-se de um genocídio cometido pelo Reino Unido, que naquela época dominava inteiramente a ilha. Tecnicamente, não terá havido o propósito de matar. Criaram-se as condições que geraram a fome apenas com o intuito de obter maior lucro; depois, não se remediou a situação e, em quatro anos, um quinto da população morreu. Quando o Governo do Reino Unido obrigou a Irlanda à monocultura da batata, tinha consciência de impedir o seu desenvolvimento económico, mas não esperava que uma praga devastasse completamente essa única cultura e privasse a ilha de alimento. Em face do desastre, Londres manteve as proibições e pensou fazer qualquer coisa, mas acabou por deixar a desgraça seguir o seu curso.

Em contrapartida, do outro lado do Atlântico, fechados na sua «Reserva», os Choctaw amealharam os poucos fundos que tinham e enviaram-nos para o outro lado do Atlântico, para os irlandeses comprarem alimentos. Ainda hoje, as comunidades irlandesas de todo o mundo recordam a generosidade dos Choctaw e, volta e meia, têm oportunidade de lhes agradecer. Em 2018, o Primeiro Ministro irlandês, a propósito de umas bolsas de estudo oferecidas a jovens Choctaw, falava do «vínculo sagrado que une para todo o sempre os nossos dois povos. A Irlanda nunca esqueceu e nunca esquecerá o vosso gesto de simpatia». Em 2017, num parque em Cork, na Irlanda, descerrou-se um memorial formado por nove penas de águia, metálicas, intitulado «Kindred Spirits» (os espíritos da amizade) em honra da generosidade dos Choctaw.

Os acontecimentos mais recentes fizeram reviver de modo expressivo esta estima desinteressada que cresce desde há 173 anos entre as duas margens do Atlântico.

Neste momento, existem cerca de 200 mil índios Choctaw, metade dos quais na zona de Oklahoma. Ainda são muito pobres – cerca de 40% não tem água potável e 10% não têm sequer electricidade –, em geral as condições higiénicas são más e talvez por isso registam uma das taxas mais elevadas de infecção por Covid 19 nos E.U.A. Há poucos dias, quando os irlandeses receberam a notícia de que há milhares de pessoas infectadas na comunidade Choctaw e uma centena de mortos, mobilizaram-se e enviaram-lhes três milhões de dólares.

O «Kindred Spirits memorial» (memorial aos espíritos da amizade) em Cork, na Irlanda. As penas de águia transparentes são feitas de milhares de filamentos metálicos. A escultura tem uma altura de 6 metros.»

José Maria C.S. André

Publicado em blogs anglo-portugueses - 17 de Maio de 2020 


Tela alusiva ao presente da tribo índia à nação irlandesa.

Espantoso como os maus momentos podem dar ocasião aos melhores gestos! 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

11 agosto 2020

Duas Últimas


Alfonsina y el mar

Por la blanda arena que lame el mar, Su pequeña huella no vuelve más Un sendero solo de pena y silencio Llegó hasta el agua profunda Un sendero solo de penas mudas Llegó hasta la espuma Sabe Dios que angustia te acompañó Que dolores viejos calló tu voz, Para recostarte arrullada en el canto De las caracolas marinas La canción que canta en el fondo oscuro Del mar, la caracola Te vas Alfonsina con tu soledad, ¿Qué poemas nuevos fuiste a buscar? Una voz antigua de viento y de sal Te requiebra el alma y (te) está llevando, Y te vas hacia allá como en sueños, Dormida, Alfonsina, vestida de mar Cinco sirenitas te llevarán Por caminos de algas y de coral, Y fosforescentes caballos marinos Harán una ronda a tu lado; Y los habitantes del agua Van a jugar pronto a tu lado Bájame la lámpara un poco más, Déjame que duerma, nodriza en paz, Y si llama él no le digas que estoy, Dile que Alfonsina no vuelve, Y si llama él no le digas nunca que estoy, Di que me he ido

10 agosto 2020

Dos livros

Durante a maior parte da minha vida fui um leitor assíduo. Não deverei ter lido só livros bons e seguramente que falhei leituras importantes. A minha mãe lia o que era mais ou menos tradição numa pessoa moderadamente curiosa, nascida em 1925, a quem cortaram os estudos cedo: romances franceses, livros policiais, o Eça. O meu pai também era versado no Eça, de quem leu tudo, mas, fora isso, teria sobretudo leituras mais específicas: livros sobre Lisboa, sobre antiguidades, sobre pratas, sobre genealogia, etc. O meu gosto pela leitura veio, por isso, dos dois: romances, livros policiais, alguma literatura portuguesa. Nada que acrescente valor estar a referir em detalhe.

