30 novembro 2022

Das coisas que não nos largam *

 Éramos quatro sentados à mesa - onde não se envelhece, dizem os alentejanos - de onde nos levantámos já passava da uma da manhã. Une-nos uma amizade tardia, nascida essencialmente, mas não exclusivamente, de uma vida profissional mais ou menos próxima. Falámos de tudo: das anedotas, da política, dos livros, das comidas e dos carros; mas também falámos das desarmonias interiores de cada um de nós, da forma como as combatemos, dos triggers aos quais é  fundamental estarmos atentos porque são episódios que desencadeiam o que temos de mais complicado. Falámos de terapias, das experiências de um ou de outro. Quatro homens feitos e direitos que vão desnudando a alma sem que isso constitua humilhação ou voyeurismo social.


Tenho um interesse muito grande por terapias. Nas vésperas falava com um amigo cuja namorada faz hipnoterapia para curar algumas fobias. Tive vontade de experimentar, embora não tenha fobias dignas de registo. Mas este tratamento à base de hipnose, assim como o de dois comensais, interessa-me, não do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista do efeito no auto-conhecimento da pessoa que passa por isso. Interessa-me o que aprendemos de nós, não só as misérias humanas que nos habitam, mas a forma de as controlar, de as dominar ou de as contornar. Interessa-me perceber o que em cada um de nós desencadeia um ataque de raiva incontida ou uma vontade súbita de ceder a uma adição. Interessa-me o impacto secundário da terapia na pessoa, sendo que o directo é o conseguir não beber ou o não ser excessivamente agressivo com alguém.  Mas o que verdadeiramente me suscita curiosidade é o que a terapia fez na pessoa, como a alterou para melhor, o que ela passou a saber sobre si própria que a enriqueceu interiormente.

Depois, num âmbito diferente em termos de tempo e interlocutor - mas não, em bom rigor, de tema -, conversei sobre auto-conhecimento aplicado às características que temos. E surgiu esta tríade que pode resumir, ainda que de forma muito incompleta, a nossa atitude face ao pior que temos ou somos: aceitação, reconhecimento, modificação. Isto é, aceitamos os nossos defeitos, reconhecemos os nossos defeitos, modificamos o nosso comportamento (não modificamos o nosso defeito, parece-me). Numa visão muito repentista, a sequência seria, para mim: reconhecer, aceitar, modificar. Reconheço o que sou, aceito-me como sou, modifico o que sou. Mas podemos alterar as duas primeiras palavras? Isto é, podemos dizer aceitar, reconhecer, modificar? Se sim, o que nos diz isso? Ou fazemos apenas um jogo de palavras?

Num certo sentido, ser-se colérico é o mesmo que ser-se adicto. Quem o é, é-o para sempre. Como evidenciamos a nossa vontade de mudar? Principalmente através de gestos concretos, independentemente, para mim, da motivação. Serei sempre colérico, ou forreta, ou orgulhoso ou o que quer que seja, como um adicto o é. A alteração de comportamentos não significa mais do que uma alteração de comportamentos. Não pretende dizer a ninguém que afinal não sou, mas pretende mostrar aos outros que conseguimos controlar o que somos. A única forma de demonstrar uma mudança interior é através de gestos concretos, não através de deambulações interiores que pouco mudarão o que somos. O único (passe o simplismo) pensamento interior necessário é a vontade de "mudar". Não a vontade de ser outra pessoa, mas a vontade de ter outros comportamentos e, com isso, talvez, ser outra pessoa. Essa tem de ser a verdadeira motivação. Apaziguamentos da consciência ou desejo de passar uma imagem diferente não são mais do que folclore.

JdB

* publicado originalmente a 27 de Julho de 2016  

29 novembro 2022

Músicas dos dias que correm *

 

* último álbum de Katia Guerreiro, nesta faixa com uma colaboração interessante de Rui Veloso.

28 novembro 2022

Dos locais de passagem

 


Esta fotografia foi tirada no Hospital Santa Maria este sábado. Não há dúvida do que quer dizer: não se pode / deve atravessar este serviço para ir de A para B, isto é, o espaço não serve de corta-mato. Esta fotografia pode ler-se como um aviso claro, auto-explicativo, óbvio. Mas também pode ler-se como uma metáfora para outras coisas importantes da vida. Para isso é preciso dar-se um sentido diferente à expressão serviço. Pode ser amizade, amor, carreira, projecto. Ou pode ser, na sua visão mais radical, vida, ou seja,  a vida não é local de passagem

Eu sei que para um cristão a vida é apenas uma passagem para a eternidade, e este singelo A4, na interpretação que quis dar-lhe, não contraria esse ensinamento, e podemos regressar à lógica do hospital: atravessar este serviço implica uma ausência de registo, porque a pessoa quer apenas atravessá-lo, não usufruir do que se disponibiliza lá dentro; implica incomodar quem lá está, talvez mesmo invadir um pudor de quem está numa maca, numa situação de fragilidade. É uma passagem efémera, sem deixar um traço, uma evidência, uma marca. Uma circulação rápida de um ponto para outro.

