31 dezembro 2018

Poemas para o Ano Novo

Ano-novo

Agora nesta margem do Ano-Novo
Me sacudo todo como um cão molhado.
No meio do parque há um letreiro: ANO-BOM. O povo
Acredita,
O povo tem um sorriso que vai de orelha a orelha:
Meu Deus, até parece degolado!
Toda a rosa-dos-ventos se desfolha
E o ar está cheio de nomes amados
– uns tristes de tão longe…
Porém o rastro que eles deixam é sempre azul.
Estou só, ó Vida,
Só e livre.
Das palmas das minhas mãos brota o vôo de um
pássaro!
Enquanto
lá do fundo da infância que eu não tive –
Um menino apresta o arco…

Mario Quintana, Poesia Completa

***


Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

30 dezembro 2018

Festa da Sagrada Família

EVANGELHO – Lc 2,41-52

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém,
pela festa da Páscoa.
Quando Ele fez doze anos,
subiram até lá, como era costume nessa festa.
Quando eles regressavam, passados os dias festivos,
o Menino Jesus ficou em Jerusalém,
sem que seus pais o soubessem.
Julgando que Ele vinha na caravana,
fizeram um dia de viagem
e começaram a procurá-l’O entre os parentes e conhecidos.
Não O encontrando,
voltaram a Jerusalém, à sua procura.
Passados três dias,
encontraram-n’O no templo,
sentado no meio dos doutores,
a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas.
Todos aqueles que O ouviam
estavam surpreendidos com a sua inteligência e as suas respostas.
Quando viram Jesus, seus pais ficaram admirados;
e sua Mãe disse-Lhe:
«Filho, porque procedeste assim connosco?
Teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura».
Jesus respondeu-lhes:
«Porque Me procuráveis?
Não sabíeis que Eu devia estar na casa de meu Pai?»
Mas eles não entenderam as palavras que Jesus lhes disse.
Jesus desceu então com eles para Nazaré
e era-lhes submisso.
Sua Mãe guardava todos estes acontecimentos em seu coração.
E Jesus ia crescendo em sabedoria, em estatura e em graça,
diante de Deus e dos homens.

29 dezembro 2018

Pensamentos Impensados

Nudezes
La maja desnuda
Pintada por Goya
É a Duquesa de Alba
Ou uma lambisgóia?

Fórmulas
Quando S. João baptizou Jesus Cristo, disse: eu te baptizo em nome do Pai, de Vocelência e do Espirito Santo.

Gostos
Quem gosta de calor humano vá andar de transportes públicos às horas de ponta.

Frases
A frase Deus é grande é, no mínimo, mesquinha; Deus é super enorme.

Circos
E agora, senhoras e senhores, directamente de Paris, Louis Pasteur e os seus micróbios amestrados.

Musas
Para compor La Tosca, Puccini teve Odete Santos como musa inspiradora.

SdB (I)

28 dezembro 2018

Duas Últimas

Volta e meia mudo a minha forma de ouvir música. Até há algum tempo criava e ouvia playlists: música clássica, fado, jazz, música sul-americana, etc. Agora oiço álbuns inteiros. E tenho ouvido, ultimamente, o álbum de Paul Simon chamado Graceland.  Um álbum fantástico, cheio de ritmo e alegria.

Eu sei que a época está mais para músicas de Natal, mas achei que este ritmo africano, se seguido entusiasticamente por quem me lê, é um bom antídoto aos excessos gastronómicos deste período. Agitem-se por isso, cantando e dançando diamonds on the soles of her shoes

JdB


27 dezembro 2018

Das perguntas

Então o que tens feito? Poucas frases serão mais corriqueiras no convívio entre as pessoas. Para além da pergunta demonstrar um certo interesse aparente pelo próximo, é uma variante criativa à conversa sobre o tempo. Diga-se, contudo, que o tema tempo parece não interessar tanto às gerações modernas como às antigas que eram descendentes, muito próximas, ainda, de um meio de subsistência agrícola, de olhos postos no céu de onde caíam bênçãos imerecidas e chuvas a desoras. A pergunta que encima este texto encerra, no entanto, uma dificuldade importante: a que período de tempo nos referimos? Um dia, três semanas, uma vida? Quanto tempo mediou a penúltima e última vez que vimos a pessoa a quem dirigimos a pergunta?

Vem esta divagação, ainda com odores de Natal e excesso, a propósito de uma conversa tripartida sobre redes sociais, encontros antigos, amigos de longa data perdidos da nossa memória e, quem sabe, da vida. Ouvimos, amiúde, histórias de pessoas que encontram pessoas com quem conviveram há muitas décadas, que estão iguais ou mais gordas, ou que, em tempos idos, nos suscitaram suspiros, cartas de juvenilidade arrojada e olhares perdidos sobre o nada.

Então o que tens feito? Podia ter feito esta pergunta quando, numa viagem de avião, soube o nome do comandante: havia sido meu amigo próximo no fim da década de 60 e tinha-lhe perdido entretanto o rasto. Em resposta a uma solicitação, convidou-me a ir ao cockpit; sentei-me, olhei para um adulto que não via há 40 anos e percebi nada ter para lhe perguntar, uma vez que a pergunta óbvia era de uma inutilidade igualmente óbvia: com que discernimento se pergunta então o que tens feito? a quem está aos comandos de um avião? 

