30 abril 2017

3º Domingo da Páscoa

EVANGELHO – Lc 24,13-35

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Dois dos discípulos de Emaús
iam a caminho duma povoação chamada Emaús,
que ficava a sessenta estádios de Jerusalém.
Conversavam entre si sobre tudo o que tinha sucedido.
Enquanto falavam e discutiam,
Jesus aproximou Se deles e pôs Se com eles a caminho.
Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem.
Ele perguntou lhes.
«Que palavras são essas que trocais entre vós pelo caminho?»
Pararam entristecidos.
E um deles, chamado Cléofas, respondeu:
«Tu és o único habitante de Jerusalém
a ignorar o que lá se passou estes dias».
E Ele perguntou: «Que foi?»
Responderam Lhe:
«O que se refere a Jesus de Nazaré,
profeta poderoso em obras e palavras
diante de Deus e de todo o povo;
e como os príncipes dos sacerdotes e os nossos chefes
O entregaram para ser condenado à morte e crucificado.
Nós esperávamos que fosse Ele quem havia de libertar Israel.
Mas, afinal, é já o terceiro dia depois que isto aconteceu.
É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos sobressaltaram:
foram de madrugada ao sepulcro,
não encontraram o corpo de Jesus
e vieram dizer que lhes tinham aparecido uns Anjos
a anunciar que Ele estava vivo.
Mas a Ele não O viram».
Então Jesus disse lhes:
«Homens sem inteligência e lentos de espírito
para acreditar em tudo o que os profetas anunciaram!
Não tinha o Messias de sofrer tudo isso
para entrar na Sua glória?»
Depois, começando por Moisés
e passando por todos os Profetas,
explicou lhes em todas as Escrituras o que Lhe dizia respeito.
Ao chegarem perto da povoação para onde iam,
Jesus fez menção de ir para diante.
Mas eles convenceram n’O a ficar, dizendo:
«Ficai connosco, Senhor, porque o dia está a terminar
e vem caindo a noite».
Jesus entrou e ficou com eles.
E quando Se pôs à mesa, tomou o pão, recitou a bênção,
partiu-o e entregou-lho.
Nesse momento abriram se lhes os olhos e reconheceram n’O.
Mas Ele desapareceu da sua presença.
Disseram então um para o outro:
«Não ardia cá dentro o nosso coração,
quando Ele nos falava pelo caminho
e nos explicava as Escrituras?»
Partiram imediatamente de regresso a Jerusalém
e encontraram reunidos os Onze e os que estavam com ele,
que diziam:
«Na verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão».
E eles contaram o que tinha acontecido no caminho
e como O tinham reconhecido ao partir o pão.

29 abril 2017

Pensamentos Impensados

Corridas
Foi promovida uma corrida de velocidade com toiros; o mais rápido foi o boi ápice.

Calotes
Diz o caloteiro: o seu pode esperar...

Escuridões
Era preto, mas tinha riso alvar.

Imagens
Há mulheres que deviam reflectir no que reflecte o espelho.

Geografias
Aqui é um sítio onde cabe a humanidade inteira; toda a gente pode dizer "estou aqui".

Explosões
Não tenho medo de estar em cima de um barril de pólvora desde que não haja uma chama ao pé.

Escutas
Oiço na TVI: "um sai em defesa do outro e vice-versa".

SdB (I)


27 abril 2017

Das fases más da vida

Valter Luís (nome próprio, nome próprio) não andava numa fase famosa da vida. Em bom rigor, não seria necessário que o cronista que agora conta a história interpretasse sinais psíquicos e os transformasse em palavras. Era ele próprio, Valter Luís, que o fazia, sentado num sofá confortável do consultório modesto da sua psiquiatra.

- não ando numa fase famosa da vida...

Dizia isto e olhava para a rua, para um parque de estacionamento de um supermercado onde as pessoas se abasteciam de inutilidades em promoções, saindo ajoujadas de sacos brancos e pagamentos diferidos.

- sabe, senhora doutora, esta semana são os verdes: brócolos, couve galega, ervilhas, favas, talvez um lombardo. Já reparou que o espinafre é o terylene dos vegetais? Chega-se-lhes um pouco de fogo e ficam em nada. Já cozinhou espinafres?

Depois, compenetrado que aquela devaneio se pagava a preço de consulta, pelo que o tempo não era de banalidades, repetiu a frase do dia, como se daí decorresse a esperança de uma benção especial, ou de uma luz redentora vinda não se sabe de onde.

não ando numa fase famosa da vida...

E Valter Luís (nome próprio, nome próprio) queixava-se de estar sozinho no mundo, ainda que rodeado de uma mulher, de amigos, de colegas de profissão ou de canasta aos primeiros sábados do mês. Era um palrador que não tinha interlocutor, um gourmet que viva com uma vegetariana niquenta, um adulto fogoso para quem o olhar desinteressado e bocejante da mulher transformava as noites íntimas numa experiência impessoal, um ex-atleta de alta competição rodeado de sedentarismo burguês e fumador. 

não ando numa fase famosa da vida...