A vida não é local de passagem. Não podemos ir do nascimento (o ponto A) para a morte  (o ponto B) sem querer tocar a vida dos outros, sem nos registarmos, sem aproveitar o que a vida nos dá, ou mesmo sem pararmos aqui e ali para vermos como deixar o mundo um pouco melhor. A nossas caminhada na Terra não pode ser um corta-mato.  

Este serviço não é local de passagem. Agradeçamos esta metáfora tão curiosa ao Serviço Nacional de Saúde. 

JdB

27 novembro 2022

I Domingo do Advento

 EVANGELHO - Mt 24, 37-44

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Como aconteceu nos dias de Noé,
assim sucederá na vinda do Filho do homem.
Nos dias que precederam o dilúvio,
comiam e bebiam, casavam e davam em casamento,
até ao dia em que Noé entrou na arca;
e não deram por nada,
até que veio o dilúvio, que a todos levou.
Assim será também na vinda do Filho do homem.
Então, de dois que estiverem no campo,
um será tomado e outro deixado;
de duas mulheres que estiverem a moer com a mó,
uma será tomada e outra deixada.
Portanto, vigiai,
porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor.
Compreendei isto:
se o dono da casa soubesse a que horas da noite viria o ladrão,
estaria vigilante e não deixaria arrombar a sua casa.
Por isso, estai vós também preparados,
porque na hora em que menos pensais,
virá o Filho do homem.

25 novembro 2022

Poemas dos dias que correm *

A PESAGEM DO CORAÇÃO

Que ninguém por tua culpa tenha passado fome,
tenha sentido medo ou frio.
Que ninguém tenha deixado de viver por tua culpa,
nem temido a morte, nem desejado morrer.
Que nenhuma pessoa tenha dito o teu nome com pavor
ou olhado o teu rosto com desprezo.
Que os outros te chorem quando partires.
Assim o teu coração não terá guardado o chumbo
que pesa nas mudanças.
Assim o teu coração será mais leve
que a mais leve pluma.

Amalia Bautista
(1962 - )
In "Telhados de Vidro nº 20 de Setembro de 2015"
(Tradução de Inês Dias)

24 novembro 2022

Moleskine

O céu de Punta Cana, Novembro de 2022

O céu de Punta Cana, Novembro de 2022

Fotografias e esculturas

Vejo um filme onde alguém afaga, saudoso uma fotografia. Talvez lhe aponha um beijo. Enternece-nos esta possível saudade de quem partiu, seja qual for o destino. Algumas cenas depois, alguém conversa com uma estátua. Achamos graça a esta espécie de loucura, ou de demência. Falar com uma estátua? Depois talvez percebamos que não há diferença entre afagar uma fotografia ou conversar com uma estátua. A demência, a haver, é a mesma. 

Netflix

"Em conversas francas com o ator Jonah Hill, o aclamado psiquiatra Phil Stutz explora as suas experiências da juventude e o seu ímpar modelo visual de terapia." Vale a pena ver este documentário.

Goethe e os óculos (tradução minha, do inglês)

É sabido que Goethe não é amigo de óculos.

“Pode ser um mero capricho meu”, disse ele em várias ocasiões, “mas não consigo ultrapassá-lo. Sempre que um estranho se aproxima de mim com óculos no nariz, sou tomado por um sentimento dissonante que não consigo dominar. Isto aborrece-me tanto que, no limite, me retira grande parte da benevolência e me arruina os pensamentos, impossibilitando um desenvolvimento natural, sem constrangimentos, da minha própria natureza. Dá-me sempre a impressão de desobligeant, como se um estranho me dissesse algo rude no primeiro contacto. 

(...)

Parece-me sempre que para os estranhos sou o objecto de um exame rigoroso, e é como se, com os seus olhares armados, eles penetrassem nos meus pensamentos mais secretos e espiassem cada ruga do meu velho rosto. Mas, ao mesmo tempo que se esforçam por conhecer-me, destroem qualquer igualdade justa entre nós, pois impedem-me de conhecê-los. Na verdade, o que ganho com um homem cujos olhos não posso ver enquanto ele fala, e cujo espelho de alma me está velado por um par de óculos que me ofuscam?

Se um dia quisermos perceber de onde vem a ideia de olhos nos olhos, temos aqui a resposta. Olhos nos olhos não é olhos nos óculos.

JdB 


23 novembro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 EXPOENTE DA TERNURA EM PEDRA

Coube a um fotógrafo judeu naturalizado norte-americano, Robert Hupka (1919-2001), o privilégio de ter feito uma das mais completas coberturas fotográficas da Pietá, esculpida por Michelangelo Buonarroti com apenas 23 anos de idade! 

Além da beleza magistral da obra em mármore de Carrara, impressiona a abordagem revolucionária à representação de Maria a segurar o Filho morto nos braços, ambos exibindo uma perfeição anatómica invulgar e enlaçados numa harmonia plena de ternura e tranquilidade. O olhar doce dos dois é, só por si, um milagre, depois de atingidos por uma onda de violência tremenda. Michelangelo quis que o sofrimento associado àquela morte brutal não fosse a imagem de marca da escultura, mas antes a extrema e misteriosa beleza que une e emana de Maria e de Jesus. No fundo, confia que a última palavra na redenção cabe à beleza, e não à dor. Tudo lindo e pleno de significado, à italiana! Esta obra maior do florentino é a única que leva a sua assinatura em lugar muito visível, na faixa que colocou sobre o seio da Virgem.  