Então o que tens feito? Fizeram-me esta pergunta num casamento, altura particularmente propícia para conversas vagas e de circunstância elegante. Eu já me despedira dos 50 anos e tinha pela frente alguém que fora meu amigo quando eu tinha talvez 13 anos. Como se responde à pergunta? Queres que comece por que década? Talvez o problema esteja em achar-se que cada pergunta exige uma resposta, mesmo que esta seja educada, curta e vaga, como são as melhores. Podia responder nada, mas também podia responder ando por aí, ou, melhor ainda, faz-se o que se pode. Nenhuma das respostas possíveis dizia nada de mim, porque contar uma existência de 40 anos não é contar um jogo de futebol que se resume aos golos, aos erros do árbitro e a uma sequência misteriosa de números que soma sempre dez.

Kyoto, Novembro 2018

Nunca quis ter facebook. Vivo feliz com essa opção, pese embora ter ouvido grandes defensores dessa rede social onde, diziam-me, se podem encontrar pessoas de quem nada se sabe há décadas. As duas histórias acima são elucidativas da inutilidade do facebook, se essa for uma das suas virtudes. Ao meu amigo comandante da TAP não me ocorreu perguntar-lhe nada; ao meu amigo que encontrei num casamento não me ocorreu responder-lhe nada.  

Sobre a minha vida pouco há a dizer que suscite um interesse que se prolongue por mais de um gin tónico e de um croquete redondo. Grande parte da minha existência - a que se partilha num cockpit ou numa quinta alugada para eventos - é banalidade igual à banalidade de tantas e tantas pessoas. O que não é banalidade interessa a uma minoria de pessoas, ou não se adequa sequer à dinâmica de um Boeing ou de um cocktail. A minha vida (como a vida daqueles dois interlocutores) tem momentos marcantes - perdas significativas, conquistas importantes, momentos de indizível dor ou alegria, escolhas determinantes. Esses, no entanto, não se contam em cinco minutos: requerem tempo e atenção, curiosidade continuada pelas dinâmicas humanas. 

Entre a pergunta então o que tens feito? e a música de elevador há um fio unitivo que tem tanto de imperceptível como de eficiente: a sua existência não prejudica a riqueza das nações e é um bálsamo contra o silêncio que tanto horroriza a modernidade. A pergunta e a melodia são portas que se abrem para uma potencial conversa, ou são a antecâmara para uma noite secreta e pecaminosa num quarto que se detém por uma noite. O importante é que a pergunta não requeira resposta e a noite só termine a tempo do checkout.

JdB 

26 dezembro 2018

Poemas dos dias que correm

Amor Místico

Quando a minha alma nasceu
Para onde olhou primeiro,
E viu tudo um nevoeiro,
Foi lá cima para o céu...
    Que a alma nunca lhe passa
De ideia a fonte da graça!

Em toda a ânsia de luz,
Em toda a ânsia de gozo,
Sempre aquele olhar ansioso
Nesse ideal de Jesus...
    Nesse bem que não se exprime...
Êxtase de amor sublime!

Olhava da solidão,
Onde se sentia presa,
Com a natural tristeza
Dos ferros de uma prisão...
    À espera sempre da hora
Que lhe raiasse a aurora!

Bem a chamavam de cá
Sempre os cuidados do dia;
Ela, que nunca os ouvia,
Olhava, mas para lá...
    Donde ela mesmo viera,
Donde todo o bem se espera!

Um dia (nem eu sei qual,
Que em suma foi isso há tanto!)
Vê com uns olhos de espanto
Romper-se a névoa geral;
    E como um sol recortado
Nesse mar enevoado...

E dentro desse clarão,
Como em círculo de prata,
Que imagem se lhe retrata,
Fosse verdade ou visão?
    A mesma que ela apertava
Nos braços quando sonhava.

Mas a visão, em lugar
De vir cair-lhe nos braços,
Voa por esses espaços
Até já mal se avistar...
    Indo assim a luz minguando
E indo-se a névoa cerrando!

E hoje a minha alma, não sei
Se nessa névoa cerrada
Vê tal visão embrulhada
Ou nem já vestígios vê...
    Sei que se ainda me anima,
É de olhos fitos lá cima.

João de Deus, in 'Campo de Flores'

25 dezembro 2018

Missa do dia do Natal do Senhor

EVANGELHO – Jo 1,1-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus.
No princípio, Ele estava com Deus.
Tudo se fez por meio d’Ele
e sem Ele nada foi feito.
N’Ele estava a vida
e a vida era a luz dos homens.
A luz brilha nas trevas
e as trevas não a receberam.
Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João.
Veio como testemunha,
para dar testemunho da luz,
a fim de que todos acreditassem por meio dele.
Ele não era a luz,
mas veio para dar testemunho da luz.
O Verbo era a luz verdadeira,
que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem.
Estava no mundo,
e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu.
Veio para o que era seu
e os seus não O receberam.
Mas, àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome,
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.
Estes não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas de Deus.
E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.
Nós vimos a sua glória,
glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito,
cheio de graça e de verdade.
João dá testemunho d’Ele, exclamando:
«É deste que eu dizia:
‘O que vem depois de mim passou à minha frente,
porque existia antes de mim’».
Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos
graça sobre graça.
Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés,
a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
A Deus, nunca ninguém O viu.
O Filho Unigénito, que está no seio do Pai,
é que O deu a conhecer.

24 dezembro 2018

Natal do Senhor

O editor e dono do estabelecimento deseja a todos os que aqui colaboram e a todos os que por aqui passam de visita um Santo Natal.