E a psiquiatra, ajeitando o vinco de umas calças elegantes, olhando de soslaio para o relógio, para a fotografia da sua bebé deitada muito direita numa alcatifa felpuda e para as promoções da semana, falava-lhe na infância, no direito à felicidade, nas coincidências significativas, nas novas tendências de interpretação dos sonhos e nos químicos recentes que não provocavam náuseas. Mas Valter Luís (nome próprio, nome próprio) ouvia pouco, porque se lamentava da solidão em que viva, sem companhia na cozinha e com uma ausência na cama.

Levantou-se, despediu-se e desejou à médica uma Santa Páscoa, não porque fosse católico, mas porque a frase lhe parecia bonita, redonda, auditiva, correcta, sorridente apesar do peso que via nos crentes e do milagre da ressurreição em que descria, cepticismo esse agravado pela fase pouco famosa em que viva. O milagre é uma prerrogativa dos optimistas, porque a fé é dos optimistas, pensava ele... O milagre é uma espécie de ciência mais evoluída, não acessível ainda ao humano, apenas ao divino. É um acontecimento antes do seu tempo, no fundo.

Chegou a casa, um apartamento modesto com vista para um beco, e foi para a cozinha preparar o almoço pascal, apesar da descrença no túmulo vazio, na felicidade da vida e nas noites tumultuosas de gestos e velas com cheiro a sândalo. Dez minutos mais tarde, S. José Cristina (nome próprio, apelido) surgia-lhe estranhamente cedo, vinda do call center onde trabalhava. Vestia uma lingerie toda roxa, que os tempos impunham a cor, mesmo aos incréus. Apareceu-lhe sem pudor nem bocejo, provocante, com aquela figura longilínea de quem parecia uma libelinha a preparar um flic-flac. Sorriu-lhe provocante e carnívora, nos vários sentidos da palavra:

- queres que tempere o cabrito? Ou compraste borrego?

JdB   

26 abril 2017

Da felicidade como recompensa

Já aqui escrevi sobre isso: no casamento de alguém que me é próximo, o padre falou na felicidade como recompensa. Não como objectivo, menos ainda como direito - apenas como recompensa do esforço, da dedicação, da abnegação, da entrega, do sacrifício, talvez mesmo, ou sobretudo, do amor. O conceito é interessante e suscitou uma conversa num destes dias. 

O que é a diferença de se olhar para a felicidade como um objectivo ou como uma recompensa? Para mim, cavalheiro obeso por vezes obcecado com as palavras, os seus significados, as suas nuances, a diferença é total, embora não me ocorra uma argumentação totalmente demolidora - talvez seja do cansaço da mente, talvez seja da limitação do cérebro. 

Para um cristão, a santidade é o objectivo, o céu é a recompensa. Este raciocínio faz sentido? Recorro a outro, já que estou ligado a uma IPSS: ser-se voluntário é o objectivo, a satisfação que se recolhe do voluntariado é a recompensa. Regresso ao casamento: fazer o outro feliz é o objectivo. A felicidade é a recompensa.

Olho para os parágrafos acima e fico satisfeito. Os exemplos parecem-me esclarecedores. Vou descansar, que o 25 de Abril arrasa-me. Mas deixo-vos como Sebastião da Gama.

JdB


Viesses tu, Poesia

Viesses tu, Poesia
e o mais estava certo.
Viesses no deserto,
viesses na tristeza,
viesses com a Morte...

Que alegria mereço, ou que pomar,
se os não justificar,
Poesia,
a tua vara mágica?

Bem sei: antes de ti foi a Mulher,
foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água...
Mas tu é que disseste e os apontaste:
- Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.
E logo froam graça, aparição, presença,
sinal...

(Sem ti, sem ti que fora
das rosas?
Mortas, mortas pra sempre na primeira,
mortas à primeira hora.)

Ó Poesia!, viesses
na hora desolada
e regressara tudo
à graça do princípio...

Sebastião da Gama

25 abril 2017

Duas Últimas

Onde estavas no 25 de Abril?

A pergunta é humorística, não requer uma resposta exacta. Acima de tudo, dispensa uma resposta exacta. O 25 de Abril foi há 43 anos e sobre esse dia não farei análise. Nem sequer direi que falta cumprir-se Abril porque, de facto, falta: o mês acaba a 30...

O período a seguir ao 25 de Abril foi, para um rapaz urbano como eu, filho de gente católica, monárquica e conservadora, um período entusiasmante, pese embora algumas selvajarias de ponto de vista cívico, como pintar frases políticas no centro histórico de Évora. Mas eram, repito, tempos entusiasmantes: militante do CDS, confrontei-me com discussões políticas no liceu, com alguns encontrões e com ameaças; confrontei-me com a adrenalina de fazer parte do primeiro grupo que colou cartazes do partido em Évora, de pincel numa mão e matraca na outra, eu que nunca fui um homem violento, ou dado a brigas. Confrontei-me, acima de tudo, com uma luta emocional, por aquilo que entendíamos ser um combate contra o mal. Eram tempos de compromisso, de luta, de gozo, e mesmo de divertimento. Eram tempos de empenho, de causas. Nesse sentido foram tempos bons - talvez educativos e formadores de carácter.