A fotorreportagem de Hupka foi captada em 1964, na Feira Mundial de Nova Iorque, aproveitando o facto de a Pietá do florentino ser a coqueluche desse certame. Rapidamente, conseguiu autorizações raras para ver a peça a todas as horas, acompanhar os trabalhos de bastidores, como o empacotamento da peça e até montar andaimes para a poder observar e registar de perspectivas menos visíveis. 

Robert Hupka nascera em Viena e fugira para os Estados Unidos no alvor da Segunda Guerra Mundial, escapando à perseguição aos judeus que vitimou os seus pais. Neto do compositor Ignaz Brüll, amigo de Brahms, Hupka interessava-se pelo registo das actuações musicais. É notável a sua série fotográfica aos ensaios do maetro italiano Arturo Toscanini a dirigir a NBC Symphony Orchestra acompanhada pelos solos do violinista Samuel Antek. Vieram a desaguar no livro «This Was Toscanini» (1963) e a ilustrar capas de CDs com actuações de Toscanini. 

Engenheiro de formação e especializado no registo da arte em diferentes suportes, Hupka ficou logo fascinado pela obra-prima de Michelangelo. Isso ressalta no rigor comovido com que capta a Pietá sob todos os ângulos e a todas as horas do dia para a apanhar sob as variantes de luz possíveis. A familiaridade que teve com a obra não banalizou o espanto inicial, antes o intensificou.  






Em 1975, uma selecção de 150 imagens da fotorreportagem de Hupka foi vertida para catálogo oficial à venda na loja dos Museus do Vaticano em edições multilingues. 

Na sinopse do memorável livro, o autor explica como, pela primeira, se deparou com “a verdadeira grandeza”: 

«Sinopsis

Author and photographer Robert Hupka writes: 

"Pieta, an Italian word meaning 'pity', 'compassion', 'sorrow', is derived from the Latin pietas, signifying 'loyalty to the highest degree......a profound love that neither life nor death can destroy.'

The classic meaning of the word pieta is the whole-souled abiding in the Divine Will, but it is also the name traditionally given to works of art representing the dead body of Christ in the arms of His Mother. 

All photographs were taken at the World's Fair, some during the preparations for the statue's crating. I was in the fortunate position of photographing the statue from angles never before seen. I took thousands of pictures, photographing from every angle at any hour of the day and the night. 

It was an experience that cannot be put into words, the experience of being in the presence of the mystery of true greatness. 

As I spent countless hours in these devoted labors of photography, the statue became to me an ever-deeper mystery of faith and beauty, and I was struck by the realization that Michelangelo's greatest masterpiece had never been seen in its full magnitude, except by a very privileged few." 

With 150 photographs and commentary, the reader can come to know the beauty and mystery of Michelangelo's most magnificent statue through the lens of Robert Hupka.»               

Na aproximação do Advento, a beleza bondosa da Pietá, que transborda da lente de Hupka, antecipa a beleza do nascimento do Bebé que Michelangelo imortalizou noutro momento crucial da sua entrega à Humanidade. Condensa o principal da resposta dada pelo escultor aos que estranharam que o rosto da Mãe fosse tão jovem como o do Filho: «As pessoas apaixonadas por Deus nunca envelhecem». 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

22 novembro 2022

Textos dos dias que correm *

“... Tenho sessenta anos. Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos.
Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar,
diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo. A minha margem de hesitação já se não alonga em anos, mas em meses. As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores; a peste parece improvável, a lepra ou o cancro afiguram-se definitivamente afastados. Já não corro o risco de cair nas fronteiras, atingido por um machado caledónio ou trespassado por uma flecha parta; as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu me não afogaria parece ter acertado. Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito, e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa. Serei levado pela décima ou pela centésima crise? É essa a única questão.

Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte. Certas fracções da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo.”

marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia

1974 

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* tirado daqui

21 novembro 2022

20 novembro 2022

Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

EVANGELHO - Lc 23,35-43

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
os chefes dos judeus zombavam de Jesus, dizendo:
«Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo,
se é o Messias de Deus, o Eleito».
Também os soldados troçavam d'Ele;
aproximando-se para Lhe oferecerem vinagre, diziam:
«Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo».
Por cima d'Ele havia um letreiro:
«Este é o Rei dos judeus».
Entretanto, um dos malfeitores que tinham sido crucificados
insultava-O, dizendo:
«Não és Tu o Messias?
Salva-Te a Ti mesmo e a nós também».
Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o:
«Não temes a Deus,
tu que sofres o mesmo suplício?
Quanto a nós, fez-se justiça,
pois recebemos o castigo das nossas más acções.
Mas Ele nada praticou de condenável».
E acrescentou:
«Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza».
Jesus respondeu-lhe:
«Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso».

