31 dezembro 2016

Pensamentos Impensados

Teocracias
Deus auto-proclamou-se Ministro da Administração Eterna.

Marinhagem de quinhentos
Os portugueses dilataram a Fé, o Império e os mulatos.

Refrescos
O duche foi inventado por Mussolini.

Ressaca
Se Natal é quando um homem quiser, eu só quero daqui a 358 dias.

Festividades
O caruncho vai passar o fim do ano à madeira.

Ditos
Há moiro no Costa.

Trabalhos de Hércules
Há advogados que trabalham pro bono; os deputados trabalham pro sono.

Pipulares
Enquanto o pai vai e vem, folga a mãe.

SdB (I)

30 dezembro 2016

Da felicidade como ausência de infelicidade

Penso que terá sido Lili Caneças a afirmar: estar vivo é o contrário de estar morto. Confesso que não sei, e para o caso pouco me interessa saber, onde e em que circunstâncias foi proferida a frase. Aproveito-a, apenas. Um dia, em conversa com um amigo cujas amizade e inteligência me parecem insuspeitas, talvez se tenha falado de felicidade, do que isso era para cada um de nós - tocar a vida dos outros, saltar e sonhar, uma casa branca de um piso só com janelas encarnadas, e por aí em diante. Talvez ele me tenha dito algo que poderia resumir-se à ideia de que ser-se feliz é não ter doenças, zangas, desgostos etc. Achei, na altura, uma visão algo triste da felicidade: faltava-lhe rasgo, audácia, arrojo, impacto na vida do próximo. 

Um destes dias voltei a estar com este meu amigo. Falámos da vida, de um caso específico que magoa, diminui e preocupa os envolvidos. Depois, já de chave na mão para nos despedirmos, falámos a correr de gente à nossa volta, amigos próximos com infâncias muito difíceis, mortes chegadas dolorosas e abruptas, problemas profissionais que deitam abaixo os mais resistentes, futuros muito interrogados, filhos a suscitarem preocupações. Tudo isto se resumiria numa frase demolidora: conheces alguém sem problemas? Olho metaforicamente em meu redor. Conheço poucos, de facto. Talvez um ou outro (ou uma ou outra) a quem a vida correu fagueira. Na generalidade dos casos as vidas são difíceis - aqui e ali muito difíceis.

Estar vivo é o contrário de estar morto? Ser feliz é não ter infelicidade? Repito: gostava de ter uma visão mais arrojada da felicidade. Gostava de imaginar a diferença na vida dos outros, o atingimento dos sonhos, a concretização de projectos, mas olho em meu redor e parece-me que toda a gente deseja apenas uma vida sem problemas. A normalidade da vida, como me disse uma colega atacada por um cancro. Um desejo, não só dos que são vítimas de problemas (alguns dos quais totalmente inesperados e injustos) mas também os que os criam, nem sempre percebendo que a vida pode ser simples, descomplicada, gozosa. 

Em A Conquista da Felicidade, Bertrand Russell disserta sobre nove causas para a infelicidade das pessoas: a infelicidade byroniana, o espírito de competição, o aborrecimento e a agitação, a fadiga, a inveja, o sentimento de culpa, a mania da perseguição, o medo da opinião pública. Na segunda parte do livro  - As Causas da Felicidade – Russel espraia-se sobre aquilo que nos daria felicidade: o gosto de viver, a afeição, a família, o trabalho, os interesses impessoais, o esforço e a resignação. O livro tem quase 90 anos, pelo que muito se poderia juntar às causas que nos provocam felicidade e a sua inversa - o stress, a correria, a caridade, o enriquecimento espiritual ou intelectual, a falta de sentido para a vida ou o sentido para vida. Temo que a maioria das pessoas, por um motivo que, de tão injusto é quase difícil de perceber, me acrescentasse um factor determinante para a conquista da felicidade - não ter nada que nos faça infeliz...

A todos os meus leitores ou colunistas, detentores de vidas fagueiras ou difíceis, vítimas de problemas ou causadores de problemas, um Bom Ano de 2017. Um ano feliz - e não apenas desprovido de infelicidade.

JdB


29 dezembro 2016

Espectáculos (eventualmente tristes) de dias que correrão

Colegas de faculdade desafiaram-me para uma das sessões referidas no poster abaixo. Como pode ver-se, não vou falar de ninguém. O que farei, então, para além de poder segurar um candeeiro? Declamar alguém, neste caso João de Deus. Nunca declamei na vida, aleguei, menos ainda em público. Ambos foram solícitos no elogio: o João tem uma voz óptima... E eu, mais vencido pelo desafio do que pela vaidade, acedi. 

Quando dei por mim, percebi que não conhecia nada de João de Deus. Podia ser como algumas pessoas que afirmam não conhecer nada de Augusto Gil, e contudo, quando se lhes fala no batem leve, levemente / como quem chama por mim..., já o identificam; mas de facto não era: fui ler alguns poemas de João de Deus e nada de nada de nada.  

Ao dia de hoje não faço ideia dos poemas que lerei. Neste momento acho graça ao desafio. Nas vésperas preferiria ter emigrado, pelo que vaidade é apenas uma palavra começada por 'v'... 

Sinopse da Sessão (por Miguel Tamen): 'João de Deus (1830-1896) foi o primeiro de uma longa linhagem de poetas portugueses a quem se poderia aplicar o título, em Portugal inexistente, de Poeta Laureado. Está, como os herdeiros desse título, sepultado no Panteão Nacional. Foi autor de uma Cartilha que representou para várias gerações a ideia de literacia. Fragmentos dessa cartilha e de poemas seus são ainda lembrados, às vezes de forma truncada. Irá ser tratado como poeta por mérito próprio: serão lidos vários poemas seus que mostram esse mérito.'

Alea jact est...

JdB


Melancolia

Oh dôce luz! oh lua! 
Que luz suave a tua, 
E como se insinua 
Em alma que fluctua 
De engano em desengano! 
   Oh creação sublime! 
A tua luz reprime 
As tentações do crime, 
E á dôr que nos opprime 
Abres-lhe um oceano! 

É esse céo um lago, 
E tu, reflexo vago 
D'um sol, como o que eu trago 
No seio, onde o afago, 
No seio, onde o aperto? 
   Oh luz orphã do dia! 
Que mystica harmonia 
Ha n'essa luz tão fria, 
E a sombra que me guia 
N'este areal deserto! 

Embora as nuvens trajem 
De dia outra roupagem, 
O sol, de que és imagem, 
Não tem essa linguagem 
Que encanta, que namora! 
   Fita-te a gente, estuda, 
(Sem mêdo que se illuda) 
Essa linguagem muda... 
O teu olhar ajuda... 
E a gente sente e chora! 

Ah! sempre que descrevas 
A orbita que levas, 
Confia-me o que escrevas 
De quanto vês nas trevas, 
Que a luz do sol encobre! 
   As victimas, que escutas, 
De traças mais astutas 
Que as d'essas féras brutas... 
E as lastimas, as luctas 
Da orphã e do pobre! 

João de Deus, in 'Ramo de Flores' 


28 dezembro 2016

Duas Últimas

Confesso que não conhecia esta música ou, se a conhecia, não a fixara. Ouvi-a no outro dia em casa de amigos e achei-a bonita. Não sei se esta interpretação da Maria João e do Mário Laginha é mais bonita do que o original e, confesso, não tive curiosidade em comprovar. O youtube é algo bizarro - cantora e músico suspensos, o que não é uma metáfora totalmente descabida para a música em questão, cuja beleza e serenidade nos deixam também suspensos.