Hoje serei revolucionário, deixando-vos com Zeca Afonso, um artista de que gosto muito, se tirarmos o pendor esquerdista sempre incómodo. 

Bom feriado, onde quer que o gozem.

JdB  



24 abril 2017

Textos dos dias que correm

"Agnus Dei" (det.) | Francisco de Zurbarán | 1635-1640 | Museu Nacional do Prado, Madrid, Espanha

Farei figura de ingénuo, mas da belíssima festa da Páscoa há uma coisa que sempre me perturbou: o massacre dos cordeiros e dos cabritos, em número de milhares, talvez até de milhões, que acompanha o almoço dominical, a festa da ressurreição.

O sacrifício de Jesus é claro para mim, e é-me suficientemente clara a simbologia que o acompanha nos ritos da tradição cristã, mas não consigo aceitar que ele tenha de ser seguido pelo sofrimento e morte dos animais que são, provavelmente, os mais inocentes entre as criaturas vivas.

Cordeiros e cabritos são os pequeninos de duas espécies vegetarianas (como vegetariano é o jumento que leva Jesus a Jerusalém), mas que, precisamente pela sua mansidão e escassa agressividade, de que provém a sua dificuldade em se defender, são desde sempre, na ordem imperfeita da natureza, as mais fáceis presas das espécies carnívoras, incluindo o homem.

Cordeiros e cabritos são também, sempre por causa da sua mansidão, objeto de singulares atenções humanas, dos pastores e não só, precisamente por serem emblemas da inocência. Mesmo os pastores bons e amantes do seu rebanho estão habituados a matá-los e a comê-los ou a vendê-los para que outros os matem e comam, como aconteceu massivamente na Páscoa.

É a sua inocência e a sua candura que levaram a se terem escolhido os cordeiros (e os cabritos) como símbolo da inocência de Jesus, porque o seu sacrifício recorda o deles e, de alguma forma, o reflete.

Uma das pinturas mais desconcertantes para mim, desde a primeira vez que vi uma reprodução, é o "Agnus Dei", de Zurbarán, quadro de pequenas dimensões que mostra um cordeiro cujas patas estão ligadas por uma corda e que espera sem reagir, cândido e puro, que chegue alguém para o matar.

O "Agnus Dei" é Jesus, o cordeiro sacrificial. Mas enquanto isto nos deveria afastar do massacre dos cordeiros, acontece desde há séculos que durante a Páscoa sejamos nós a sacrificar os cordeiros, para os comer (e isto sucede em muitas outras religiões).

Acreditava desde pequeno que matando o cordeiro se tornasse a matar Jesus, e continuo a não perceber porquê, para evocar o seu sacrifício, se tenham de realizar tantos outros, a cada ano, em prejuízo das mais inocentes entre todas as criaturas do reino animal, e acreditava que, em vez disso, fosse dever do cristão proteger, amar e salvar o inocente cordeiro como maneira de honrar Jesus.

Os antropólogos e teólogos têm certamente respostas, mas apesar disso continuo a sonhar que na Páscoa, e sempre, se matem menos inocentes, quer humanos quer animais, e que, na verdade, não se matasse nenhum. Entretanto o nosso tempo continua a conjugar, com nova extrema violência a barbárie tecnológica (a nuclear) sem renunciar, absolutamente, às barbáries primordiais.


Goffredo Fofi
In "Avvenire"
Trad.: SNPC
Publicado em 22.04.2017

23 abril 2017

2º Domingo da Páscoa

EVANGELHO – Jo 20,19-31

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou Se no meio deles e disse lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser lhes ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

***

O capítulo final do quarto Evangelho, João 20 (João 21 é um acrescento posterior), deveria ser lido na totalidade para se compreender em profundidade «o primeiro dia da semana», o terceiro dia após a morte de Jesus. O primeiro dia da semana é o dia da ressurreição do Senhor, mas é também aquele em que o Ressuscitado se torna presente no meio dos seus: é o dia do Senhor, o dia da intervenção decisiva de Deus que, ressuscitando Jesus, venceu a morte. Do Novo Testamento sabemos também que precisamente «o primeiro dia da semana» foi escolhido pelos cristãos para estarem «no mesmo lugar», qual assembleia de irmãos e irmãs que experimentam a vinda do Ressuscitado no meio deles.