18 novembro 2022

Bem-aventurados os misericordiosos *

Fernando Alcácer era juiz num tribunal nos arredores de Lisboa. Homem com vasta experiência na aplicação das leis, há muito que tinha as melhores classificações dentro da magistratura. Quando acontecia um réu recorrer da sua sentença, o tribunal de instância superior confirmava o que o Dr. Alcácer tinha determinado, sinal da justiça da pena aplicada. Não raramente recebia visitas de colegas que, dentro de uma ética que sempre regula as actividades humanas - lícitas ou não -, lhe vinham pedir conselhos, ouvir uma opinião, interpretar o espírito menos óbvio do legislador.

Além da consideração dos seus pares, o juiz era um homem apreciado por advogados, funcionários judiciais, procuradores. Todos lhe reconheciam o rigor, o sentido de humanidade, a atenção às agravantes e às suas inversas, o respeito por uma justiça presumivelmente caracterizada por um venda nos olhos. Reconheciam-lhe, além disso, uma característica que, não sendo inédita, no juiz assumia uma dimensão rara: a memória para matrículas de automóveis de colegas, advogados, funcionários, arguidos, fornecedores... Acontecia frequentemente o dr. Alcácer dirigir-se a uma secretária dizendo:

Vi sua matrícula ontem no Centro Comercial, D. Arlete... Estivemos lá à mesma hora.

O povo, na sua imensa e pretensa sabedoria, entende que no melhor pano cai a nódoa. No caso vertente a mancha assentou numa fazenda que se chamava Fernando Alcácer, quando da sua boca saiu uma sentença que todos consideraram demasiado branda para o crime económico de um empresário local. Comentou-se o caso e o próprio juiz – naquele seu hábito obsessivo, quase, de fixar todas as matrículas, inclusivamente a do réu – questionou a sua própria brandura. Mas o facto é que vira qualquer coisa, embora não soubesse verbalizar o quê, nem onde, que o levara a decidir daquela forma. Só sabia que algo o impelira a isso, como se o juiz, para além de conhecer as leis e as matrículas, visse também, premonitoriamente, para além do desfocado das vidas reais e comezinhas do presente.

Metera-se no carro e seguira para casa. Com ele seguia um temporal como há muito não se via na região - uma chuva intensa, um vendaval de arrancar árvores, uma trovoada de ensurdecer - e um incómodo que lhe apertava o estômago:

Mas porque fui eu aplicar aquela sentença tão branda... Será que cometi o erro da minha vida? Será que beneficiei quem não devia? Mas o que me passou pela cabeça?

Embrulhado neste estado de espírito, o juiz passaria um sinal vermelho. Pela esquerda, na legitimidade do seu direito de passagem, viu um carro aproximar-se e fazer sinais intensos de luzes, mas o alerta não era mais do que a bateria de holofotes que iluminaria o horror que se aproximava. No último instante, quando o embate estava à distância de um fio de cabelo, Fernando Alcácer foi espectador da sua própria vida: viu-se como menino na escola a chorar uma mãe que desaparecia; como jovem no liceu a sentir o pulular das hormonas adolescentes; reviveu a arritmia cardíaca do primeiro beijo num vão de escada; olhou a imponência da escadaria no primeiro dia em que pôs os pés na faculdade; reviu-se como jovem licenciado em Direito e como estudante do Curso de Estudos Judiciários; suou de novo a angústia da primeira sentença. Reviu, no fundo, toda a sua vida.

Nestas magias que permitem que o tempo tenha uma duração indefinida, houve espaço suficiente para o juiz identificar a matrícula daquele carro e o condutor, um empresário local beneficiário de uma sentença ligeira. Teve a nítida sensação da ironia da situação quando percebeu que o réu culpado sorria para um juiz misericordioso, um instante antes de guinar o carro e embater com uma violência brutal num poste, desfazendo-se num estrondo de chapa esmagada e dor anunciada.

JdB

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* Publicado originalmente a 24 de Maio de 2010

16 novembro 2022

Poemas dos dias que correm

Canção de uma Sombra

Ai, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha janela onde me vou
Debruçar para ouvir a voz das coisas,
Eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte que chorava
E como nós, cantava e que secou…
E este sol que eu comungo, de joelhos,
Eu não era o que sou.

Ai, se não fosse este luar que chama
Os aspectos à Vida, e se infiltrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
Eu não era o que sou.

E se a estrela da tarde não brilhasse;
E se não fosse o vento que embalou
Meu coração e as nuvens nos seus braços
Eu não era o que sou.

Ai, se não fosse a noite misteriosa
Que meus olhos de sombras povoou
E de vozes sombrias meus ouvidos,
Eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio
Que ergue as asas e sobe em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos
Eu não era o que sou.

Teixeira de Pascoaes

14 novembro 2022

Crónica de um serviço ao Caribe (II)

 De um certo modo, penso que muitos de nós sentimos fazer parte da História quando temos filhos. Talvez seja um dos momentos em que a nossa pequena existência se engrandece e assume uma dimensão até então nunca sentida. Não digo, com isto, que não haja outras formas de dar tamanho à alma, porque não é só na paternidade / maternidade que nos alcandoramos a um patamar diferente. Se me lembrar de Viktor Frankl, de quem já aqui falei várias vezes, talvez isso também aconteça com um grande amor ou com um grande projecto.  