JdB

Adoração dos pastores (Murillo)

EVANGELHO – Lc 2,1-14 (Missa da meia-noite do Natal do Senhor)

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naqueles dias,
saiu um decreto de César Augusto,
para ser recenseada toda a terra.
Este primeiro recenseamento efectuou-se
quando Quirino era governador da Síria.
Todos se foram recensear, cada um à sua cidade.
José subiu também da Galileia, da cidade de Nazaré,
à Judeia, à cidade de David, chamada Belém,
por ser da casa e da descendência de David,
a fim de se recensear com Maria, sua esposa,
que estava para ser mãe.
Enquanto ali se encontravam,
chegou o dia de ela dar à luz,
e teve o seu Filho primogénito.
Envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura,
porque não havia lugar para eles na hospedaria.
Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos
e guardavam de noite os rebanhos.
O Anjo do Senhor aproximou-se deles
e a glória do Senhor cercou-os de luz;
e eles tiveram grande medo.
Disse-lhes o Anjo: «Não temais,
porque vos anuncio uma grande alegria para todo o povo:
nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador,
que é Cristo Senhor.
Isto vos servirá de sinal:
encontrareis um Menino recém-nascido,
envolto em panos e deitado numa manjedoura».
Imediatamente juntou-se ao Anjo
uma multidão do exército celeste,
que louvava a Deus, dizendo:
«Glória a Deus nas alturas
e paz na terra aos homens por Ele amados».

23 dezembro 2018

4º Domingo do Tempo do Advento

EVANGELHO – Lc 1,39-47

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direcção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».

22 dezembro 2018

Pensamentos Impensados

Promoções
Até ser baptizado, Jesus Cristo era apenas Deus; um Deus pagão.

Banhos de mar...celo
Há muito tempo que não se vê Marcelo a tomar banho; estará a perder hábitos de higiene?

Vozes do além
Quando Deus disse este é o meu Filho muito amado estava em alta-voz.

Omni soit...
Marcelo é omnipresente e omnisciente; para ser igual  a Deus só lhe falta ser omnipotente.

Frases
Mete-se pelos olhos dentro é uma frase muito bonita, desde que não seja um espeto.

A casamentos e baptizados...
Fui ver um espectáculo de magia e Marcelo não apareceu; se calhar a sua presença não seria considerada magia.

SdB (I)

21 dezembro 2018

Do vocabulário

Ao nível do indivíduo, as diferenças de entendimento de uma mesma palavra ou de um mesmo conceito são enormes. Alguns exemplos, apenas: aquilo a que eu chamo conservação de energia outra pessoa chamará preguiça; uso muito a expressão dívida de amizade; há quem não goste da expressão, dando-lhe um carácter menos positivo. Em bom rigor, neste último caso não me sinto obrigado a nada nem a ninguém. Sinto, isso sim, que relativamente a algumas pessoas fui beneficiário da sua atenção numa altura específica, e que isso me ficou no coração. Só talvez não possa ser devedor porque não sei se conseguirei pagar a dívida... 

Por último, um dia destes dei por mim a referir-me a uma qualidade grande que certa pessoa tinha: gratidão. Esta pessoa agradece sistematicamente o apoio, atenção e confiança que determinada família lhe deu ao longo de mais de duas décadas. Simpatizo com a ideia de gratidão, embora alguém me diga que não gosta de sentir que as pessoas lhe agradecem alguma coisa. Se acharmos que os outros não devem agradecer-nos nada, será que conseguimos agradecer-lhes convenientemente?  

Num outro plano há, entre o nosso vocabulário e aquilo que somos e fazemos, uma relação biunívoca importante: a maneira como agimos afecta o nosso vocabulário, mas o vocabulário que utilizamos também afecta aquilo que fazemos. Isto é, nas palavras de um orgulhoso empedernido, a expressão perdão faz pouco sentido (e talvez ele nunca a use), mas, se utilizarmos persistentemente a expressão perdão talvez acabemos por incorporar o seu conceito no nosso léxico comportamental. 

Também pelo referido acima é importante, para quem é crente, a frequência da igreja. De tanto ouvirmos expressões como serviço, próximo, amor, compaixão, acabamos por interiorizar a necessidade de os materializarmos em actos constantes. É muito por isso que alguma abordagem actual aos problemas alheios assentam em ideias que me são desconfortáveis, porque muito voltadas para o próprio: tens de ser feliz, tens de pensar em ti, tens de olhar para o que é bom para ti. Esta atitude de pensar primeiro em nós próprios talvez só seja válida nos aviões: em caso de despressurização da cabine, só depois de colocarmos a nossa própria máscara de oxigénio é que deveremos por a de uma criança. O léxico cristão (por oposição a um certo léxico laico) usa expressões mais voltadas para o outro, para o próximo, para os que sofrem ou precisam mais. 

A bondade - no seu sentido mais genérico - não é privilégio nem monopólio dos crentes. Mas há uma importância no vocabulário que usamos no dia a dia. Será muito difícil sermos santos se nunca proferirmos a palavra; será muito difícil percebermos o conceito de ajuda se nunca a pedirmos, alegando os mais diversos motivos.