Descida a noite daquele dia, o desconforto reina nos corações dos discípulos que não tinham acreditado nem na Madalena nem no discípulo amado. Mas Jesus tinha prometido: «Ainda um pouco, e deixareis de me ver; e um pouco mais, e por fim me vereis», e fiel à palavra dada vem e «pôs-se no meio deles». Jesus é visto pelos discípulos no meio deles, no centro da sua assembleia, como aquele que cria e dá unidade, que «atrai tudo a si».

Naquela posição de "Kýrios", de Senhor, o Ressuscitado diz «a paz seja convosco!», a saudação messiânica, palavra eficaz que transporta paz, vida plena, e expulsa o medo. E para que as palavras sejam autenticadas pela sua pessoa de Mestre, Profeta e Messias conhecido pelos discípulos na sua vida com Ele, Jesus mostra as mãos e o lado que ostentam ainda os sinais da sua paixão e morte.

Jesus está presente com um corpo que não é um cadáver reanimado, mas que chega com as portas fechadas, não obedecendo às leis do tempo e do espaço: um «corpo de glória», um «corpo espiritual», no qual permanecem, contudo, os sinais do ter sofrido a morte por amor. São sinais de paixão e ao mesmo tempo de glória, sinais do amor vivido «até ao fim, ao extremo».

«Os discípulos encheram-se de alegria por ver o Senhor.» Acontece o que Jesus tinha profetizado: «Vós vos sentis agora tristes, mas Eu hei-de ver-vos de novo! Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria». Nesta nova situação da comunidade, o Ressuscitado, que tinha prometido não a deixar órfã e dar-lhe outro Consolador, torna-se manifesto. Repete a saudação «a paz seja convosco!» e anuncia: «Como o Pai me enviou, também Eu vos envio». Os discípulos acolheram o enviado de Deus, seguiram-no e acreditaram nele; agora são enviados a todo o mundo, para ser como Ele, Jesus, foi em toda a sua vida: testemunhas da verdade, da fidelidade de Deus, isto é, do seu amor pela humanidade. Com a sua vida devem mostrar que «Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu único Filho».

Para estarem habilitados para essa missão, têm de ser recriados: é precisa uma imersão no Espírito Santo, é preciso o Espírito como novo sopro no coração de carne. Então Jesus, o Ressuscitado que respira o Espírito Santo, infunde-o na sua comunidade. Nós, cristãos, vasos de argila frágeis e pecadores, pelo dom de Jesus ressuscitado respiramos o Espírito Santo que perdoa os pecados e nos habilita à vida eterna no Reino de Cristo. Somos por isso o corpo de Cristo, o «templo do Espírito Santo». O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus da morte é doador de vida aos discípulos, e de «companheiro inseparável de Cristo» (Basílio de Cesareia), torna-se companheiro inseparável para cada cristão. É Ele, presente em cada discípulo e discípulo, que recorda as palavras de Jesus, que o torna presente e testemunha que Ele é o Senhor.

O Espírito Santo, Espírito de Deus e Sopro de Cristo, é-nos dado na nossa condição de corpo humano, de carne. Não nos esqueçamos que no quarto Evangelho a carne é o lugar da humanização de Deus - «a Palavra fez-se carne» -, o lugar escolhido por Deus para estar connosco e no meio de nós. A carne é lugar de conhecimento ao serviço da Palavra de Deus que a habita: eis a morada do Espírito Santo. Por isso, como Jesus foi concebido carne pelo Espírito Santo e de uma mulher, assim também a Igreja é gerada pelo Espírito Santo e pela humanidade, e do sopro do Espírito faz a sua respiração.

Mas isto tem uma repercussão decisiva na vida dos cristãos: significa remissão dos pecados, porque a experiência da salvação que possamos fazer na Terra é precisamente a remissão dos pecados. Cantamo-lo a cada manhã no "Benedictus": «Para dar a conhecer ao seu povo a salvação pela remissão dos seus pecados». Receber o Espírito Santo é receber essa remissão, isto é, viver a ação do Senhor que não só perdoa, mas esquece os nossos pecados, fazendo de nós criaturas novas. Esta é a epifania da misericórdia de Deus, do amor de Deus profundo e infinito que, quando nos atinge, nos livra das culpas e nos recria numa novidade que nós não nos podemos dar. E tome-se atenção para não entender este texto só como fundamento da Reconciliação. A capacidade de libertar da culpa e de fazer misericórdia é dada por Jesus a todos os discípulos: não só aos onze, porque no cenáculo o dia de Pentecostes estão também as mulheres, está Maria juntamente com outros discípulos e discípulas.

Jesus, «o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo», batizando no Espírito Santo os discípulos, habilita-os para a sua missão: perdoar, reconciliar com Deus e com os irmãos e irmãs. Da cruz e da ressurreição a humanidade foi reconciliada com Deus, mas tal acontecimento deve ser anunciado a todos, e os discípulos são enviados por isto: onde chegarem devem fazer reinar a misericórdia de Deus, devem viver o mandamento último e definitivo do amor recíproco, devem perdoar os pecados uns aos outros, habilitados por isso a pedir o perdão dos pecados a Deus.