Estar numa reunião de organizações ligadas à oncologia pediátrica não é tarefa inédita. Esta foi-o, por serem organizações latino-americanas como quem ainda não estivera de forma substantiva. Impressiona sempre o nível de actividade, de dedicação, de competência destas pessoas, algumas das quais trabalhando em circunstâncias políticas ou económicas muito desfavoráveis. Impressiona o nível de colaboração entre médicos, voluntários, pais, sobreviventes, uma comunidade unida pelo mesmo objectivo: minorar o sofrimento das crianças / adolescentes / jovens adultos afectados pelo cancro, tomar atenção às necessidades de sobreviventes e prestar o auxílio possível aos Pais neste processo tão doloroso. 

Disse-o várias vezes, não sei se o escrevi aqui: é notável a quantidade de gente boa que tenho conhecido desde que me iniciei nestas andanças internacionais. A mancha que ressalta é uma mancha humanamente gratificante, sem vaidades pessoais ou agendas escondidas, numa vontade imensa de colaborar, de encontrar soluções ou de procurar caminhos comuns. Estou certo de que qualquer médico me atenderia uma chamada, me responderia a uma mensagem caso eu tivesse necessidade, ou lhe encaminhasse um caso mais desafiante. 

Até 2030, esta comunidade internacional estará envolvida num projecto global de combate à oncologia pediátrica. Pretende-se que a taxa de sobrevivência global seja de 60% (é muito inferior, hoje em dia) e pretende-se minorar o sofrimento destes doentes. O sucesso desta "empreitada" permitirá salvar 1 milhão de vidas - crianças ou jovens com um nome, com sonhos, com aspiração a serem agricultores, futebolistas, médicos. O nome de cada um deles, deste milhão de crianças que iremos salvar, está, como não me canso de repetir, gravado em cada um dos nossos corações.

Fazer parte deste projecto é ser protagonista da História, é assistir à mudança global de uma parte dolorosa da nossa existência. Em cada sobrevivente com que me cruzo vejo a esperança em dias melhores, vejo a conquista que a ciência faz no terreno do sofrimento e da morte. 

A fotografia acima é uma boa metáfora para coisas maiores. Uma das raparigas é uma sobrevivente colombiana, de Cali. Dizem-me que nunca tinha visto o mar.

JdB

13 novembro 2022

XXXIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Lc 21,5-19

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
comentavam alguns que o templo estava ornado
com belas pedras e piedosas ofertas.
Jesus disse-lhes:
«Dias virão em que, de tudo o que estais a ver,
não ficará pedra sobre pedra:
tudo será destruído».
Eles perguntaram-lhe:
«Mestre, quando sucederá isso?
Que sinal haverá de que está para acontecer?»
Jesus respondeu:
«Tende cuidado; não vos deixeis enganar,
pois muitos virão em meu nome
e dirão: "sou eu"; e ainda: "O tempo está próximo".
Não os sigais.
Quando ouvirdes falar de guerras e revoltas,
não vos alarmeis:
é preciso que estas coisas aconteçam primeiro,
mas não será logo o fim».
Disse-lhes ainda:
«Há-de erguer-se povo e reino contra reino.
Haverá grandes terramotos
e, em diversos lugares, fomes e epidemias.
Haverá fenómenos espantosos e grandes sinais no céu.
Mas antes de tudo isto,
deitar-vos-ão as mãos e hão-de perseguir-vos,
entregando-vos às sinagogas e às prisões,
conduzindo-vos à presença de reis e governadores,
por causa do meu nome.
Assim tereis ocasião de dar testemunho.
Tende presente em vossos corações
que não deveis preparar a vossa defesa.
Eu vos darei língua e sabedoria
a que nenhum dos vossos adversários
poderá resistir ou contradizer.
Sereis entregues até pelos vossos pais,
irmãos, parentes e amigos.
Causarão a morte a alguns de vós
e todos vos odiarão por causa do meu nome;
mas nenhum cabelo da vossa cabeça se perderá.
Pela vossa perseverança salvareis as vossas almas.

10 novembro 2022

De um resort em Punta Cana

 Estar pela primeira vez em Punta Cana, num resort, é uma experiência muito interessante - e globalmente agradável. Alguns pormenores:

A chegada ao aeroporto é um contraste do ponto de vista meteorológico; saí de Paris, onde chovia e estavam 9ºC, para chegar ao destino com uma temperatura de 26ºC e um teor de humidade bastante alto. O aeroporto local é pequeno e tem (só encontrei este procedimento em Marraquexe) Raio-X à bagagem para quem entra. Lá fora pulula uma multidão de gente local a vender táxis e outros serviços. As pessoas que me foram buscar eram extremamente amáveis e prestáveis.

Até ao resort a viagem demora 30 minutos, talvez (foi feita integralmente pela faixa do lado esquerdo) e é como circular na EN125: lojas aqui e ali, empreendimentos aqui e ali, nada mais. Tudo ao som de Bachata, que é o género musical local. 