As minhas leituras mudaram de forma assinalável quando decidi fazer uma pós-graduação e um mestrado. A mudança acentuou-se ainda mais quando decidi fazer um doutoramento (cuja escrita da tese vai numa fase muito incipiente). Num instante estava a ler livros sobre o silêncio ou sobre o ruído, sobre teoria matemática da comunicação ou sobre despojamento em arquitectura; no instante seguinte lia um conjunto de ensaios de Frank Lloyd Wright (que já mencionei no estabelecimento) ou uma obra sobre solidão ou sobre as virtudes de uma existência lenta, etc., etc. Deixei a ficção de lado, com algumas excepções de recomendações para um seminário ou outro. Não me custou; gostei de ler coisas diferentes, algumas das quais me foram penosas, por exigirem um destreza mental que já não tenho.

***

Nos bancos da faculdade aprendi que a pergunta "de que trata o livro?" não tem uma resposta imediata. Dou um exemplo (e admito alguma falha no raciocínio): se há uns anos me perguntassem de que trata o livro O Fio da Navalha (Somerset Maugham) eu talvez dissesse que era a história de um americano que, na sequência da Grande Depressão e de uma falência, corre o mundo fazendo muitas coisas... Hoje alguém poderia interromper-me e dizer: isso que me está a contar é a história do livro; eu quero que me diga de que trata o livro. E eu afirmaria, de forma convicta (o que não quer dizer certa), que era sobre a procura e a descoberta interiores.

Por sugestão de mão muito amiga li, nestas últimas duas semanas, o livro acima. Foi já no fim, nas últimas páginas, que dei comigo a pensar no exemplo que dei relativamente a O Fio da Navalha. Se me perguntarem de que trata o livro diria: é sobre um nobre russo que, após a revolução de Outubro, é condenado a viver num hotel. Talvez eu próprio me interrompesse e dissesse: isso é a história do livro. Mas de que trata o livro? Não sei responder, confesso. Só sei contar a história, o que, reconheço, é (ou pode ser) pouco.

Nem todos os livros têm de ter uma mensagem subliminar. Alguns livros têm o condão de nos entreter, nos divertir, nos proporcionar horas de lazer prazenteiras - e isso pode ser muito bom. Porém, quando uma referência ao livro menciona que uma vida sem luxos pode ser o maior luxo de todos, vou à procura de algo mais. Algo que não descortinei, confesso. Deveria ter descortinado, ou bastava-me seguir a trama, perceber o enquadramento histórico, aprender uma ou outra coisa, apreciar a qualidade da escrita?

Nenhum minuto da minha vida se perdeu com a leitura do livro em causa. Gostei do livro e agradeço a sugestão, que me acrescentou valor sobre vários pontos de vista. Contudo, depois de ler livros muito específicos sobre ruído, silêncio, comunicação, budismo, ordem cartuxa, arquitectura, etc., questiono-me se perdi a capacidade de dizer do que trata um livro, limitando-me a contar a história desse livro. Será que procuro algo que não está lá ou, de facto, estou a perder algum sentido crítico?

JdB

09 agosto 2020

19º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 14,22-33


Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus


Depois de ter saciado a fome à multidão,

Jesus obrigou os discípulos a subir para o barco

e a esperá-l'O na outra margem,

enquanto Ele despedia a multidão.

Logo que a despediu,

subiu a um monte, para orar a sós.

Ao cair da tarde, estava ali sozinho.

O barco ia já no meio do mar,

açoitado pelas ondas, pois o vento era contrário.

Na quarta vigília da noite,

Jesus foi ter com eles, caminhando sobre o mar.

Os discípulos, vendo-O a caminhar sobre o mar,

assustaram-se, pensando que fosse um fantasma.

E gritaram cheios de medo.

Mas logo Jesus lhes dirigiu a palavra, dizendo:

«Tende confiança. Sou Eu. Não temais».

Respondeu-Lhe Pedro: «Se és Tu, Senhor,

manda-me ir ter contigo sobre as águas».

«Vem!» - disse Jesus.

Então, Pedro desceu do barco e caminhou sobre as águas,

para ir ter com Jesus.

Mas, sentindo a violência do vento e começando a afundar-se,

gritou: «Salva-me, Senhor!»

Jesus estendeu-lhe logo a mão e segurou-o.