E que fique claro: as palavras de Jesus que acompanham o gesto de soprar o Espírito - «àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos» - são exprimidas através de um estilo semita que se serve de expressões contrastantes para afirmar com mais força uma realidade. Não significam um poder que os discípulos poderiam utilizar segundo o seu arbítrio; ao contrário, exprimem que a sua tarefa é a remissão dos pecados, o perdão, como foi dado por Jesus, que em toda a sua vida nunca condenou, mas disse sempre que veio não para julgar e condenar, antes para que todos «tenham a vida em abundância». «Como o Pai me enviou, também Eu vos envio», onde este «como» remete para um estilo: «Como Eu remi os pecados, também vós deveis remi-los; e com esta tarefa que vos envio».

Feita esta experiência, os discípulos anunciam a Tomé, ausente na primeira manifestação do Ressuscitado: «Vimos o Senhor!». É o anúncio pascal que deveria ser suficiente para acolher a fé no Ressuscitado. Mas Tomé não acredita, aquelas palavras parecem-lhe delírios de nenhuma confiança.

«Oito dias depois», portanto no primeiro dia da segunda semana após o túmulo vazio, eis Tomé e os outros novamente juntos. É o primeiro mas também o oitavo dia, dia da plenitude, e todavia os discípulos ainda têm medo dos que mataram Jesus. Deveriam levar o anúncio pascal a toda a Jerusalém mas em vez disso permanecem fechados, dominados pelo medo. Mas Jesus torna-se de novo presente: «Jesus veio, pôs-se no meio deles e disse: "A paz seja convosco!"». Eis a fidelidade de Jesus, aquele que vem entre os seus mesmo quando não o merecem e não estão à sua espera. Antes de tudo entrega a paz, «a sua, não a do mundo», depois dirige-se a Tomé, dito Dídimo, o «gémeo» de cada um de nós. Tomé é o gémeo em que há, como em nós, a lógica do querer ver para crer. Tomé é como nós: quando se perfila o acontecimento da ressurreição, vemos morte; quando Jesus anuncia que nos precede, não sabemos qual é o caminho; quando temos de confiar no testemunho dos nossos irmãos e irmãs, queremos ser aqueles que veem...

Jesus vem no entanto também para Tomé e também a ele se faz ver com os sinais do seu amor: os estigmas da sua paixão imprimidos para sempre na sua carne gloriosa. A ressurreição elimina os sinais da morte e do pecado mas não os sinais do amor vivido, porque ter amado tem uma força que transcende a morte. Toda a cura dos doentes que as mãos de Jesus praticaram, todas as carícias que Ele deu, todo o seu amor vivido, todas as forças libertadas do seu seio são visíveis também no seu corpo ressuscitado. Jesus, então, convida Tomé a aproximar-se e a meter o seu dedo naqueles estigmas.

E aqui, atenção, não está escrito que Tomé tenha colocado o seu dedo, mas que disse: «Meu Senhor e meu Deus!». Reconhecendo nos estigmas o amor vivido por Jesus, Tomé faz a confissão de fé mais alta e plena de todos os Evangelhos: Jesus é o Senhor, Jesus é Deus. É por isso que quem vê Jesus, vê o Pai; é por isso que Jesus é a interpretação do Deus que nunca ninguém viu nem pode ver; é por isso que Jesus é «o Vivente» para sempre. Tomé não é, decerto, um modelo, ainda que nele nos possamos reconhecer. Por isso Jesus diz-lhe: «Felizes aqueles que, sem terem visto, acreditaram». É conhecendo o amor vivido pelo Crucificado que se começa a acreditar: milagres e aparições não nos fazem aceder à verdadeira fé. Só a palavra de Deus contida nas santas Escrituras, só o amor de Jesus de que o Evangelho é anúncio e narração, só o estar no espaço da comunidade dos discípulos do Senhor, nos podem levar à fé, fazendo-nos invocar Jesus como «nosso Senhor e nosso Deus».


Enzo Bianchi
In "Monastero di Bose"
Trad.: SNPC
Publicado em 21.04.2017


22 abril 2017

Pensamentos Impensados

Droga
Não morra. Morrer causa habituação.

Brandys e costumes
Portugal está no sítio dos bandos do costume.

Modas
Os nudistas seguem a moda Outono - Inverno?

Adágio
Tantas vezes vai o cântaro à fonte que acaba por encher.

Omnipresença
Marcelo atira moeda ao ar para saber se vai ao Polo Norte ou ao Polo Sul.

Hábitos
Tenho 91 anos, e até morrer tenho de tomar um medicamento; felizmente não causa habituação.

SdB (I)

21 abril 2017

2/7 *

Os oboés dão o tom. Lá maior. O maestro volta-se para a direita e, lentamente, com um golpe de pulso, acena aos violoncelos. Estes expõem o tema. Apenas as linhas gerais, o fio condutor.