A recepção do resort onde estou é feérica; o checkin é amável, durante o qual nos põem uma pulseira de borracha. Daí em diante tudo é gratuito: o room service, o rum, o gin e o vodka que estão no quarto, assim como tudo o que está no frigorífico, os restaurantes e os bares que estão espalhados pelo recinto. Pode beber-se e comer-se o que se quiser e onde se quiser que não se paga um tostão. O serviço é globalmente muito bom e simpático, a comida satisfaz bem.

Os clientes deste resort são diversos: há famílias com bebés ou com crianças muito pequenas, há casais jovem que aparentam estar em lua de mel, há casais mais idosos e há gente que toma o pequeno almoço de chapéu na cabeça e /ou a beber champagne. Fala-se inglês, alemão, americano, holandês, russo / ucraniano ou espanhol. A maior parte da pessoas está nas piscinas, embora a praia - bastante segura, com uma temperatura de água de 26ºC - esteja logo a seguir. Há bares dentro da piscina, pelo que o balcão está sempre cheio de gente de fato de banho ou bikini a beber cerveja ou cocktails. Aqui e ali gente fuma cigarros à antiga, sem medo de ser apedrejado.


Punta Cana não estaria nos meus planos, não fosse o caso de ter uma reunião. Mas o conceito é interessante, embora não saiba o que se paga à cabeça. Vem-se, guarda-se a carteira e nunca mais temos de nos preocupar com pagamentos, com carros, com escolha de restaurantes, embora haja 3 ou 4 e uma profusão de pequenos bares. Num deles, no dia em que cheguei, conheci um inglês, vendedor de sistemas flexíveis de gás no Yorkshire, que tinha vindo para cá duas semanas - completamente sozinho. Não sei se viria com uma expectativa de companhia, mas quase não vi grupos de raparigas / senhoras sozinhas. Ou de rapazes / homens sozinhos...

Não me posso esquecer do que cá vim fazer: assistir a uma reunião latino-americana sobre oncologia pediátrica, com apresentações muito diversas e interessantes, com contactos humanos muito gratificantes. Há-de vir o relato dessa parte maior da minha vinda a Punta Cana.

JdB 


09 novembro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

MECENATO COM CEIA INSPIRADORA E EM CRESCENDO

O MNAA (Arte Antiga) voltou a receber nova tela da coleção privada da Fundação Gaudium Magnum (https://www.gaudiummagnum.org/), pertença de Maria e João Cortez de Lobão. Desta vez, a obra cedida ao Museu é da autoria do francês Charles de La Fosse (Paris, 1636-1716) e vem acompanhada do estudo que a antecipou, o que permite descobrir diferenças cheias de significado.

Na primeira versão da Ceia de Emaús, oferecida pela pequena tela do Estudo, capta-se um momento mais inicial da cena do Evangelho de Lucas, há menos figuras, menos céu, menos elementos sobre a mesa, uma pose diferente em Jesus, quem serve está mais tapado e trajado com maior simplicidade, embora já exiba as feições mulatas. Na obra final, esta personagem surge numa posição próxima do centro e com maior visibilidade graças ao turbante claro bem recortado sob o céu crepuscular. A bandeja de prata que segura já está vazia (no estudo, ainda transporta o pão) e estrategicamente colocada sobre a cabeça de Cristo formando uma auréola luminosa. No quadro final, o momento da famosa ceia descrita no Evangelho de Lucas está mais avançado, pois o Salvador já abençoa o pão que repartirá pelos discípulos, fascinados a olhá-Lo. Atrás, outras figuras (passa a ver duas mulheres) também acompanham a bênção do pão, onde o Crucificado se dá a conhecer como Ressuscitado e reafirma a importância da Eucaristia. A mesa da tela final está repleta de peças, exibindo um trabalho minucioso de natureza-morta e a profusão de claro-escuro do barroco.  

Título original:  «Le Christ et les pélerins d'Emmaüs», c.1700-1705, óleo sobre tela, | 124,5 × 135 cm.  Traços da escola veneziana de Veronese. 

«Estudo para a Ceia em Emaús», c.1700-1705 | Óleo sobre tela | 29 × 22 cm |
Fundação Gaudium Magnum | © Jorge Simão (pós-produção: José Ventura)

Nas duas telas, o epicentro luminoso envolve a figura de Cristo e ressalta da toalha branca, onde repousa o pão que é co-protagonista do conhecido episódio bíblico. Como observa Miguel Soromenho, na folha de sala, em ambas persiste um flagrante contraste entre o espanto dos discípulos e a serenidade do Ressuscitado. Esta diferença de posturas adensa a narrativa e denuncia a origem cortesã do pintor, exímio na coreografia teatral, no requinte da baixela (na tela final) e no gosto pela mistura de elementos de época, de cariz mais profanos, como a figura do mulato.  