Há sempre por trás das letras uma certa aura de mistério: quem é Beatriz? Existiu mesmo, ou é apenas um nome que rima com triz e com feliz e com giz e com bis? O que ia na mente do Chico Buarque - ou sobretudo no coração -  quando fez estes versos?  O que seria para ele uma mulher de louça ou de éter?  

Não sei se é perigoso ser feliz. Sei que é perigoso tentar, porque nunca sabemos se tentamos da forma certa. Me leva para sempre Beatriz; me ensina a não andar com os pés no chão.

JdB




Beatriz

Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz

Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida

27 dezembro 2016

Vai um gin do Peter’s?

Num gesto inédito de aproximação entre o Papa Francisco e Moscovo, que remonta a 2013, o Museu do Vaticano acordou um intercâmbio para exporem as obras de uns e de outros, ora na Rússia, ora em Itália.  

O primeiro empréstimo fez rumar até um dos principais museus moscovitas – a Galeria de Arte Tretyakov – 42 telas míticas vindas do Sul da Europa, que «representam o melhor do melhor das colecções do Vaticano» – segundo o Director do Museu italiano, Antonio Paolucci. Implicaram, assim, «um grande sacrifício», pois o número de turistas da cidade papal chega a seis milhões, anualmente. O reverso positivo da medalha é animar o longo Inverno das populações das estepes da Ásia Central, a maioria das quais nunca saiu do seu país. Uma vez que cultura e sensibilidade artísticas não lhes faltam (genericamente falando), percebe-se o sucesso da revelação dos tesouros do Vaticano, nas imediações do Kremlin, onde ficarão expostos até 19 de Fevereiro de 2017.

O título da mostra explica bem quanto os anfitriões russos têm a noção de albergar, no coração de Moscovo, um recanto de luxo da cidade eterna. Por isso, lhe chamaram «Roma Aeterna». 

Em Outono de 2017, será a vez de a Rússia emprestar ao Vaticano peças do seu riquíssimo espólio artístico. 

Na óptica do curador da exposição moscovita, Arkady Ippolitov, pertencente ao Hermitage, os dois quadros fundamentais para os russos são a «Lamentação sobre Cristo morto», de Bellini (1471-74) e o «Milagre de S. Vincente Ferrer», de Ercole de'Roberti (1473). A temática dura da morte do crucificado não assusta, minimamente, os russos, pois a beleza da sua representação deixa antever o imenso mistério de amor que aquela dor exposta, afinal, encerra. A ternura que os amigos dedicam ao morto prefigura o rasto de Bondade que o último dos condenados inspira nos que lhe são próximos, demonstrando o alcance da certeza da grande Doutora da cristandade – Teresa de Ávila (1515-1582): «Morro, porque não morro»! De facto, é inusitado, mas significativo, poder fervilhar um certo fulgor de vitalidade junto a um cadáver, a ponto de Bellini não optar por uma Pietá, pois as lágrimas (sempre legítimas) mal têm aqui lugar. Toda a cena é de uma humildade incrível, dominando os tons barrentos de uma terra que volta a ser fecunda. Respira-se a mansidão que emana do Protagonista:

«Lamentação sobre Cristo morto», de Giovanni Bellini (1471-74).  
Peça do Altar Pesaro; óleo sobre madeira

A segunda escolha do responsável do Hermitage corresponde a um retábulo longuíssimo, reunindo diversos episódios de uma extensa narrativa, num efeito que veio a ser replicado, na actualidade, pela banda desenhada e até pela sequência de imagens que formam o cinema. Uma solução bem mais comum do que se pensa, já na Idade Média e no Renascimento, em concreto na arte sacra:

«Milagre de S. Vincente Ferrer», de Ercole de'Roberti (1473), concebido para a Capela

Curiosamente, na óptica de Paolucci – as duas telas que considerava com maior potencial para impressionar os russos provinham de dois pintores maiores da arte Ocidental: Rafael e Poussin, que influenciaram artistas da Rússia, em estadias passadas em Roma, metrópole das artes e, por isso, ponto de encontro de artistas, ao longo dos séculos:

Tela de Rafael intitulada «Fé e caridade», mas sem a confirmação de pertença à colecção do Vaticano    


«O Martírio de Santo Erasmo», de Nicolas Poussin (1628-29).
Outra temática exigente, mas cuja extrema beleza evoca uma grandeza, que se eleva acima da violência 
cruenta do flagelo. 
A profusão de personagens de diferentes dimensões é eloquente: 
no topo, os anjos do mundo invisível contrastam com uma estátua tão solene quanto inanimada. 
Monocromática, fixa um horizonte acima e indiferente ao dos humanos, com olhos incapazes de ver.
Por isso, só os anjos podem consolar a vítima e testemunhar a azáfama fugaz dos humanos, 
que parecem ignorar o quanto são iguais perante a morte. Só a hora, sempre breve, variará.    

A concluir, para desejar a todos as Boas-Festas segue uma versão divertida da história do presépio, que transforma a conhecida Bohemian Rhapsody, dos Queen, em Bethlehemian Rhapsody. A letra foi reescrita por Mark Bradford e a curta-metragem realizada por Darla Robinson.  Inspirador também para desejar um Novo Ano cheio de vigor e entusiasmo para apanhar a vida pelo lado melhor, como lembrava a personagem Brian – «Always look on the bright side of life» – tomando-se com liberdade e autenticidade a sugestão dos Monty Python:



Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

26 dezembro 2016

Do Natal ser das crianças

À hora a que me leem, as festividades do Natal acabaram para a maioria das pessoas, embora nalguns locais o dia 26 ainda seja tempo de festejo. Muitos de nós queixar-se-ão do excesso de calorias ingeridas mas, como diz a frase em circulação, não culpes o Natal. Já eras gorda em Agosto...  

O primeiro input para o este post, escrito no dealbar de uma ressaca gastronómica toda feita de uma sucessão de bacalhau e de peru, surgiu com o vídeo abaixo, que retirei do Delito de Opinião na minha ronda de blogues na véspera de Natal.



Não sabia bem o que havia de escrever, mas algo me dizia que este vídeo, que via pela primeira vez, não podia passar em branco, mas também não podia passar pela simplicidade da ideia de paz possível quando os Homens querem ser anjos, e não apenas Homens.

O segundo input surgiu quando, numa conversa informal numa cozinha onde se sentiam ainda os aromas de vinho da Madeira, manteiga amolecida e sumo de laranja e limão com que se injectou o peru, alguém afirmou que o Natal era para as crianças. A minha primeira reacção (e foi o meu lado "intelectual" a falar, não o emocional) saiu por via de um pensamento em voz alta: para as crianças? E porque motivo há-de ser para as crianças? E se é para as crianças, o que nos diz isso, de facto?

Em bom rigor, o Natal não é das crianças, mas passou a ser das crianças - talvez elas se tenham apropriado da festa. As crianças gostam daquilo a que se chama a magia do Natal, que mais não é do que um conjunto de luzes brilhantes, árvores de Natal enfeitadas, azáfama consumista, um presépio feito de imagens estilizadas ou populares que vão perdendo o significado cristão, porque já ninguém lhes explica quem é o Menino Jesus. Talvez esta ideia do Natal ser das crianças tenha feito muito mal ao Natal, e ao verdadeiro espírito da festa. E, por isso, o Natal só é das crianças se nós, adultos, nos tornarmos crianças - puras de espírito, abertas ao Amor, simples na gestão das relações. E, por isso, o Natal só é magia se operar uma magia nos nossos corações.