O resto da orquestra está suspensa, muda. Os violinos, impacientes, preparam o arco. Encostam-no às cordas. Com o apontar da batuta, estas vibram em coro.

O céu começa a fechar-se. As nuvens juntam-se em cores de tempestade.

A primeira secção de violinos recomeça o tema inicial sobre os graves dos violoncelos. O tempo é mais rápido e o instrumento apresenta os capriccios próprios.

Entra agora a segunda secção. Complementa a primeira. Enche, a contraponto, os espaços que esta vai deixando vazios. Sobem os arcos de uma, descem os da outra.

O ar começa a escurecer, o vento sente-se. As nuvens, cada vez mais escuras, enrolam-se sobre elas próprias.

O primeiro violino toma o seu lugar. Eleva-se, sozinho, acima do resto. O vibrato agudo, cristalino, sobrepõe-se a qualquer outro som da orquestra. O maestro, com movimentos curtos e precisos, dirige os instrumentos. Com a batuta ordena que os violoncelos subam de intensidade.

Os graves são o suporte para todos os outros sons, são o chão onde caem.

A segunda secção de violinos, regida pelo maestro com gestos secos da mão esquerda, acompanha os violoncelos nesta escalada, num diálogo que, pouco a pouco, vai subindo de volume.

Um a um, os violinos que seguiam o tema acompanham o primeiro na escalada sobre o resto da orquestra. Camada sobre camada, agudo sobre grave, o quadro acabou de ser pintado.

A tempestade desdobra-se impaciente para trás e para a frente.

O céu abre-se em dois com o estrondo dos tímbales. O chão estremece a cada vibração da corda dos contra-baixos. Foge debaixo dos pés.

Um, um dois três, um.

As madeiras rangem, os metais brilham, os arcos retesam-se.

Os violinos, em voo rasante, numa ventania fria, puxam os cabelos de trás do pescoço. Elevam-se no ar, em rodopio, e caem no chão, em estilhaços.

A chuva dos violoncelos cai, numa dança furiosa com o vento. É atirada contra as paredes, contra o tecto, contra o chão.

Os metais polvilham o quadro com reflexos de ouro. Relâmpagos rasgam o ar, iluminando à sua passagem.

Os contra-baixos trovejam, graves, assustadores, a fazer tremer por dentro. As cordas grossas soltam, em estrondos, trovões curtos. Em simultâneo com os relâmpagos. A tempestade atinge o seu pico.

Dois minutos e cinquenta e dois segundos depois já se pode respirar outra vez.

SdB (III)

***

Publicado originalmente a 9 de Julho de 2009. Entre outros motivos porque ouvi a obra ontem, na Gulbenkian.


20 abril 2017

Poemas dos dias que correm

Mamografia de Mármore

Deliciam-me as palavras
dos relatórios médicos, os nomes cheios
de saber oculto e míticos lugares
como a região sacro-lombar ou o tendão de Aquiles.

Numa mamografia de rastreio,
a incidência crânio-caudal seria
um bom título para uma tese teológica.

Alguns poetas falam disso. Pneumotórax
de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma
de Nemésio, para não referir os vermelhos de hemoptise
de Pessanha ou as engomadeiras tísicas
de Cesário.

Mas nenhum(a) falou (ou fala)
de mamografia de rastreio. Versos dignos
só os de mamilo róseo desde o tempo
de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite
enquanto deusa, só restaram óleos e
mamografias de mármore.

Inês Lourenço, in 'Coisa que Nunca'

***

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, in 'Libertinagem'

19 abril 2017

Dos hospitais

Por motivos pessoais, as últimas três semanas têm-me levado amiúde ao Hospital de Santa Maria. Ir a um hospital é mais do que o cumprimento de uma obra de misericórdia que "manda" visitar os enfermos. Ir a um hospital e observar o que se passa à volta pode ser quase a leitura de um jornal mais popular - ali está um bocado importante do país real, para além de nos confrontarmos com uma geografia humana feita de tristeza, miséria, desesperança, confiança, isolamento, abandono. 

Falar com os médicos pode ser uma proeza a vários níveis: (i) não há garantia que estejam no serviço, pelo que temos de falar com uma enfermeira que, na maior parte das vezes, nos diz para falarmos com um médico; (ii) alguns médicos têm uma linguagem específica. A título de exemplo - e conto na primeira pessoa - a informação de que alguém teve um problema de tensão pode ser transmitida como "o paciente teve uma alteração ao nível dos parâmetros tensionais"; e conto ainda um diálogo que, a este respeito, mantive com uma chefe de serviço:

- ontem vim cá e não havia nenhum médico;
- há sempre um médico no serviço; pode é não estar cá.