Charles de la Fosse provinha de uma família de ourives e foi discípulo do influente Charles le Brun (1619-1690) ligado à constituição da Academia Real de Pintura e Escultura (1648). Por recomendação do poderoso ministro Colbert, viajou durante dois anos por Itália, entre Veneza e Roma, como bolseiro de Luís XIV. Esse périplo marcou a sua formação, complementando a tradição do primeiro barroco francês com a escola do mestre veneziano Veronese, o colorismo bolonhês, o classicismo de Rafael e influências de Rubens, sobretudo nas figuras femininas. De Itália trouxe também as últimas técnicas de pintura a fresco, que o notabilizaram nos grandes murais dos estaleiros reais. De regresso a Paris, integrou a equipa de Le Brun incumbida das pinturas nos palácios das Tulherias, de Versailles, dos Invalides, enquanto respondia a outras encomendas da coroa francesa, do clero e de mecenas importantes. Foi nesse contexto que trabalhou na residência do Lord Montagu, em Londres (entre 1689 e 1691) e no palácio parisiense do coleccionador Pierre Crozat, onde o pintor viveu os últimos anos de vida. Também dirigiu a Academia Real e tomou partido na querela fracturante da época, que opôs os adeptos do primado do desenho aos defensores da superioridade do colorido, alinhando com estes. 

Mais um programa animado para fins-de-semana invernosos (até 15.Jan.2023), a desfrutar o Museu instalado no palácio seiscentista do 1º Conde de Alvor (Távora), com uma das melhores vistas para o Tejo. Ainda se soma ao acervo pictórico e escultório do MNAA, a possibilidade de rever o recheio da Capela do extinto Convento das Albertas (ampliação posterior).  

Palácio dos Condes de Alvor.

Jardim do MNAA e vista para o Tejo.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

07 novembro 2022

Crónica de um serviço ao Caribe

 No dia em que leem esta pequena crónica estou na República Dominicana. Em mais detalhe, para quem se fascina com nomes conhecidos, estarei em Punta Cana, no hotel de que mostro algumas fotografias.



 Devo dizer que vou em serviço pelo que, quando me perguntam para onde, informo: República Dominicana. O nome já suscita algum interesse, mas dizer Punta Cana não oferece dúvidas, mesmo que vá trabalhar, passar o dia em reuniões (entre as  7 ou 8 da manhã, e as 5 da tarde). Para os meus filhos, a minha viagem resume-se a mar, piscina e cocktails exóticos. O resto é uma desculpa que dou para enganar tolos.


Vai haver tempo para tudo, estou certo: para aprender, para fazer networking, para partilhar, para me divertir e tomar banho na praia ou na piscina. Talvez mesmo para cocktails exóticos com cores de uma artificialidade sensual. 


O tempo não estará fantástico: calor, alguma humidade, algum vento, algumas trovoadas. 

Se arrefecer podemos sempre ir para dentro de água apanhar um quentinho. Em não havendo calor humano, regular ou local, resta-nos os cocktails exóticos. E um trabalho gratificante, espera-se.

Adeus, até ao meu regresso.

JdB  

06 novembro 2022

XXXII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 20,27-38

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
aproximaram-se de Jesus alguns saduceus
– que negam a ressurreição –
e fizeram-Lhe a seguinte pergunta:
«Mestre, Moisés deixou-nos escrito:
'Se morrer a alguém um irmão,
que deixe mulher, mas sem filhos,
esse homem deve casar com a viúva,
para dar descendência a seu irmão'.
Ora havia sete irmãos.
O primeiro casou-se e morreu sem filhos.
O segundo e depois o terceiro desposaram a viúva;
e o mesmo sucedeu aos sete,
que morreram e não deixaram filhos.
Por fim, morreu também a mulher.
De qual destes será ela esposa na ressurreição,
uma vez que os sete a tiveram por mulher?»
Disse-lhes Jesus:
«Os filhos deste mundo
casam-se e dão-se em casamento.
Mas aqueles que forem dignos
de tomar parte na vida futura e na ressurreição dos mortos,
nem se casam nem se dão em casamento.
Na verdade, já nem podem morrer,
pois são como os Anjos,
e, porque nasceram da ressurreição, são filhos de Deus.
E que os mortos ressuscitam,
até Moisés o deu a entender no episódio da sarça ardente,
quando chama ao Senhor
'o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob'.
Não é um Deus de mortos, mas de vivos,
porque para Ele todos estão vivos».

04 novembro 2022

Carta a um anjo


Foi hoje, mas há 21 anos.

Há exactamente um ano publiquei aqui uma fotografia desta mesma criança - estava mais nova, sem cabelo, numa situação menos favorável, igualmente sorridente. Este ano, num texto de abertura para o Relatório Anual da Childhood Cancer International, escrevi: 

Termino com uma nota pessoal: no ano passado referi-me à criança cuja fotografia ilustrou a capa do Relatório Anual acrescentando a seguinte legenda: «conheci a rapariga cuja fotografia está na capa uns dias antes de completar um ano, alguns dias antes de ser diagnosticada com um neuroblastoma. Acho que a cabeça sem cabelo e os olhos sorridentes são uma boa metáfora para o que move o CCI: desafio e esperança.'

A criança na capa deste Relatório Anual é a mesma do ano passado. Um ano depois ainda está connosco graças à ciência e aos profissionais de saúde, à sua própria força interior, ao amor dos seus pais e familiares. E à esperança. 

A esperança é a coisa com penas
Que se empoleira na alma
A cantar a melodia sem letra,
A cantá-la sem fim 

Mesmo nos momentos mais sombrios, que possamos sempre guardar nos nossos corações essa coisa com penas de que Emily Dickinson falou.