O motivo para a importância do filme que coloco mais acima foi-me dado pela crónica do Pe. Miguel Almeida, de um destes dias no Observador,  que diz esta frase luminosa: Ao contrário, o Natal é esse reconhecimento da necessidade dos outros e do Outro na nossa vida. Naquela noite gelada de há 102 anos, todos aqueles soldados sentiram a necessidade dos outros e do Outro nas suas vidas. Não havia luzes, bolas coloridas, barretes ou meias a enfeitar janelas e a esconder presentes. Não havia crianças a correr, de olhos postos no relógio intuído que permite a destruição do papel colorido que embrulha mais um jogo. Havia uma guerra, dizem que a mais brutal de todas as guerras na história do mundo. E houve Natal, muito mais Natal do que em todos os Natais que se celebraram nesta Europa que viveu tantos anos em paz. 

Olho à volta, penso, oiço, intuo, deduzo. O Natal cristão (há outro?) está condenado se não o tornarmos mais simples, despido das canseiras em que se tornou quando alguém decidiu que o Natal é das crianças. Mesmo que as crianças sejam o melhor do mundo, o Natal não é delas, mas de todos os Homens de boa vontade. E se o Natal não for nosso, dos Pais destas crianças, só lhes daremos presentes, nunca futuros.

JdB 

25 dezembro 2016

Dia de Natal

EVANGELHO – Jo 1,1-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus.
No princípio, Ele estava com Deus.
Tudo se fez por meio d’Ele
e sem Ele nada foi feito.
N’Ele estava a vida
e a vida era a luz dos homens.
A luz brilha nas trevas
e as trevas não a receberam.
Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João.
Veio como testemunha,
para dar testemunho da luz,
a fim de que todos acreditassem por meio dele.
Ele não era a luz,
Mas veio para dar testemunho da luz.
O Verbo era a luz verdadeira,
que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem.
Estava no mundo
e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu.
Veio para o que era seu
e os seus não O receberam.
Mas, àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome,
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.
Estes não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas de Deus.
E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.
Nós vimos a sua glória,
glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito,
cheio de graça e de verdade.
João dá testemunho d’Ele, exclamando:
«Era deste que eu dizia:
‘O que vem depois de mim passou à minha frente,
porque existia antes de mim’».
Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos
graça sobre graça.
Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés,
a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
A Deus, nunca ninguém O viu.
O Filho Unigénito, que está no seio do Pai,
é que O deu a conhecer.

24 dezembro 2016

Pensamento Impensado

Hoje é véspera de Natal pelo que não haverá piadas. Em substituição dos Pensamentos, um belíssimo excerto de um conto de Eça de Queiroz.
Desejo a todos os visitantes do blog um Santo Natal de braços bem abertos para receber o Menino Jesus.

SdB (I)

***

(...)

Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos de enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos espessamente a miséria cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!

Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah esse doce rabi! quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus o conduzissem, por seu mando a Cesareia. Errando esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse rabi que amava as criancinhas, ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:

– Oh filho e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos à procura do rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Corazim até ao país de Moab. Sétimo é forte e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hébron até ao mar! Como queres que te deixe! Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora connosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?

A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:

– Oh mãe! Jesus ama todos os pequenos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!

E a mãe, em soluços:

– Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.

De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:

– Mãe, eu queria ver Jesus...

E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:

– Aqui estou.

O Suave Milagre, Eça de Queiroz, Contos

23 dezembro 2016

Natal

O editor e dono do estabelecimento deseja a todos os seus fiéis leitores, a todos os que por aqui passam para ler ou para escrever ou para comentar, um Santo Natal. Que o barulho das luzes e dos festejos agitados, que as alegrias ou tristezas ampliadas pela época não nos faça afastar os olhos do essencial: o Menino Jesus que, deitado numas palhinhas, nos toca a todos. Por mais estranho que possa parecer, apetece-me citar Bob Dylan: May your wishes all come true / May you always do for others / And let others do for you.

Boas Festas!

JdB



Nasce Mais uma Vez

Nasce mais uma vez, 
Menino Deus! 
Não faltes, que me faltas 
Neste inverno gelado. 
Nasce nu e sagrado 
No meu poema, 
Se não tens um presépio 
Mais agasalhado. 
Nasce e fica comigo 
Secretamente, 
Até que eu, infiel, te denuncie 
Aos Herodes do mundo. 
Até que eu, incapaz 
De me calar, 
Devasse os versos e destrua a paz 
Que agora sinto, só de te sonhar. 

Miguel Torga, in 'Diários'

22 dezembro 2016

Pensamento Impensado

Frases de circunstância

Oiço/vejo na SIC, no passado Domingo, o Dr. Marques Mendes a desejar um bom Natal ao Dr. Mário Soares.
Bom Natal a um ateu confesso? Desejo um bom Ramadão ao Dr. Marques Mendes.

SdB (I)

Da sabedoria popular

Todos os ditados portugueses - e talvez mesmo os que são proferidos em língua estrangeira - são verdade e o seu oposto. Há os que dizem bem de se ser gordo e os que dizem mal de se ser gordo. E há os que fazem o pleno na mesma frase: a gordura é formosura, a magreza é beleza - e fico-me por este exemplo, que a época é de acumulação de calorias. Um pouco como se o povo português não fosse, afinal, tão sabedor quanto isso, ou não se definisse quanto às vantagens ou desvantagens de uma certa obesidade. 

Ora, para efeitos deste post pré-natalino escolhi um provérbio sobre o qual irei discorrer breves instantes: em casa de ferreiro espeto de pau. Significa isto, porque não temos de dar-lhe outra conotação para além daquela que as palavras específicas o traduzem, que em sua casa, o ferreiro, um artesão que trabalha o ferro, faz espetadas (para que mais serve um espeto?) em pau de louro, por exemplo. Pode ser alecrim também, mas não pode ser ferro, nem sequer inoxidável. Assim sendo, e se a sabedoria popular se estendesse a todos os misteres, poderíamos dizer, com igual propriedade, em casa de médico gente doente, ou ainda, em casa de engenheiro civil telhados que caem

Não acontece isso de facto. Em casa dos médicos há gente saudável e em casa dos engenheiros civis os telhados não caem; em casa de um ferreiro também há espetos de ferro, porque têm igualmente o seu encanto na confecção das viandas que vão ao lume. Replicando, em casa dos arquitectos há alçados, em casa dos advogados há contratos legais, em casa dos electricistas não há curto-circuitos em permanência. 

No entanto, há desconformidades neste meu raciocínio, o que acrescenta valor ao mundo. Afinal, nada de mais ingrato do que um texto inabalável, inquestionável, sem uma brecha por onde discordar. Onde está a desconformidade? Na classe dos psiquiatras, dos terapeutas familiares, daqueles outros que se dedicam a aliviar a alma dos que sofrem mediante um pagamento e o desvendar de uma vida e de um passado, que do futuro ninguém sabe. Como dizer, em casa de psiquiatras gente desequilibrada, ou ainda, em casa de terapeutas familiares casamentos infelizes

Um médico sabe tratar as pessoas que estão em sua casa e sabe tratar-se; um electricista arranja candeeiros em casa própria e nas dos outros; um arquitecto projecta uma marquise e um engenheiro sabe construí-la, se por acaso o casal tiver essa valência profissional. Então porque motivo em casa dos psiquiatras há gente com obsessões e desequilíbrios e em casa dos terapeutas familiares os cônjuges discutem o mesmo que no resto dos lares - ou ainda mais? Um médico vê doenças em casa, um arquitecto vê colunas em casa, um electricista vê fios eléctricos partidos em casa - e todos eles aplicam a teoria que aprenderam com os seus maiores, resolvendo minimamente a contento os problemas com que se deparam. E um terapeuta? Não vê crises em casa? Ou se as vê, não aplica conhecimentos para resolver aquilo que é uma espécie de fios descarnados da alma e do comportamento?