Ontem aguardei alguns minutos na entrada do serviço que iria visitar. Uma senhora dos seus cinquenta e alguns anos passeava agitadamente pelo espaço. A dada altura pediu "não se importa de resolver o meu problema? Tenho tantas coisas que tratar...". Do lado de lá não lhe deram resposta satisfatória, pelo que o tom de voz se levantou e percebi que se tratava de uma certidão de óbito. Que não podiam dar, que não era ali, que tal e coisa... Numa dado momento a senhora em questão exaltou-se mesmo e gritou com uma funcionária administrativa:

- não percebo porque é que a senhora se está a rir! Não percebe que morreu o meu marido mesmo agora e que isso é uma falta de sensibilidade?

Alguém a acalmou e explicou a desadequação do pedido da certidão naquele balcão, para além de ninguém se estar a rir. Antes de sair, ainda enervada e tensa, a senhora recém viúva teve ainda forças para se dirigir à referida funcionária:

- bom dia, passe muito bem. E só espero que o seu marido morra em breve...

JdB 

18 abril 2017

Duas Últimas

Vivo no centro de Lisboa, perto de alguns dos sítios de eleição dos turistas que nos visitam em número crescente. Ocupam tudo, praças, cafés, lojas, ruas, restaurantes, igrejas, o desgraçado do "28" que não foi feita para tamanho movimento. E levantam-se cedo...

Como não "trabalho" entre o Camões e a Graça, fito nas carteiras ou nos bolsos bem ali à mão, nem fui eleito para cargo político que me obrigue a estar agradecido pelo decisivo contributo que sem dúvida dão para a redução dos défices, não descortino benefícios diretos de toda essa gente. Indirectos, seguramente, já hoje...

Esta Páscoa a invasão foi sobretudo de espanhóis. Parentes próximos meus que estiveram no Porto viram e ouviram o mesmo: "nuestros hermanos" por toda a parte, e não só galegos. Muito espanholito para escutar, mais tarde aturar, finalmente obedecer. Pois não mandam já em parte substancial desta dependência? (ou como há muitas maneiras de matar moscas). Falo contra mim, que os tenho como sócios ou depositários das minhas aliás parcas poupanças.

Veio-me então à memória a Ala dos Namorados, sabe-se lá por quê. Aquela ala posicionada na esquerda, formada por "moços valorosos", gente maioritariamente bem nova que em Aljubarrota contribuiu de forma relevante para um feito central da nossa História. Às vezes temos de falar mais alto, tarefa aliás difícil, não vão pensar que só nós revemos no CR7!

Deixo-vos com a Ala dos nossos dias, mais dada a acordes musicais. Que arrancou na sequência da dissolução dos Trovante, em 1991. Recriando aqui, a meu ver muito bem, uma música mais antiga, dos anos 60/70 do século passado, com letra provocadora (original da Filarmónica Fraude).

Espero que apreciem e que me desculpem qualquer melindre.

fq

17 abril 2017

Vai um gin do Peter’s?

Almada Negreiros também ajuda a celebrar a Páscoa, com o seu vanguardismo, beleza imensa e gosto insaciável pela vida. Até Junho, tem uma parte substantiva da obra exposta na Gulbenkian(1). São obras assombrosas, pois a criatividade e a sofisticação artística de Almada atingiram níveis de génio.

Nos recuados anos 30 do século passado, o Arqtº. Pardal Monteiro fez parceria com o pintor para responder a encomendas do Patriarcado, que queria modernismo nas novas Igrejas da capital. O primeiro trabalho da dupla situa-se na av. de Berna (curiosamente, veio a ficar perto da Gulbenkian) e foi inaugurado a 13 de Outubro de 1938 com o nome das Aparições que começavam a ter relevância oficial: «Nossa Senhora de Fátima». Em murais, no ferro e sobretudo nos vitrais lindos, que revestem a parte superior da Igreja, Almada deixou a sua marca luminosa. A representação da Santíssima Trindade é toda uma súmula teológica da Páscoa, iniciada no Bebé das palhinhas de Belém, passando pela Paixão e a abrir-se para o esplendor da Vida que renasce na madrugada do Domingo Pascal. A presença omnipotente e marcante do Pai glorioso, juntamente com a pomba do Espírito Santo, não deixam ensombrar a hora escura da crucifixão do Filho. Pelo olhar de Almada, a Luz prevalece sempre e contagia todo o ambiente:

Vitral da Igreja de Nossa Senhora de Fátima - Lisboa, 1938.