JdB

   

20 dezembro 2018

Textos dos dias que correm

Celebre o Natal, Senhor Kappus

Meu caro Senhor Kappus,

Não ficará sem uma saudação minha, agora que o Natal se aproxima e que a sua solidão, em dias de festa, começará a pesar-lhe. Mas se notar que ela é grande, alegre-se, pois o que seria uma solidão (faça esta pergunta a si mesmo) sem grandeza? Há apenas uma solidão, que é grande e difícil de suportar, e quase todos conhecem a hora em que gostariam de a trocar por uma qualquer convivência, por mais vulgar e fácil, por uma aparência de harmonia mínima com o mais inferior, com o mais indigno... Mas é talvez nestas horas que a solidão cresce; porque este crescimento é doloroso como o crescimento da criança e triste como o princípio da Primavera. Mas não se deixe perder. Só a solidão é necessária, uma grande solidão interior. Entrar dentro de si e não estar com ninguém horas a fio - tem de ser capaz disso. Estar só, como em crianças estávamos sós, quando os adultos cirandavam por aqui e por ali, enredados em coisas que pareciam grandes e importantes porque os adultos pareciam tão ocupados e porque nada sabíamos dos seus afazeres.

E quando certo dia vemos que as ocupações deles são pobres, que as suas profissões empederniram e já não estão unidas à vida, porque não havemos de continuar a vê-las como uma criança que vê uma coisa estranha, com um olhar que nasce da profundeza do nosso mundo próprio, da largueza da nossa solidão, que é ela mesma trabalho e distinção e profissão? Porquê trocar o sábio não entendimento de uma criança pela aversão e pelo desprezo, se este não entendimento é já uma forma de estar só, ao passo que a aversão e o desprezo são atitudes que nos prendem ao que com elas pretendemos afastar?

Pense no mundo que traz em si, caro Senhor, e dê a este pensamento o nome que quiser; chame-lhe recordação da infância ou nostalgia do seu futuro, mas tenha atenção ao que nasce em si e conceda-lhe um lugar mais alto do que a tudo o que vê à sua volta. O que acontece dentro de si merece todo o seu amor, trabalhe nisso de algum modo e não perca muito tempo nem alento a tentar esclarecer a sua atitude perante os homens. Quem lhe diz a si que esta atitude sequer existe? Sei que a sua profissão é dura e contradiz a sua natureza. Previ este lamento e sabia que ele acabaria por chegar. Agora que chegou, não o posso tranquilizar, posso apenas aconselhá-lo a perguntar-se se não serão assim todas as profissões, cheias de imposições, cheias de hostilidade contra o indivíduo, embebidas do ódio, por assim dizer, daqueles que cumprem mudos e a contragosto os seus insípidos deveres. A condição em que agora tem de viver não está mais carregada com convenções, preconceitos e erros do que outras, e se algumas deixam entrever uma maior liberdade, não há nenhuma que seja larga e espaçosa o bastante, que esteja em relação com as coisas maiores que fazem a vida genuína. Só o indivíduo solitário obedece como uma coisa às leis profundas, e quando sai para a rua, para a manhã que se levanta, ou quando olha para fora, para a noite que é um evento pleno, e quando sente o que então acontece, liberta-se como um morto da sua condição, mesmo estando ele no centro da vida. O que agora tem de viver enquanto oficial, caro Senhor Kappus, teria também vivido em qualquer outra profissão; na verdade, mesmo que procurasse apenas um contacto ligeiro e independente com a sociedade, exterior àquela atitude perante os homens, mesmo assim não seria poupado a esta sensação de tolhimento. E assim em toda a parte, mas que isso não seja motivo de medo ou tristeza; se não há nada em comum entre si e os homens, tente ficar próximo das coisas que não o abandonarão; as noites ainda aí estão, e os ventos que cruzam as árvores e as muitas terras; entre as coisas e entre os animais encontrará ainda muitos eventos que poderá partilhar; e as crianças são ainda como v. era em criança, tão tristes e tão felizes; e quando pensar na sua infância, viverá de novo entre elas, por entre as crianças solitárias, e os adultos não serão nada, e a dignidade deles não terá valor.

E se for para si penoso e aflitivo pensar na infância, e na simplicidade e no silêncio que lhe são próprios, porque já não acredita em Deus, que nela está presente, pergunte-se então, caro Senhor Kappus, se o terá realmente perdido. Não será antes verdade que nunca o teve? Pois quando o poderia ter perdido? Julga que uma criança consegue mantê-lo quando os homens só a custo o carregam e quando os velhos se vergam ao seu peso? Julga que quem realmente tem Deus pode perdê-lo como quem perde uma pedrinha, ou acha antes, como eu, que quem o tem é que pode ser perdido por ele? Mas se reconhece que ele não estava nem na sua infância nem antes, se reconhece que Cristo foi trocado pela nostalgia que agora sente e que Maomé foi traído pelo orgulho com que vive, e se sente com pavor que mesmo agora ele não está presente, nesta hora em que falamos dele, com que direito sente a falta de Deus, como de um morto, se ele nunca esteve presente, e com que direito o procura como se ele estivesse perdido?

Porque não pensa antes que ele é o que está para vir, o que chegará da eternidade, o fruto final e futuro de uma árvore de que nós somos as folhas? O que o impede de lançar o nascimento dele para os tempos vindouros e de viver a sua própria vida como um dia belo e doloroso na história de uma imensa gestação? Não vê que tudo o que acontece é sempre mais um início, e que este poderia ser o início d'Ele, porque cada início é em si tão belo? Se ele é a perfeição maior, não tem a imperfeição de estar antes dele, para que ele possa escolher se por entre a plenitude e a abundância? Não tem ele tie ser o último para conter tudo em si, e que sentido teríamos nós se aquele por quem ansiamos tivesse já vindo?