Em casa de ferreiro espeto de pau. A frase é bonita e tem ritmo, mas não é por isso que não deixa de ser um disparate parcial, a não ser que a leiamos como uma metáfora. 

JdB

21 dezembro 2016

Política dos dias que correm *

Quem é Camilo Mortágua?

Nasceu em Oliveira de Azeméis, a 29 de Janeiro de 1934.
Sem inclinação para os estudos, como o próprio reconhece nas suas memórias, pega...ram-lhe a alcunha de Batata. 
Aos 12 anos segue com os pais e as duas irmãs para Lisboa.
Em 1951, emigra para a Venezuela. 
Na madrugada de 22 de Janeiro de 1961, integra o grupo de revolucionários que, sob o comando de Henrique Galvão, toma de assalto o paquete Santa Maria. 
Durante o acto, o oficial Nascimento Costa é assassinado pelos assaltantes. 
Foi Camilo Mortágua que disparou a pistola que matou o piloto do Santa Maria. 
A tomada do navio, que transportava 600 turistas em viagem para Miami e mais de 300 tripulantes, foi preparada na Venezuela pelo Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL). 
Era um organismo híbrido que nasceu da fusão entre o grupo de Galvão e um grupo de exilados espanhóis, dirigido por Jorge de Sottomayor, ex-combatente comunista na Guerra Civil de Espanha. 
Aviões americanos acompanharam os movimentos do Santa Maria, que ostentava no castelo da proa a faixa “Santa Liberdade”, pintada à mão. 
Entretanto, enquanto decorriam as negociações, o corpo do piloto assassinado apodrecia no seu caixão, na capela do paquete. 
Antes do assalto ao Santa Maria, o DRIL, que estava classificado pela CIA como “organização terrorista”, promovera atentados em várias cidades de Espanha. 
A bomba que o grupo fez explodir em 1960 na estação de Amara, em San Sebastian, matou uma criança de 2 anos, Begoña Urroz. 
O crime foi atribuído por largo tempo à ETA, mas dados históricos revelados nos últimos meses em Espanha demonstram a autoria do DRIL. 
Era com esta gente que Mortágua e os outros democratas queriam combater as ditaduras ibéricas e apear do poder Salazar e Franco. 
A 10 de Novembro de 1961, desvia à mão armada com Palma Inácio e mais uns tantos criminosos um avião da TAP, no voo Casablanca-Lisboa. 
Foi assim um pioneiro do terrorismo aéreo, com o objectivo singelo de sobrevoar Lisboa e outras cidades portuguesas a baixa altitude para lançar milhares de folhetos subversivos. 
Se quisermos descobrir um rasgo verdadeiramente inovador nos oposicionistas ao Estado Novo, forçoso será recorrer à aeronáutica: o primeiro desvio de um avião comercial em todo o mundo. 
Os terroristas islâmicos regulam com atraso em relação aos nossos antifascistas, sempre na vanguarda. 

O assalto ao Banco de Portugal. 

A 15 de Maio de 1967, Camilo Mortágua, Palma Inácio, António Barracosa e Luís Benvindo assaltam a filial do Banco de Portugal na Figueira da Foz. 
O golpe é comummente atribuído à LUAR, acrónimo de Liga de Unidade e Acção Revolucionária, mas tal não corresponde por inteiro à verdade. 
Na data do assalto, a LUAR ainda não existia. 
Foi criada à pressa no mês seguinte, como reconheceu Emídio Guerreiro, um dos fundadores, “para dar uma cobertura política e credível ao assalto do banco” (‘Diário de Notícias’, 6/9/1999, pág. 15) e assim evitar e extradição para Portugal dos criminosos, que entretanto se haviam refugiado em França. 
Em consequência do golpe, Palma Inácio foi monetariamente crismado de “Palma Massas”. 
E havia fundadas razões para isso. 
A operação rendeu cerca de 30 mil contos, uma fortuna para a época, equivalente a 9 milhões de euros de hoje, ainda que boa parte das notas tenha sido depois recuperada pela PIDE. 
“Logo que se apanharam com o dinheiro, acabou o romantismo revolucionário”, acusou depois Emídio Guerreiro, em entrevista a O DIABO (22/9/1992, pág. 8).
É o costume. 
O dinheiro sobe sempre à cabeça das pessoas. 
Deviam ter lido Marx e Kautsky antes de começarem a roubar...” 

A Torre Bela. 

A Herdade da Torre Bela, com 1700 hectares, a maior área de terra agrícola murada do País, pertencia ao duque de Lafões. 
A 23 de Abril de 1975, foi ocupada pelo “povo trabalhador” aos gritos de “a terra a quem a trabalha”. 
Para comandar aquela tropa mista de camponeses, delinquentes e bêbados, aterrou na herdade ribatejana o revolucionário Camilo Mortágua, já grávido de ideias bloquistas. 
O processo ficou documentado no filme “Torre Bela”, de Thomas Harlan (filho do cineasta Veit Harlan, com ligações ao regime nacional-socialista). 
Militante da extrema-esquerda, o alemão quis filmar a utopia socialista, mas dormia no quarto do duque. 
Era o único que tinha casa de banho privativa. 
As imagens são divertidas e esclarecedoras: Mortágua e Wilson, outro ladrão de bancos, a doutrinar as massas sobre “latifundiários” e “cooperativas”; Zeca Afonso, Vitorino e o padre Fanhais, este também membro da LUAR, a cantar o Grândola de megafone, diante do povo aparvalhado; o inesquecível diálogo entre Wilson e o camponês avesso à “comprativa” [sic] sobre a enxada que “passa a ser de todos”; a inenarrável reunião em que o oficial do MFA incita à ocupação do palácio: “primeiro vocês ocupam e depois a lei há-de vir”; e os camponeses a experimentar as roupas dos patrões, remexendo-lhes as gavetas com um misto de culpa, curiosidade e desejo. 
O filme é um documento notável de cinema directo, uma comédia do absurdo sobre a “reforma agrária”, processo de espoliação que nos custou os olhos da cara.
Ainda há pouco, o Estado português foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a pagar mais 1,5 milhões de euros de indemnização a famílias expropriadas. 
Os desvarios de Abril não começaram com o BPN ou as PPP (Parcerias Público-Privadas). 
Tiveram início logo após a revolução, com as ocupações de terras e as nacionalizações selváticas, que ainda agora figuram – de forma mais velada – entre os objectivos do Bloco de Esquerda, da menina Mortágua. 
E depois do adeus. Após a frustrada experiência na Torre Bela, os mais destacados membros da LUAR, como Mortágua e Palma Inácio, achegaram-se mais e mais aos partidos dominantes. 
Alguns membros da organização não gostaram. 
Um deles, Belmiro Martins, exprimiu o seu descontentamento ao jornal ‘Tal & Qual’ (5/9/1997, pág. 6): “Vejo que os chefes da LUAR se passam de armas e bagagens para o Poder […] Senti-me traído […] Decidi então que passaria a roubar para mim.” 
Decidiu e cumpriu. 
Estabeleceu-se por conta própria no ramo dos furtos, secção de ourivesarias. 
Parece que assaltou mais de cem lojas. 
Afirma-se com orgulho o “maior assaltante de ourivesarias de todos os tempos”. 
Foi preso em 1977 e condenado, tendo cumprido 17 anos de cadeia. 
Foi libertado em 1994, mas logo se entusiasmou por outras montras a reluzir de ouro. 
De novo preso em 1997, saiu finalmente em 2006, quando oficiava de sacristão na cadeia de Pinheiro da Cruz. 
Belmiro Martins chegou a integrar os órgãos sociais do Fórum Prisões, associação presidida pelo advogado de Otelo no caso das FP-25 de Abril, Romeu Francês, antigo militante do MRPP, que depois seria condenado em processos de burla, falsificação de documentos, abuso de confiança e fraude fiscal, que acabariam por ditar a sua expulsão da Ordem dos Advogados. 
Mortágua, hoje. Um homem com a folha de serviços de Mortágua não podia deixar de ser homenageado pelo novo regime. 
A justiça democrática tarda, mas não falta. 
A 10 de Junho de 2005 foi-lhe atribuída a condecoração de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, por Jorge Sampaio, então Presidente da República. 
Camilo Mortágua, hoje com 81 anos, está estabelecido no Alvito, em pleno Alentejo, como empresário. 
É hoje um “agrário”, nome pejorativo que os revolucionários de antanho colavam na região aos proprietários de terras agrícolas. 