***

Há dias a mãe de uma criança com cancro, cujo caso fui acompanhando, telefonou-me a partilhar boas notícias e a agradecer. Disse-lhe que nada havia feito, mas ela agradeceu na mesma o apoio e as orações. Cruzo-me com a avó que me vai dando notícias e que agradece o meu apoio e as orações. Não faço nada por estas crianças com cancro, sejam filhas ou netas de amigos, sejam filhas ou netas de pessoas que não conhecia. Dou o apoio possível e rezo o possível. Talvez o que me agradeçam seja a escuta e a certeza de que nos meus olhos se pode ler isto: sim, sei do que está a falar, já passei pelo mesmo. A minha experiência é fruto do azar; mas a minha escuta (incerta e volátil) é fruto do desafio que me vem de algum sítio, seguramente deste acontecimento de hoje, mas há 21 anos.

A minha vida levou-me a conhecer a comunidade da oncologia pediátrica com alguma proximidade: médicos, investigadores, psicólogos, assistentes sociais, pais, sobreviventes, profissionais. Não deixa de me espantar o que vejo: gente prestável, cordata, disponível, positiva, amiga, solidária, atenta ao próximo. Somos uma aldeia que se encarrega de tomar conta de uma criança doente, porque afinal, como diz a campanha da Acreditar o meu cancro não é só meu. Também é da minha família. O cancro numa criança não é só dela, mas da aldeia em que todos vivemos, onde se aprende a arte da escuta e do toque, onde a vulnerabilidade não é boa nem má, apenas humana. Pertencer a esta aldeia é um privilégio que espero merecer. 

Há 21 anos aprendi que uma criança podia ter cancro. Há 21 anos aprendi a usar as duas palavras incompatíveis - cancro e criança - na mesma frase. Passados 21 anos não me habituo, nem me conformo. Mas também há 21 anos aprendi aquilo que não me canso de dizer aos outros: não interessa porque é que as coisas nos acontecem, mas o que fazemos com as coisas que nos acontecem. Isto é, que sentido damos a estes acontecimentos. Repetir o raciocínio não é exibir uma vaidade pateta, mas agradecer aos outros que oiçam o que queremos dizer a nós próprios.

***

Há 21 anos que a tua memória do que tu foste e és não me sai da cabeça nem da alma. Há 21 anos que vives em tudo o que faço por esta comunidade e em tudo o que esta comunidade faz por mim, e que é muito mais. Há 21 anos que és inspiração e desafio para que eu saiba sempre o que é importante, o que é determinante, o que não é mais do que espuma dos dias. Há 21 anos que és essa coisa com penas de que falava o poema.

J, em nome de todos os que te lembram 

02 novembro 2022

Da passadeira enquanto metáfora

1) Em tempo idos tive um chefe que, em lhe sugerindo qualquer coisa, ele respondia: "em que é que isso aumenta o PIB?" A ideia dele era clara: ou o tema tinha uma utilidade financeira ou então não valia a pena pensar-se nisso.

2) Para Aristóteles (parece-me) a humanidade tinha um desejo inato de saber mais. Para Platão (também me parece) a humanidade queria lembrar-se do que já havia aprendido. É nesse sentido que um rapaz barqueiro do séc. XVIII, confrontado com a pergunta: "o que estarias disposto a dar, rapaz, para saber alguma coisa sobre os Argonautas?", respondeu imediatamente: "daria tudo o que tenho."

3) Uma passadeira eléctrica permite que um ser humano ande durante o tempo que quiser sem sair do mesmo sítio. 

***

Estas três notas introdutórias têm uma ligação evidente, embora a descoberta de um ponto de encontro entre um filósofo grego e um equipamento dedicado ao exercício físico seja um desafio. E, no entanto, Aristoteles foi uma espécie de defensor do conceito de passadeira, embora tivesse sido o criador do peripatetismo. Já o meu chefe estaria na barricada oposta.

A passadeira é uma boa metáfora: por mais que se mexa as pernas não se consegue de ir do ponto A para o ponto B; quedamo-nos sempre no mesmo sítio, isto é, aparentemente anda-se, mas não se avança. O rapaz barqueiro tinha por mister levar os clientes do ponto A para o ponto B. Saber algo sobre os argonautas não lhe acrescentaria valor prático; no entanto, daria tudo o que tem para saber algo sobre o tema. Já o meu chefe não quereria saber disso para nada, porque esse conhecimento não acrescentaria um euro ao PIB. Provavelmente também não andaria numa passadeira, porque tinha a sensação de não avançar.

A curiosidade, o desejo de saber ou de conhecer é, para os mais fundamentalistas, uma espécie de andar sem se avançar. A passadeira, na sua existência metafórica, é o contrário de uma espécie de utilitarismo que elimina o prazer ou a felicidade para se focar no que é útil.

Não gosto da ideia de passadeira, mas vou estar mais atento àqueles que também não gostam, para lhes vislumbrar utilitarismo ou sedentarismo mórbido.

JdB

01 novembro 2022

Dia de Todos os Santos

EVANGELHO Mt 5, 1-12a


«Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus


Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se.
Rodearam-n’O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa».

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