Assim como as abelhas fazem o mel, também nós retiramos o mais doce de tudo para edificar Deus. Com o mais pequeno, com o mais imperceptível (desde que aconteça por amor), começamos o nosso trabalho, e depois, com o sossego, com um silêncio ou com uma pequena alegria solitária, com tudo o que só nós fazemos, sem que ninguém nos ajude ou admire, damos início àquele que não viveremos, tal como os nossos antepassados não nos viveram. E, no entanto, os que há muito morreram estão em nós, como pendor, como lastro no nosso destino, como sangue que rumoreja e como gesto que sobe das profundezas do tempo.

Nada lhe poderá roubar a esperança de um dia estar nele, no mais longínquo, no mais extremo!

Celebre o Natal, caro Senhor Kappus, com este sentimento de devoção, pensando que Ele talvez precise desta angústia na sua vida para se iniciar; justamente estes seus dias de transição são talvez o tempo em que tudo em si trabalha nele, como em tempos já trabalhou nele, sem fôlego, em rapaz. Seja paciente, não desespere e pense que o menos que podemos fazer é não dificultar este início, como também a Terra acolhe a Primavera quando ela quer chegar.
E tenha alegria e consolo.

Rainer Maria Rilke, in 'Cartas a um Jovem Poeta'

19 dezembro 2018

Vai um gin do Peter’s ?

VANGUARDISMO REINVENTA A ARTE MEDIEVAL, EM FRANÇA 

Na cidade universitária de Rennes, na Bretanha francesa, este dia 8 de Dezembro assinalou a abertura do antigo Convento dos Jacobinos, finalmente restaurado pela mão do artista plástico Laurent Grasso (1972-…), que reinventou os vitrais do edifício do século XIV implantado na praça de Sant’Ana.

Numa obra escultural ousada, Grasso preencheu as frestas conventuais com prismas espelhados, que rodam sobre si próprios reflectindo no interior a luz solar captada no exterior e acompanhando a luz de fora como um girassol. Explica o artista: «(simulam) a ideia de um interior & exterior, de uma passagem simbólica de uma época histórica para outra, de um intrigante vai-e-vem que é, frequentemente, a força motriz por trás das minhas instalações».

O recurso ao latão evoca a estética dos instrumentos científicos da Renascença
e da Idade Moderna, muito apreciados por Grasso.
A partir de sextantes, bússolas, microscópios e instrumentos ópticos mais rudimentares,
o artista recicla originais antigos para lhes oferecer uma nova função e uma nova missão.  

Movendo-se num compasso lento, o tom dourado daquelas réguas de latão enchem o espaço de uma luminosidade rica e quente. Intitulou-as de «Revolving History» também em sentido literal, para aludir àquela cadência ondulante das placas metálicas, que revolucionam o conceito de janela – outrora estática. Na notícia publicada no Paris Match (13-19.Dez.2018), exalta-se o seu movimento lento e hipnótico, que parece reacordar os “fantasmas da história”.

As peças douradas e oscilantes de Grasso transfiguram a versão clássica dos vitrais
medievos, rejuvenescendo o antigo Convento dos Jacobinos

No interior, mantém-se a atmosfera recolhida do original medievo.



Noutros media franceses, insere-se esta peça no género surrealista e ambíguo das suas instalações multiformes, que misturam materiais improváveis. Grasso combina também elementos de tempos distintos, para ensaiar uma síntese entre o passado, o presente e o futuro. De tonalidades clássicas e, frequentemente, a formar padrões, privilegia os pretos e os dourados, num cromatismo que se coaduna com o gosto medieval: 

As instalações de Grasso acumulam diferentes expressões plásticas: escultura, pintura, cinema, fotografia.
Tematicamente, entrecruzam elementos da ciência, da psicologia, em especial do medo e dos mitos contemporâneos,
para “desinstalar” o público da zona de conforto e levá-lo a questionar-se sobre o sentido da vida. A sugestão de uma nova temporalidade na sua obra propõe uma realidade desconhecida ou, de algum modo, renovada. 

«Anechoic Wall», 2016. Madeira e folha de ouro. 

Na música actual, testemunhamos o movimento inverso, quando o clássico invade e reinsufla o nosso “vanguardismo”, permitindo-lhe ultrapassar os limites do tempo –  uma façanha ao alcance da beleza!  «Once Upon A Time In The West» (final), de Ennio Morricone, é um óptimo exemplo:



Esta ária calma e tocante desliza bem para o ambiente da quadra, que convida a uma tranquilidade atenta aos outros. Oferecendo o seu tempo e as suas vozes lindas, os GENTRI (The Gentlemen trio») repescam músicas conhecidas ou compõe novas para as partilhar amplamente com quem está em situação mais vulnerável. À boa banda sonora, têm vindo a acrescentar curtas-metragens sugestivas, que dão óptimas dicas para presentes de Natal generosos, daqueles que fazem falta e… não cabem em embrulhos:



Votos antecipados de BOAS-FESTAS, com mais presentes diferentes – de outra escala, em carne-e-osso, para se assemelharem ao que nos foi oferecido naquela Noite mansa de há 2000 anos.

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
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18 dezembro 2018

Petits riens

Revisito mentalmente uma conferência a que assisti há cerca de dois meses. Lembro a pergunta feita logo ao início: quem prevê melhor o que o orador vai dizer? Quem conhece bem o orador ou quem conhece a organização onde ele vai falar?