Mariana Mortágua 

Filha do membro da LUAR Camilo Mortágua, substituiu, em 2013, a deputada do Bloco de Esquerda Ana Drago. 
A filiação é relevante porque várias ideias defendidas pela deputada e pelo seu partido já foram postas em prática pelo pai, com resultados desastrosos, designadamente na ocupação e gestão da Herdade da Torre Bela.
IMariana Mortágua nasceu em 1986. 
Licenciada em Economia, é mestre pelo ISCTE (‘where else?’) com uma dissertação sobre “O Papel da Caixa Geral de Depósitos na Recente Crise Económica (2007-11) ”. 
Militante do Bloco de Esquerda, a filha de Camilo Mortágua publicou dois livros a meias com Francisco Louçã. 
Em 2012 editou “A Dívida (dura) – Portugal na crise do Euro” (Bertrand, 2012, 240 págs.)
A obra foi apresentada na FNAC do Chiado por Marcelo Rebelo de Sousa, para escândalo dos bloquistas mais pedregosos. 
Em Abril de 2013 lançou “Isto é um assalto: a história da dívida em banda desenhada” (Bertrand, 2013, 184 págs.), com ilustrações de Nuno Saraiva. 
A contracapa informa que o livro ”descreve o assalto que Portugal está a sofrer”. 
Reconheça-se, antes de mais, a legitimidade do título. 
Em matéria de assaltos, os Mortáguas são especialistas. 
O roubo que Portugal está a sofrer começou logo após a revolução, com o papá Camilo e outros que tais, imbuídos de um ideário que Mariana não rejeita. 
Limita-se a defendê-lo com outros termos e balelas, que aprendeu no ISCTE e na Rua da Palma. 
No pai e na filha, a mesma necessidade de lutar contra a “ditadura” (seja a de Salazar ou a da dívida), o mesmo ódio ao “adversário” (seja lá ele quem for), a mesma receita de nacionalizações (começa-se com herdades, depois bancos, energia, água, transportes e tudo o que aparecer à frente), o mesmo desrespeito à propriedade alheia e quase uma relação de amor e ódio com o “grande capital financeiro”: o pai assaltava bancos, a filha faz teses de mestrado sobre a Caixa Geral de Depósitos... 
Digam lá, não é verdadeiramente interessante?

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* enviado por mão amiga

20 dezembro 2016

Duas últimas

Até aos 10 - 11 anos, o meu Natal, para além da dimensão familiar, era muito pautado pelo ritmo alemão. Afinal, eu andava na Escola Alemã onde me lembro de haver um Padre católico e um Padre protestante para dar conforto espiritual (a palavra não é bem esta para miúdos de 10 anos mas não me lembro de uma melhor) aos estudantes. Lembro-me do apoio que me deu o Pater Helmle (se não me engano era este o nome dele) quando chumbei no primeiro ano do Liceu.

(E perguntam os meus queridos e fiéis amigos porque motivo chumbei eu no Colégio Alemão no primeiro ano do liceu? Não me lembro exactamente, mas penso que pela dificuldade em dizer a dentição do coelho e o aparelho digestivo do boi em alemão; ou talvez fosse pelas lesões cerebrais de quem levou fortíssimas ponteiradas pelo facto de ser canhoto...)

Enfim. O Natal na Escola Alemã era intensamente vivido. Lembro-me de estar à mesa a fazer trabalhos manuais - coisas para dar à família - sempre acompanhado por músicas adequadas à saison. Quando fui para o liceu de S. João do Estoril, o meu choque foi brutal - Natal eram férias, nada mais. Espírito natalício eram duas palavras, apenas. 

Deixo-vos com duas músicas cantadas na língua em que as aprendi. Hoje ainda sei quase tudo de cor, e já lá vão 47 ou 48 anos. Já não sei é o significado... Imaginar-me com essa idade, canhoto, sem perceber a dentição do coelho e com lesões provocadas por ponteiros a embaterem na cabeça pode ser um espectáculo deprimente - ou que suscita compaixão. Olho para o que era e dá-me vontade de rir... 

JdB


19 dezembro 2016

Crónicas de um doutorando tardio

Hoje pelas 12.30h saberei a nota de um trabalho a que fiz referência num post da semana passada, sobre viagens e regresso a casa. Vou com as expectativas baixas: não conto ter uma nota fantástica, que o trabalho foi feito sob pressão do tempo. E no entanto, tenho esperança de não ficar envergonhado... Entre duas expectativas de sinal oposto alguma coisa há-de salvar-se, quanto mais não seja o feedback sobre o trabalho, sempre tão importante - e até mais do que a nota, embora este reflicta a qualidade percebida do trabalho.

À medida que ia ouvindo alguns comentários esparsos dos meus colegas sobre o próprio trabalho deles apercebei-me com mais clareza o que me diferencia deles, rapaziada na generalidade dos casos abaixo dos 30 anos. Não é o facto de todos eles terem uma cultura muito superior à minha nas Humanidades, discorrendo sobre os filósofos como eu discorreria sobre eficiência de fábricas; não é o facto de alguns terem uma excelente cabeça, com raciocínios rápidos e interessantes; não é o facto de alguns deles serem letrados ou com uma discurso eventualmente mais hermético. O que me diferencia deles é a forma como ambos - eu e o restante grupo, na sua generalidade - olhamos para o mesmo texto. Aconteceu isso no seminário sobre viagens (genericamente falando) como aconteceu isso no seminário onde abordámos (entre outros mas é esta obra que me interessa) a vida de Frei Bartolomeu dos Mártires, um dominicano português do séc. XVI, arcebispo de Braga e primaz das Espanhas, santificado há pouco tempo. 

Os meus colegas lêem uma passagem da vida do santo e identificam um poema de Virgílio, uma écloga de fulano ou um recurso estilístico de beltrano. Lêem Leigh Fermor e vem-lhes à memória os peripatéticos; lêem Naipaul ou Shackleton e encontram o filósofo não sei quantos; Lévi-Strauss lembra-lhes a antropologia, as referência à visão da felicidade deste ou do sublime daquele.