Até a sua Pietá possui um brilho e uma vitalidade, onde a morte não pontifica, limitando-se a ser uma breve passagem, que desaguará na eternidade e recuperará a Vida para sempre. O corpo tenso do inanimado, de uma brancura fulgurante, está mais próximo da ressurreição do que do reino da inexistência. O morto sobressai, em cor nívea amansada pelos tons quentes dos laivos dourados. Sobressai ainda por ter a Mãe em fundo, com vestes azuis e em tonalidades de roxo solenes, porque o momento é difícil, mas não deixa de ser grande. Vislumbra-se o renascimento do Crucificado, depois de despontar de um sono curto. Jaz adormecido, em nada destruído, podendo mesmo contar-se-lhe os ossos ou descobrir-se-lhe a anatomia de homem adulto, antes vigoroso e potente. Poderia também corresponder à pose rigorosa de um bailarino a representar um morto, mas sem conseguir esconder a ossatura fantástica de um corpo esguio e atlético, esculpido pelos músculos e despojado, temporariamente, do sopro vital. Percebe-se quanto Almada era um apaixonado pela dança e pela coreografia, tendo-se desdobrado numa profusão de expressões artísticas, que convocava amiúde – umas e outras – nas suas obras. Até a Sétima Arte se pressente neste vitral: no suspense de um instantâneo capturado ainda inerte, mas concebido para viver. Não pertence ao submundo dos que jazem sem vida:

Vitral da capela de Nossa Senhora da Piedade,  na Igreja de Nossa Senhora de Fátima. 

Naquela hora de suprema dor, a figura maternal de Maria guarda a última réstia de energia para amparar o corpo dilacerado do filho querido, voltando-o para nós, em oferecimento. No mesmo abraço com que o enche de ternura, deixa-o também a descoberto, por nós. A Mãe do condenado começa logo a estender a maternidade a todos os humanos, segundo a missão que Jesus lhe confiara, minutos antes. As lágrimas ter-se-ão confundido com o «sim» mais sofrido e generoso dos muitos que lhe foram sendo pedidos, até ao fim. Inteiramente debruçada sobre Ele, parece também homenageá-lo. Sem saber, antecipa uma homenagem à magna obra da Criação, pois o Filho irá, finalmente, resgatar a condição humana dos grilhões da morte. Na Pietá de Almada, Cristo está pronto a reerguer-se e, com Ele, toda a humanidade. 

Pardal Monteiro elogiou o contributo brilhante do pintor modernista: «No vitral, no mosaico, na pintura mural e até no ferro, o seu talento produziu obras que o colocam definitivamente no primeiro plano dos renovadores e dos impulsionadores da arte nacional (...) Pela colaboração que me deu, pelo muito que enobreceu e valorizou a minha obra, eu testemunho mais uma vez a minha admiração e o meu reconhecimento àquele a quem o meu colega Cottinelli Telmo chamou o mais arquitecto dos pintores portugueses, o pintor Almada Negreiros».

Em Almada, a vida é para ser celebrada, como convida a Páscoa. Não é por acaso que não há figuras horrendas na sua obra, nem feios repugnantes, nem aleixões desagradáveis ou quaisquer seres que perturbem a festa da existência, num artista que não se esquivou a representar toda a sorte de gentes. Ricos e pobres, esculturais e desfavorecidos, ninguém quebra a harmonia incrível que transborda dos seus trabalhos. Mas para lá da beleza daquela arte, chega-nos uma realidade vista por um olhar refrescante e vitamínico. Até por isso é imperdível a exposição (que merecerá um gin mais detalhado). Um bom exemplo desta positividade está no descritivo cinematográfico do naufrágio, algures por Moledo e exposto na segunda área de exposição, no andar abaixo. Não houve susto nem desgosto que não provocasse nova alegria. Não houve personagem ridícula ou irritante que não acabasse por fazer sentido na história. Para os múltiplos dilemas desencantou sempre uma óptima solução, pelo que todos adoraram rever o malfadado desastre através da brincadeira tão saudável que Almada lhes preparou, desintoxicando uma memória pesada. 

Voltando à Páscoa: outra perspectiva forte e lúcida da ressurreição vem de Rembrandt, quase científico na sua abordagem. Segue à risca os Evangelhos, relatando a partir dos testemunhos da época. Para representar o regresso à vida – uma mensagem, já de si, bem arrojada – percebe-se que fazer luz sobre o mundo invisível se tornou incontornável. O ciclo natural dos acontecimentos não chega para reproduzir aquele episódio de desfecho insólito. O estranho terramoto, à hora exacta da morte do Crucificado, emitiu um primeiro sinal, reconhecido logo pelos soldados romanos. O excesso de familiaridade com condenações brutais não lhes permitia iludirem-se sobre a estranheza do que ali viram e ouviram, pelo que o centurião foi peremptório: «Este era verdadeiramente o Filho de Deus!» (Mt.27, 54). Talvez por isso, o pintor flamengo não tenha hesitado em centrar-se nos anjos que participaram na explosão de vida que irrompeu da mortalha de Cristo, como um segundo big bang do Cosmos, incontrolável para os soldados dos fariseus e príncipes dos sacerdotes, que se limitaram a presenciar, estarrecidos, uma realidade desconhecida:

Rembrandt, «Ressurreição de Cristo», 1639. 
No museu de pintura de Munique – Alte Pinakothek. 

Nada mais revelador e interpelativo do que percorrer a História pelo olhar dos artistas. Boa Páscoa a todos! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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Título da mostra: «José de Almada Negreiros: Uma Maneira De Ser Moderno».


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