***

Sento-me num jantar académico com dois professores de faculdade. No decurso da conversa fala-se de um livro sobre um tema específico, das fracturas teológicas dentro da Igreja por causa desse tema, de um posfácio que alguém presente escreveu: Judas Iscariotes está no Céu? O tema era-me totalmente desconhecido, mas dizem-me que gera controvérsia, opondo os mais conservadores, que acham que não há perdão para quem traiu Jesus Cristo, aos menos conservadores, que alegam a misericórdia infinita de Deus. É verdade que Judas se arrependeu, que devolveu as moedas mas que desesperou, tendo-se enforcado (e lembremo-nos que até há alguns anos, não muitos, quem se suicidava não podia ter um enterro cristão). Falam-me, inclusivamente, numa igreja em França onde a imagem do Bom Pastor não é a tradicional, com a ovelha aos ombros, mas uma mais ousada, em que é Judas que é transportado. Não hesito muito para responder à pergunta sobre o destino de Judas, mas não obstante interessou-me o tema, porque me obriga a pensar.

***

Volto à conferência e a uma frase que ouvi: o importante no metro não é o passageiro, mas a rede do metro. Como se desenha a rede de metro na Coreia do Norte, uma vez que não haverá mapas para dar aos turistas? Talvez seguindo as entradas e saídas do passageiros, talvez identificando os caminhos percorridos no subsolo por cada cidadão .

***

Oiço que há uma parte do cérebro toda voltada para a inactividade, não por preguiça, mas por uma questão de conservação da energia. Outra parte do cérebro está, toda ela, voltada para a actividade. Dentro do cérebro desenrola-se então uma luta, igual à que se desenrola dentro do meu, que não sou diferente do comum dos mortais. Tenho uma parte de mim puramente preguiçosa, mas outra parte preocupada com a conservação da energia: tenho dificuldade, por isso, em investir muito tempo e esforço em perceber uma actividade que não repetirei, ou cuja relação custo / benefício pende claramente para o pedido de ajuda. Não conseguindo já fazer tudo, tento discernir o que é importante. E nisso não sou preguiçoso.  

JdB 

17 dezembro 2018

Poemas dos dias que correm

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'

***

Litania do Natal

A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus...»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus...»
Que então me recordei do santo dia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus...»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus...»

E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

José Régio, in 'Antologia Poética'

16 dezembro 2018

III Domingo do Tempo do Advento

EVANGELHO – Lc 3,10-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
as multidões perguntavam a João Baptista:
«Que devemos fazer?»
Ele respondia-lhes:
«Quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma;
e quem tiver mantimentos faça o mesmo».
Vieram também alguns publicanos para serem baptizados
e disseram:
«Mestre, que devemos fazer?»
João respondeu-lhes:
«Não exijais nada além do que vos foi prescrito».
Perguntavam-lhe também os soldados:
«E nós, que devemos fazer?»
Ele respondeu-lhes:
«Não pratiqueis violência com ninguém
nem denuncieis injustamente;
e contentai-vos com o vosso soldo».
Como o povo estava na expectativa
e todos pensavam em seus corações
se João não seria o Messias,
ele tomou a palavra e disse a todos:
«Eu baptizo-vos com água,
mas está a chegar quem é mais forte do que eu,
e eu não sou digno de desatar as correias das suas sandálias.
Ele baptizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo.
Tem na mão a pá para limpar a sua eira
e recolherá o trigo no seu celeiro;
a palha, porém, queimá-la-á num fogo que não se apaga».
Assim, com estas e muitas outras exortações,
João anunciava ao povo a Boa Nova».

15 dezembro 2018

Pensamentos Impensados

Metades
Nem sempre meia haste quer dizer luto; pode ser corno partido ao meio.

Gostos
Quem o feio ama amarelo lhe apetece.

Voto vs. veto
Voto de castidade resume-se a dura lex non sex.

Desigualdades
Eram dois irmãos completamente diferentes: ela era tíbia e ele mais perónio.

Esqueletos
Se os ossos humanos fossem classificados agora, em vez de Rádio e Cúbito seriam Rádio e TV.

Manias
Esta modernice de cortar no sal deve-se a uma leitura errada da Lei Sálica.

SdB (I)

14 dezembro 2018

Duas Últimas

É imperioso que os meus fiéis leitores leiam o poema abaixo antes de se deitarem à escuta da interpretação do fado pela boca privilegiada de Fernando Maurício. Ao que parece, há uma história autobiográfica (mas não afianço) por trás desta letra específica cantada por este fadista específico. Mas o poema é um primor (e não estou a ser irónico): em 24 linhas, mais coisa menos coisa, está toda uma história de vida: o arrependimento pela desilusão causada, as escolhas erradas, o desejo de regresso à infância, esse grande território de onde todos saímos, como diria Saint-Exupéry.

JdB  




Diz-me Mãe

Tu não tens culpa mãe, de eu ser só isto
Havia dois caminhos, do diabo e de Cristo
Um terceiro inventei e nele me perdi
Então criei sozinho um outro mundo, tão belo
Tão perfeito como a curva suave do teu peito, que não vi
Mãe quero ser pequenino, que os meus primeiros passos
Sejam iguais aos do menino saído dos teus braços, sem ambição
Tu não tens culpa mãe, de eu ser só isto, perdão

Diz-me, diz-me, minha mãe
Na tristeza desta hora
Quantas dores eu te custei
E te dei pla vida fora
Diz-me, se quando dormia
Nesse teu colo divino
A tua alma não pedia
A Deus, pelo teu menino

Diz-me tu, que me geraste
Meu vaso, minha raiz
Quantas lágrimas choraste
Plas loucuras que fiz
Todas as dores do passado
E do presente também
Descansa-as neste meu fado
Boa noite minha mãe