(obviamente que faço uma caricatura, mas é para se perceber o ambiente)

Eu leio todos eles e penso na vida - no despojamento do Frei Bartolomeu ou de Leigh Fermor (tão diferentes e, no entanto, tão parecidos), no conceito tão vasto de regresso a casa, nas virtudes morais e operacionais do explorador inglês, na comparação da frase de João Lobo Antunes, de que tinha sido a medicina a fazê-lo médico, e da vida de Naipaul, que se tornou natural da Trindade (de onde era, de facto, natural) quando se tornou escritor em Inglaterra. O que me interessa é a santidade, a sobrevivência, as transformações internas, as refeições como espaço de coesão, ou a ideia de fotografia como casa que se transporta numa algibeira de uma casaco comido pelo frio e pela neve. Enquanto para mim os livros são fonte de ensinamento do que sou ou do que é a espécie humana, para os outros os livros são fontes de informação ou de cultura. Obviamente que eu parto de uma realidade mais frágil: os meus colegas podem relacionar os livros com a cultura, eu não posso relacionar os livros com os filósofos.

É isto, no fundo, ainda que seja pouca coisa.

JdB

    

18 dezembro 2016

4º Domingo do Advento

EVANGELHO - Mt 1,18-24

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

O nascimento de Jesus deu-se do seguinte modo:
Maria, sua Mãe, noiva de José,
antes de terem vivido em comum,
encontrara-se grávida por virtude do Espírito Santo.
Mas José, seu esposo,
que era justo e não queria difamá-la,
resolveu repudiá-la em segredo.
Tinha ele assim pensado,
quando lhe apareceu num sonho o Anjo do Senhor,
que lhe disse:
«José, filho de David,
não temas receber Maria, tua esposa,
pois o que nela se gerou é fruto do Espírito Santo.
Ela dará à luz um Filho
e tu pôr-Lhe-ás o nome de Jesus,
porque Ele salvará o povo dos seus pecados».
Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o senhor anunciara
por meio do Profeta, que diz:
«A Virgem conceberá e dará à luz um Filho,
que será chamado ‘Emanuel’,
que quer dizer ‘Deus connosco’».
Quando despertou do sono,
José fez como o Anjo do Senhor lhe ordenara
e recebeu sua esposa.

17 dezembro 2016

Pensamentos Impensados

Sanguessugas
O que se passa com o negócio do sangue deixa-me plasmado.
 
Sobras
O meu almoço foram restos; o bife é o resto de uma vaca.
 
... é que está o ganho
Os políticos não se aproveitam, aproveitam-se.
 
Carinhas
Se Ronaldo recebe direitos de imagem, por que não a Odete Santos?
 
Dislexia
Não percebeu o que o marido disse e comprou um vestido pavoroso.
 
Plágio
Oiço Marcelo dizer: quero deixar muito claro.
Essa frase é atribuída a D. Lixívia.
 
Bolas
Oiço um comentador desportivo dizer: o Sporting não tem "banco".
A família Espírito Santo também não.
 
Boa pinga
Leio num jornal especializado em vinhos que determinada pinga tem sabor a cereja escura, ameixa assada e framboesa seca. Não sei como se tem acesso a estes sabores. O crítico saberá o que é o sabor a vinho?

SdB (I)

16 dezembro 2016

Ainda do regresso a casa


Mão amiga mandou-me ontem esta fotografia (parece-me que tirada do Expresso) com a seguinte legenda: não é necessário nenhum comentário. Com amor tudo se vence, mesmo o perdido.

A fotografia - ou o seu envio - é um sortilégio. Um destes dias, não pensando ainda que o escreveria para amanhã, o tema saiu-me à mente num repente. Ontem, no decorrer de um almoço de que falarei, ocorreu-me a segunda parte do post por escrever. A fotografia remata e fecha com chave de ouro.

***

Um destes dias tive de escrever um trabalho final para o doutoramento. O tema era essencialmente viagens e eu, pressionado com falta de tempo e de inspiração, encontrei nos quatro livros que abordaria, e de que já falei aqui (A Time of Gifts, O Enigma da Chegada, Tristes Trópicos e South) um menor múltiplo comum - o do regresso a casa. Não o regresso ao edifício de alvenaria ou ao terceiro esquerdo de um prédio de apartamentos, mas o regresso àquilo que é o último refúgio de um Homem. E acredito que a equipa de Shackleton, ao tentar voltar a casa com o essencial (comida, combustível, armas, duas folhas da bíblia e fotografias) quis voltar para casa andando sempre com a casa junto ao coração, como se a transportasse. Uma fotografia pode ser o regresso a casa, como a chegada a Inglaterra pode ser o regresso a casa.

Ontem fui ao almoço de Natal da Acreditar. À mesa, ao meu lado, uma querida amiga; à frente, colaboradoras / voluntárias por quem tenho ternura e respeito. Noutra mesa, gente que me é próxima, que me merece amizade e consideração. Espalhados pela sala de jantar, um ou outro casal de pais com crianças que brincam por ali, ou que podem estar internadas. À minha frente acaba por sentar-se um casal jovem da zona centro. Com eles o filho de 3 anos, que tem uma doença rara que não consegui perceber o que era, e que o obrigou a um transplante. Tal como o casal da ilha Terceira que conheci na cozinha e com quem conversei, passarão o primeiro Natal em Lisboa, na casa da Acreditar. A uns falta-lhes o mar, a outros falta-lhes a neve da Serra da Estrela, mesmo que ao de longe. 

Comovi-me com a criança, com os pais novos, desgarrados da serrania onde se sentem bem, nesta guerra desde que o miúdo tem seis meses. Ninguém merece isto, que remete tudo o que são as nossas queixas para um caixote de lixo onde estão as inutilidades e desimportâncias. Comovi-me muito, não sei se pelo ambiente, pela quadra, pelo erro de dar importância ao que não tem. Talvez ande mais sensível e isso seja sinal de fragilidade, ou de uma atenção excessiva a alguns temas, como o de perceber o que é isso do regresso a casa.

A casa do jovem casal será a casa da Acreditar, onde todos falam a linguagem comum do cancro infantil. Talvez para este casal, tal como o casal da fotografia, a casa não seja uma terra agreste onde a urze não cresce ou uma habitação social comprada com esforço e amor. Talvez a casa não seja sequer o prédio destruído ou a metáfora de uma ruína vivida desde os seis meses com um miúdo atacado por uma raridade. Talvez a casa deles seja - e Deus queira que o seja - duas mãos dadas e um amor com que tudo se vence, mesmo o perdido. 

JdB      

15 dezembro 2016

Das antiguidades modernas

Em 1982, talvez, fiz o meu interrail. Ia sozinho, como fui sozinho noutras viagens mais ou menos longas. Umas das paragens escolhidas era Munique, não me lembro exactamente porquê. Talvez porque alguém já lá estivesse estado, talvez porque estava próximo de Salzburgo, cidade que eu manifestava vontade de conhecer. A cidade não me impressionou - não só me lembro dessa sensação, como comprovo isso ao ler umas folhas de bloco pequenino onde fui juntando informações sobre essa viagem e que sobreviveram às mudanças, às voragens de arrumação ou aos desaparecimentos inexplicáveis.  