Depois disse-lhe:

«Homem de pouca fé, porque duvidaste?»

Logo que saíram para o barco, o ventou amainou.

Então, os que estavam no barco prostraram-se diante de Jesus,

e disseram-Lhe:

«Tu és verdadeiramente o Filho de Deus».

07 agosto 2020

Dos problemas do primeiro mundo

Almoço com uma grande amiga, com quem não estava há muito tempo. Falamos de tudo: de livros, de política, do rei Jun Carlos, dos filhos de ambos, de amigos comuns, de projectos próprios. A casa é muito simpática (tem uma escala humana, diz ela) com uma sala para um alpendre por onde passam pássaros diversos. Pela casa dois cães; um deles, um galgo pequeno, anicha em cima do sofá com a dona, manso e feliz. 

Durante três horas falamos de tudo, repito: das alegrias mas também das tristezas, do que nos foi correndo bem e mal ao longo da vida. Trago um livro autografado, dois livros oferecidos e sugestão de outros dois. Às tantas, falando dos problemas de alguém, refere: sabes, tudo isto são problemas do primeiro mundo, dificilmente abrem telejornais...  É bem verdade, muitos daquilo que nos maça são maçadas de mundos ricos.

Chego a casa e vejo o telejornal e o drama de Beirute. Ontem ainda, na ressaca da explosão, recebo notícias de pessoas que lidavam com crianças com cancro; não há ninguém gravemente ferido, mas há um consultório e um hospital destruídos onde estas crianças eram tratadas. Isto sim, são problemas.

Vejo reportagens de pessoas que sobreviveram: um padre que rezava missa, uma noiva que ia casar, uma rapariga nova, um bebé que nasceu à luz de telemóveis. Numa sala destruída uma senhora com alguma idade toca Auld Lang Syne ao piano, uma música que em Portugal começa assim: 

Chegou a hora do adeus, 
Irmãos, vamos partir, 
No abraço dado em Deus irmãos,
Vamos nos despedir.
Partimos com a esperança irmãos, 
De um dia aqui voltar,
Com fé e confiança irmãos
Partimos a cantar.

JdB


06 agosto 2020

Poemas dos dias que correm

Rosa, flor de laranjeira...

Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...
Teu corpo branco e macio
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...
Volúpia de água e da chama...
A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Manuel Bandeira

05 agosto 2020

Duas Últimas



Eu sei que sou demais

Eu sei que sou demais na tua vida
Eu sei que nem me vês tão apagado
Apenas uma sombra indefinida
Um resto de voz triste, condenada;
Eu sei que sou demais na tua vida
De tudo quanto fui, não sou mais nada

Ai quem me dera prender o teu futuro
E uni-lo ao meu, assim de tal maneira
Como a hera verde se prende ao velho muro
E ali fica pela vida inteira

Eu sei que sou demais no teu caminho
Eu sei que nada tens para me dar
E sei que nesta luta estou vencido
Por outro amor que tens no meu lugar;
Mas sei amor, que eu na tua vida
Ninguém, jamais ninguém, pode apagar

Letra e música de Joaquim Pimentel

04 agosto 2020

Ainda da bondade

Refiro-me ao comentário de ACC ao meu post da passada 5ªfeira, no qual reproduzi um texto intitulado: o dom de ter uma pessoa boa junto de nós. Diz ACC:

O QUE É uma pessoa boa? Boa pessoa, num mundo conceptual, diverge de grupo para grupo, de comunidade para comunidade, de sociedade para sociedade.
COMO É uma pessoa boa, é mais desafiante. O COMO indica-nos o processo, o impacto e o caminho. O QUÊ aponta: Eu sou boa pessoa, eu sei que sou, talvez não pratique, porque não sei, efectivamente, como é que sou boa pessoa. A dimensão ou representação que tenho do que É UMA BOA PESSOA, pode enviesar o ser consistentemente uma boa pessoa. Todos queremos ser boas pessoas, mas não sabemos como se é boa pessoa. O medo, a insegurança, a rejeição, a necessidade de controlo e de poder são os grandes impedimentos para ser-se boa pessoa. Talvez ser boa pessoa passe por ser corajoso, seguro, saber que se é amado e incluído e, acima de tudo, trabalhar o desapego, porque nada se agarra, nada é nosso, tudo nos pode fugir das mãos num pequeno sopro.