Poema de Mário Rainho cantado,

13 dezembro 2018

Daquilo que se dá - o braço ou a mão

Imaginemos uma ajudante de cozinheira da nobreza inglesa do início do séc. XX. Imaginemo-la no seu labor diário pesado e ignorado; imaginemo-la por fim no seu sonho, traduzido num modesto anúncio de jornal de província, de ser cozinheira num hotel. Ela verbaliza o sonho, di-lo alto para testar a sua própria existência, para se fazer ouvir fora do ruído das panelas, do calor das gorduras ou do cheiro dos faisões que apodrecem pendurados num trave de madeira. À sua volta ela não vê só vitualhas e horários a cumprir - ela vê o mundo que deixou de estar confinado às quatro paredes do andar de baixo de uma casa senhorial. Mais do que ver outro mundo, ela vê-se noutro mundo. Quem convive com ela na sua condição de ajudante de cozinheira abre a boca de espanto - não só pela ousadia do sonho, mas pela estupefacção de imaginar que há outro mundo para além daquele mundo.

Imaginemos agora um casal que passeia à beira mar ao fim de uma tarde de Outono. Ele põe um chapéu que é mais adorno do que protecção, ela vai de sapatos confortáveis, agasalho ligeiro, olhos confiantes na rotina das marés. Ele vai de mãos nos bolsos, sorriso seguro, passada firme. Ela dá-lhe o braço que ele oferece - ou talvez seja ela a pedir que ele abra o braço para ela entrelaçar o seu próprio no dele. Seguem em direcção ao futuro, confiantes num certo mundo que se resume às quatro paredes metafóricas onde vivem, por onde circulam, onde estão as pessoas familiares, as casas familiares, as coisas habituais. Seguem de braço dado falando de petits riens, da vida que foi e há-de vir, dos projectos ou dos outros, das vicissitudes da existência. Sorriem - e nesse sorriso não há ausência de dor, mas segurança num modelo. Num repente, vindos em sentido contrário, um casal - ele de chapéu, ela de sapatos confortáveis - passeiam à beira mar. O que os diferencia? Este segunda casal vai de mãos dadas.

Entre o casal que circula de mãos dadas e a ajudante de cozinheira que ambiciona ser cozinheira não há diferença, assim como não há entre o casal que passeia de braço dado e a casa senhorial da nobreza inglesa do início do séc. XX. 

O espanto de ver uma ajudante de cozinheira a querer ser cozinheira em 1920 não é o horror ao sonho, mas é a incapacidade de se imaginar um mundo para além daquelas paredes e daquelas rotinas. E não só imaginar um mundo, como imaginar-se num mundo. O espanto de ver um casal de mão dada não é um horror ao exibicionismo ou uma rejeição daquela estética moderna. O horror advém da constatação de um facto: o braço dado é uma rotina e uma parede que conferem segurança; há alguém que se apoia em alguém. Ora, a mão dada é a igualdade total. Ambos dão as mãos, não há ninguém a dar um braço ao braço que alguém oferece. As mãos dadas representam o fim da luta de géneros, mesmo que não haja luta de géneros. As mãos dadas representam a igualdade de géneros, mesmo que não haja igualdade de géneros. 

A ajudante de cozinheira sai e encontra o casal que segue de mãos dadas. Olha para trás, não com saudade, mas com ternura, e despede-se da casa, como o casal que dá as mãos se despede do casal que, de braço dado, vê um certo futuro a chegar. Quem parte ganha uma consciência da sua individualidade, da possibilidade de um outro mundo onde se vê de corpo inteiro. A contabilidade do que se ganha e do que se perde fica com cada um. Continuará a haver ajudantes de cozinha felizes, continuará a haver casais que, de braço dado e ao som das marés, nisso encontram conforto. E haverá felicidade em quem parte e se atira para longe. O importante é não deixar destroços, ou não se constituir destroços.

JdB 

12 dezembro 2018

Textos dos dias que correm

Dobrar-se

«Não há em toda uma vida coisa mais importante a fazer do que dobrar-se, para que um outro, abraçando-te o pescoço, possa reerguer-se.»

Teve uma vida dedicada ao compromisso político e ao rigor moral e intelectual, em coerência com a sua visão da história. Falo de Luigi Pintor, jornalista e homem político comunista falecido em 2003.

Talvez ele próprio estranhasse ser citado e recordado por um padre numa rubrica de matriz espiritual. Nunca o conheci nem encontrei, mas um amigo comum falou-me sempre dele como de uma pessoa de forte moralidade e sensibilidade, ainda que na diversidade profunda da interpretação do mundo e da vida.

É isso que emerge precisamente da bela, intensa e “cristã” imagem que Pintor deixou no volume “Servabo”, de que extraí a proposta para a nossa reflexão. Uma opção de vida que está toda naquele «dobrar-se», para que quem está por terra, frágil e ferido, possa abraçar-te o colo e, assim, voltar a pôr-se de pé e tornar a percorrer a estrada da vida.

É o gesto do bom samaritano da célebre parábola de Jesus, um homem que não era judeu, antes era considerado um heterodoxo e um estranho à comunidade de eleição, e que Cristo transforma num exemplo não só para os fiéis judeus, mas também para os seus sacerdotes e levitas.

Um gesto que deveria estar no coração da verdadeira política, que deveria ter como regra a ajuda recíproca, assegurando não o primado aos interesses particulares, mas ao cuidado e ao apoio aos últimos e aos fracos.