Antes de ir ao que me motiva no post, penso nisto: porque não me entusiasmou Munique se toda a gente que eu conheço que lá foi adorou? E porque gostei de Salzburgo ou Viena ou Budapeste e não gostei de Munique? Passados esses anos de juventude, não voltei a viajar sozinho e, confesso, não tenho saudades, embora me questione se isso significa que fui ganhando qualidades ou que fui perdendo qualidades. Dentro de limites, viajar acompanhado é (ou pode ser) ver mais, ou ver apenas diferente, que é uma forma de ver mais. Estou certo de ter perdido muito por viajar sozinho, sobretudo se a minha companhia de viagem fosse alguém com os mesmos gostos, ou que me soubesse desafiar a sair da minha zona de conforto. Foi o que foi - e foi sozinho...

Nos meus três dias, talvez, em Munique, apanhei um Domingo e fui à missa. Como sempre fazia por onde passava, escolhi a catedral local, por um motivo simples: há uma hipótese de apanhar uma missa bem cantada, em latim (e o meu latim é pouco diferente do meu alemão) com incenso, que sempre lava as narinas e purifica a alma. Assim fiz - e assisti a uma missa bonita, cantada com orquestra e coro, porque era (lembro-me agora, pelo que talvez não fosse domingo...) 15 de Agosto. E já não quero alterar o início da frase!

Há uma sensação que pode ser estranha na catedral de Munique. Embora seja do final do séc. XV, parece-me, sofreu bastantes danos durante a II Grande Guerra, tendo sido reconstruída depois. E a estranheza é essa - estamos perante uma antiguidade moderna. O estilo é antigo, talvez algumas pedras (muitas? A maioria?) sejam antigas, a arquitectura é igual ao que sempre foi ao longo de 500 anos e, no entanto, é como se cheirasse a tinta fresca, a casa recém-inaugurada.

Se em 1982 eu entrasse na catedral de Munique com um monge do séc. XV, talvez ele não sentisse diferença substantiva, dado que os espaços estavam moderadamente inalterados. Mas a catedral não é, de facto, a catedral do séc. XV, a catedral do monge, mas uma catedral do séc. XX que é igual à catedral do séc. XV - e talvez mesmo tenha pedras do séc. XV. Lembro-me de ter-me sentado e ter estranhado esta bizarria. Onde estava eu, para além de estar na catedral de Munique? Aquilo não era uma cópia, mas também não era um original...

Dei por mim a pensar nisto na altura e recuperei o pensamento 34 anos depois. No fundo, um pensamento antigo numa roupagem moderna. O que permanece? A total inutilidade...

JdB 

14 dezembro 2016

Pensamento Impensado

Atitudes
Li no Observador um artigo do Padre Gonçalo Portocarrero de Almada, a propósito da ida à Assembleia da Republica do Rei de Espanha. Gostei muito. Classifica a atitude do Bloco de Esquerda como má educação por não se terem levantado. Vou mais longe, classificando a atitude como de pura ordinarice. 
O Rei de Espanha é um Chefe de Estado que foi convidado pelo Estado Português e que foi Assembleia da República a convite de alguém, penso que pelos deputados, que gostam de dizer que aquela é a sua casa; logo, o mínimo que se pedia ao Bloco era cortesia, e não ordinarice.
São opções.

SdB (I)

Duas Últimas

Aproxima-se a passo acelerado o final de mais um ano civil, contadinho dia a dia desde 1 de Janeiro passado.

Entre aspectos e situações que nele ocorreram e que venceram os meus esquecimentos, por boas ou más razões, destaco por exemplo a idade redonda que atingi no seu decurso (havia um muito sapiente engenheiro na empresa onde trabalho que sempre dizia que desconhecia o que era isso dos “números redondos”), a constatação de que a Europa já viu melhores dias, as terríveis agruras dos refugiados e dos sitiados nas suas próprias cidades, a pobreza que aumenta à nossa porta, as vitórias de Trump, Guterres ou Dylan. 

Gratificante a plena confirmação de que a Igreja se iluminou ao escolher Francisco, uma voz de alerta permanente e incisivo sobre as grandes questões sociais, económicas, ecuménicas ou ambientais do nosso tempo e para as formas, as mais das vezes injustas e irreflectidas, como as mesmas são abordadas e tratadas pelos decisores.

Desportivamente, a vitória portuguesa no europeu franciu foi um momento alto. Como o foi também o facto de o CFB se ter aguentado na Liga – cada um tem os objectivos que pode e a mais não é obrigado. O SLB ter sido de novo campeão era dispensável mas o êxito foi ofuscado pelas situações precedentes.

Deixo-vos entretanto com Mafalda Veiga e a sua voz serena e melodiosa, que acompanho com interesse há uns bons aninhos. Como contraponto aos dias turbulentos e confusos que caracterizam a época “festiva” que se aproxima, embora muitos não saibam ou não queiram sequer saber o que se festeja.

Um Santo Natal e um óptimo Ano de 2017 para todos aqueles que, de uma forma ou de outra, interagem com este blogue.

fq

13 dezembro 2016

Vai um gin do Peter’s?

Com o Natal a aproximar-se, vêm a calhar as dicas para presentes. Uma sugestão a ver com a quadra é o filme francês «Les Choristes»(1), que arrecadou os maiores galardões de cinema a nível de banda sonora e seria merecedor do Óscar do Melhor Filme Estrangeiro, em 2004 (que premiou outro, sobre eutanásia). Música linda, cantada por crianças e com letras que falam de esperança tem sempre a ver com o Natal. Sendo que esta é só a afinidade mais visível com a mensagem natalícia. 

A narrativa começa no presente, porque é o tempo em que já são evidentes os efeitos de um bem perpetrado décadas antes, gratuitamente e sem qualquer resultado à vista. Assemelhara-se a um investimento a fundo perdido, como acontecera a tantos, durante a Segunda Guerra Mundial, que não puderam ver o bom impacto das suas acções. Em seguida, o argumento decorre em flash-back, desfiando o diário do tal fazedor do bem – vigilante e professor, ex-músico (Mathieu) –  para revisitar um passado onde o sofrimento parecia não ter fim para os órfãos pobres da Guerra condenados, por antecipação, a um futuro sombrio e estéril. Sim, a guerra estava ganha. Mas faltava ganhar o pós-guerra.

Recuamos a 1949, ao colégio-orfanato que recolhia os desamparados do conflito de 1939-1945, de certo modo enclausurados numa quinta murada, com um portão onde se lia uma inscrição terrível e de mau presságio: «Fundo do Pântano». O original «Fond de l’Etang» poderia ter inspirado uma tradução neutra, se se optasse pelo termo charco para referir um dos típicos mantos de água lamacenta que superabundam nas quintas com bosques verdejantes. De todos os modos, portões com inscrições evocam, automaticamente, o mais horrendo dos campos de extermínio.

Um bondoso músico no desemprego vê-se forçado a aceitar um emprego sub-qualificado como vigilante num internato perdido no interior de França. As premonições sucedem-se: depois da inscrição da entrada, um rapazinho amoroso aguarda nostalgicamente pelo Sábado, para o pai o levar dali. Desconhecendo os pormenores do caso, o novo vigilante limita-se a consolar o miúdo, explicando que ainda não era Sábado. Calha que Sabbath é o dia santo dos judeus, coincidentemente o dia sonhado para a libertação daquele inocente, também ele –  tal como o povo da Torah e milhões de outros – vítima da Guerra terminada quatro anos antes. 