O comentário obrigou-me a pensar mais sobre o assunto; na verdade, todos nós gostaríamos que nos dissessem que somos boas pessoas, um conceito que não está longe da noção de santidade a que todos os cristãos são chamados. E a ideia que está subjacente ao comentário parece apontar numa direcção: ser-se boa pessoa está relacionado com o processo; assim, mais importante do que perguntar-se o que é uma pessoa boa, deveria perguntar-se como é uma pessoa boa. Aristóteles (in Ética a Nicómaco) diz que, "na verdade, fazer é aprender." E reforça, afirmando que "nos tornamos justos praticando acções justas, temperados, agindo com temperança e, finalmente, tornamo-nos corajosos realizando acto de coragem." 

A qualidade de ser-se bom, como (quase) todas as qualidades, é relacional. Isto é, é-se bom com alguém; não se é bom (nem mau) numa ilha deserta ou numa existência de eremita. Assim sendo, diria que ser-se bom é colocar em prática um conjunto de virtudes (hábitos dignos de louvor, na definição aristotélica) que afectem positivamente o outro. Ser-se bom é vencer aquilo que dentro de nós vai contra a elevação da alma. 

(O meu / nosso saudoso Padre Ricardo dizia muito: podemos não saber o que fazer, mas sabemos sempre o que não fazer.)

Ser-se bom é vencer os pecados mortais (enquanto lista de comportamentos nefastos a uma vida equilibrada), não ceder a tentações que atentam contra o nosso relacionamento com o próximo; ser-se bom é pensar no outro em primeiro lugar, tomar atenção aos mais frágeis, praticar a caridade, a compaixão, o perdão, dizer que não ao rancor, ao orgulho, ao desejo de castigar de forma iníqua. É tocar a vida do outro.

Platão, na República, descreveu as quatro virtudes que uma cidade devia possuir: sabedoria, coragem, moderação e justiça. Platão desenvolveu primeiramente as virtudes na cidade; só posteriormente é que as vinculou à conduta humana, pois achava que não havia diferença entre ambas. Daqui derivam as quatro virtudes cardeais definidas pela religião cristã: prudência, justiça, temperança, fortaleza. A sua colocação em prática é uma condição necessária para se levar uma vida boa. 

O que é ser-se boa pessoa? E é o quê ou é o como? Não sei, mas sei como lá chegar: praticando as virtudes acima referidas (de entre muitas outras) e não desistir; é cair e levantar de novo, aprendendo com a queda, pedindo desculpa se necessário e recomeçar. 

Afinal, ser-se bom não é um destino, mas uma viagem.

JdB 

    

03 agosto 2020

Poemas dos dias que correm

Saudade, Silêncio E Sombra

A saudade meu amor
É o martírio maior
Da minha vida em pedaços
Desde a tarde desse dia
Em que ao longe se perdia
Pra sempre o som dos teus passos

Saudades fazem lembrar
Silêncios do teu olhar
Segredos da tua voz
E essa antiga melodia
Que o vento na ramaria
Murmurava só pra nós

Lembras-te daquela vez
Quando eu cantava a teus pés
Trovas que não tinham fim
Quando o luar prateava
E quando a noite orvalhava
As rosas desse jardim

Jardim distante e deserto
Sinto tão longe e tão perto
O passado que te ensombra
Devaneio, irrealidade
Silêncio, sombra, saudade
Saudade, silêncio e sombra

Nuno Lorena

***

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

02 agosto 2020

18º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 14,13-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
quando Jesus ouviu dizer que João Baptista tinha sido morto,
retirou-Se num barco para um local deserto e afastado.
Mas logo que as multidões o souberam,
deixando as suas cidades, seguiram-n'O a pé.
Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão
e, cheio de compaixão, curou os seus doentes.
Ao cair da tarde, os discípulos aproximaram-se de Jesus
e disseram-Lhe:
"Este local é deserto e a hora avançada.
Manda embora toda esta gente,
para que vá às aldeias comprar alimento".
Mas Jesus respondeu-lhes:
"Não precisam de se ir embora; dai-lhes vós de comer".
Disseram-Lhe eles:
"Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes".
Disse Jesus: "Trazei-mos cá".
Ordenou então à multidão que se sentasse na relva.
Tomou os cinco pães e os dois peixes,
ergueu os olhos ao Céu e recitou a bênção.
Depois partiu os pães e deu-os aos discípulos
e os discípulos deram-nos à multidão.
Todos comeram e ficaram saciados.
E, dos pedaços que sobraram, encheram doze cestos.
Ora, os que comeram eram cerca de cinco mil homens,
sem contar mulheres e crianças.

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