Apanhado logo em peripécias várias, com armadilhas cruéis, o futuro vigilante percebe o grau de violência que aquelas paredes calam. Autoridades e miúdos rivalizam em agressões mútuas, parecendo ignorar, ou transgredir abertamente, os mais elementares princípios de convivência humana, sem uma réstia de humanidade. Na passagem do testemunho, o seu antecessor é claríssimo: alerta-o para os perigos que representam os alunos mais indomáveis. Ainda alude ao suicídio de um deles, encarando-o como a libertação possível daquele inferno, e mostra um braço com uma longa cicatriz. 

As únicas figuras que destoam deste ambiente dantesco são a criancinha que esperava, ao portão, pelo Sábado (Pepinot) e o enfermeiro-faz-tudo, que adora incondicionalmente os miúdos, como um avozinho, apesar de nem ele ser poupado a emboscadas sanguinárias. 

A técnica revanchista do reitor, sob o lema «action-reaction», dir-se-ia alimentar a espiral de violência. Porém, o desenrolar da narrativa acaba por conferir mais substância àquela figura autoritária e antipática, que se entrincheirara em expedientes defensivos para combater a constante ameaça de a mais leve indisciplina inflamar os ânimos de um bando de miúdos revoltados e sem freios (como é próprio dos mais novos).    

Forrado de paciência e imbuído de pedagogia educativa, Mathieu tenta quebrar a hostilidade das crianças com um sentido de humor certeiro. É incansável, perdoando vezes sem conta, das pequenas às grandes diabruras. Logo numa aula inicial, lança-lhes uma pergunta, que obteve um resultado surpreendente: o que sonham ser em crescidos? Salvo o pequeno Pepinot, inconformado com a morte dos pais, todos escreveram desfechos gloriosos e semi-megalómanos. Nesse horizonte sonhado, transpuseram sem dificuldade os muros altivos e castradores do internato. Era um primeiro passo, algo libertador, como uma semente de esperança atirada para um tempo distante daquela situação desesperante. 

No entanto, a maior brecha naquela teia infernal, entre miúdos guerreiros e um director despótico, foi a descoberta de uma forma de brincar nova: através da música. Sim, um coro seria a primeira experiência de jogo em equipa, onde se empenhariam em funcionar pela positiva, contrariando a rotina viciante de sabotagem e transgressão cega a tudo o que o colégio propunha. O efeito foi brilhante e, independentemente de algum exagero ficcional, encerra uma carga simbólica sempre válida, ao sublinhar o valor das boas causas que semeiam para a geração seguinte. De facto, o coro ofereceu-lhes um hobby saudável e permitiu desencantar talentos escondidos, que abriram uma carreira promissora aos miúdos mais musicais. A brincar, melhorara-lhes o presente e escancarara-lhes um futuro luminoso. 

Os perfis psicológicos em despique são muito distintos, marcados por características fortes que, quando bem orientadas, podem produzir resultados fabulosos, à parte do rapaz perverso, que a dada altura ingressa no colégio. Assiste-se, assim, a um percurso de auto-conhecimento, que se afina e clarifica na exigentíssima interacção entre uns e outros, despontando melhor sob a influência de um educador afectivo e sabedor. Até o orgulhoso reitor se rende ao ambiente algo distendido que o coro provocara nos miúdos forçando, à sua maneira (algo sobranceira e híper cioso da sua autoridade), uma entrada no jogo de futebol que decorria no recreio. Inédito, até porque teve de suplantar a humilhação de ser atingido por uma bolada, em cheio na cara, mal pôs o pé no recreio.

Quando tudo parecia fluir de vento em popa, uma guinada no argumento deita por terra os pequenos sucessos conquistados a pulso, a ponto de Mathieu ser expulso e impedido de se despedir dos seus amigos-alunos. Mas o que agora assomava como derrota suprema, acabou por facilitar a resolução de irregularidades e injustiças demasiado arreigadas. São tocantes os momentos finais em que o professor se afasta do edifício desgostoso com aquele desfecho infeliz, até ser alvo de uma chuva de aviõezinhos de papel com mensagens deliciosas dos miúdos. Afinal, deixara boa memória. Ainda volta a ser interpelado quando, à entrada para o autocarro, Pepinot lhe pede para o levar. Era Sábado… 



A mensagem forte de OS CORISTAS aplica-se directamente à Segunda Guerra. Aliás, o filme de 2004 inspira-se numa película de 1945, intitulada «A gaiola dos rouxinóis». Além do retrato à dor acumulada, revela a força do bem que, no longo prazo, tem sempre a última palavra, mesmo quando a realidade presente é tenebrosa e tida por invencível. Aplica-se, igualmente, a um pós-guerra difícil num país depauperado, erguendo-se como um clamor para convocar as boas-vontades requeridas para ganhar o futuro. Por isso, o primeiro alvo são as crianças sobreviventes, começando pelas mais desasadas. Curiosamente, no Brasil, o título foi traduzido por «A Voz do Coração».

Por maioria de razão, o filme aplica-se ao Natal, que celebra o dia em que um Rei escolheu nascer pária da sociedade, longe dos poderosos da sua época. Paradoxal preferir partir da extrema pobreza e marginalidade, em todos os sentidos, incluindo geográfico, para legar à humanidade uma mensagem vital e duradoura. Ao decidir fazer-se o mais pequeno dos homens, aquele Bebé encarnou, até ao âmago, a mensagem de Amor que partilha da mesma convicção de que o futuro se pode abrir à Esperança. Basta estender uma mão a quem precisa, como cantam os pequenos coristas na ária linda e de letra com sabor a Boas-Festas – «Vois sur ton chémin»(2), vencedora do Óscar da Melhor Canção Original.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
LES CHORISTES
Título traduzido, em Portugal:
OS CORISTAS
Realização:
Christophe Barratier 
Argumento:
Christophe Barratier e Philippe Lopes-Curval, inspirando-se no filme francês de 1945: «La Cage aux rossignols», realizado por Jean Dréville com argumento de René Wheeler e Nöel-Nöel.

Produzido por:
Arthur Cohn, Nicolas Mauvernay, Jacques Perrin e Ruth Waldburger 
Fotografia:
Jean-Jacques Bouhon, Dominique Gentil e Carlo Varini
Banda Sonora:
Bruno Coulais
Duração:
96 min.
Ano:      
2004
País:
França, Suíça e Alemanha 

        Elenco:

Gérard Jugnot         (Clément Mathieu, o viligante, músico e professor)
François Berléand   (o reitor)
Jean-Paul Bonnaire (o faz-tudo avozinho)
Jean-Baptiste Maunier (Pierre Morhange, miúdo da voz linda)
Maxence Perrin       (o amoroso Pépinot)
Grégory Gatignol (adolescente perverso e cadastrado: Pascal Mondain)
Marie Bunel          (a mãe de Morhange)

Local principal das filmagens:

Château de Ravel, Puy-de-Dôme, France 


 (2)  Letra no original em francês:

 «Vois sur ton chemin
Gamins oubliés égarés
Donne leur la main
Pour les mener
Vers d'autres lendemains
Donne leur la main
Pour les mener
Vers d'autres lendemains

Sens au coeur de la nuit
L'onde d'espoir
Ardeur de la vie
Sentier de gloire
Ardeur de la vie, de la vie
Sentier de gloire, sentir de gloire

Bonheurs enfantins
Trop vite oubliés effacés
Une lumière dorée brille sans fin
Tout au bout du chemin
Vite oubliés effacés
Une lumière dorée brille sans fin

Sens au coeur de la nuit
L'onde d'espoir
Ardeur de la vie
Sentier de gloire
Ardeur de la vie, de la vie
Sentier de gloire, sentir de gloire



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