Um gesto, este de dobrar-se, que foi emblemático para uma multidão de santos e que deveria ser a glória do cristão, demasiadas vezes tentado – como os outros atores da parábola lucana – a «passar além, para o outro lado», altivo e enfastiado pelo grito do sofredor, pelo seu cheiro e pelas suas farpelas sujas.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 11.12.2018

11 dezembro 2018

Textos dos dias que correm

Kyoto, Novembro 2018

Não se Reconquista o Amor com Argumentos

Não te esqueças de que a tua frase é um acto. Se desejas levar-me a agir, não pegues em argumentos. Julgas que me deixarei determinar por argumentos? Não me seria difícil opor, aos teus, melhores argumentos.
Já viste a mulher repudiada reconquistar-te através de um processo em que ela prova que tem razão? O processo irrita. Ela nem sequer será capaz de te recuperar mostrando-te tal como tu a amavas, porque essa já tu a não amas. Olha aquela infeliz que, nas vésperas do divórcio, teve a ideia de cantar a mesma canção triste que cantava quando noiva. Essa canção triste ainda tornou o homem mais furioso.
Talvez ela o recuperasse se o conseguisse despertar tal como ele era quando a amava. Mas para isso precisaria de um génio criador, porque teria de carregar o homem de qualquer coisa, da mesma maneira que eu o carrego de uma inclinação para o mar que fará dele construtor de navios. Só assim cresceria essa árvore que depois se iria diversificando. E ele havia de pedir de novo a canção triste.
Para fundar o amor por mim, faço nascer em ti alguém que é para mim. Não te confessarei o meu sofrimento, porque ele te faria desgostar de mim. Não te farei censuras: elas irritar-te-iam justamente. Não te direi as razões que tu tens para amar-me, porque não as tens. A razão de amar é o amor. Também não me mostrarei mais, tal como tu me desejavas. Porque tu já não desejas esse. Se não, amar-me-ias ainda. Mas educar-te-ei para mim. E, se sou forte, mostrar-te-ei uma paisagem que fará de ti meu amigo.

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"

10 dezembro 2018

Das caligrafias

Há um momento no nosso cérebro - e talvez não seja um momento, mas uma série mais ou menos prolongada de momentos - em que várias informações se misturam: conceitos técnicos, teorias populares, devaneios, leituras dispersas, conversas de amigos. No fundo, como se divagássemos sobre a teoria geocêntrica do universo e já não discerníssemos se isso decorria de uma profecia do Bandarra, de uma das aventuras que a Enid Blyton inventou para cinco amigos ou das aulas de geografia. Acontece-me isso amiúde, e por isso achei importante fazer esta espécie de declaração de interesses antes de me atirar ao tema.

Os japoneses escrevem de cima para baixo; os árabes da direita para a esquerda, o mundo ocidental da esquerda para a direita. Talvez para os primeiros o ponto de partida da vida esteja ao nível do céu, do espírito do intangível e tudo então conflua para a terra; talvez para os segundos o mesmo ponto de partida esteja no futuro que não se sabe se existe e se caminhe para o passado, para o profeta, para Alá, para a revelação; talvez para os terceiros - aquele onde nos enquadramos - a vida seja feita de progresso e com vista ao progresso, e por isso caminhemos para a frente, porque a representação do que foi está normalmente ao lado esquerdo.

Fotografia 1: caneta de tinta permanente na mão de um dextro
   
Fotografia 2: caneta de tinta permanente na mão de um canhoto

Ora, se considerarmos que a caligrafia é, também ela, uma forma de representação de um povo ou de uma determinada cultura, temos então de considerar que a forma como essa cultura escreve - uma espécie de sub-grupos dentro de um grupo maior - é igualmente representativo de alguma coisa. Vejamos então: um dextro (fotografia 1) puxa a caneta. Há um exercício de tracção, como se o agente fosse a força motriz da vida e a escrita viesse a reboque de uma sucessão de iniciativas constantes. Ao contrário, um canhoto (fotografia 2) empurra a caneta, como se quisesse que o instrumento e o produto do labor desse instrumento, que é a palavra, assumissem a dianteira, se configurassem como líder da vida. 

Fotografia 3: caneta de tinta permanente na mão de um canhoto (versão 2)

A fotografia 3 é uma variante da fotografia 2. É um caso real, a que assisto frequentemente nas minhas aulas, numas mãos bonitas e elegantemente juvenis. Neste caso quem puxa o quê? A mão estão ao contrário, o aparo está ao contrário, ali tudo se alia para que a mão não passe por cima de uma tinta fresca, sujando de borrões uma folha imaculada e, quiçá, de gramagem generosa. O que faz que escreve assim? Quem assume a dianteira na relação entre a mão, o espírito, o papel e a caneta? Onde está o passado e o futuro?

JdB

09 dezembro 2018

II Domingo do Tempo do Advento

EVANGELHO – Lc 3,1-6

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

No décimo quinto ano do reinado do imperador Tibério,
quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia,
Herodes tetrarca da Galileia,
seu irmão Filipe tetrarca da região da Itureia e Traconítide
e Lisânias tetrarca de Abilene,
no pontificado de Anás e Caifás,
foi dirigida a palavra de Deus
a João, filho de Zacarias, no deserto.
E ele percorreu toda a zona do rio Jordão,
pregando um baptismo de penitência
para a remissão dos pecados,
como está escrito no livro dos oráculos do profeta Isaías:
«Uma voz clama no deserto:
‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas.
Sejam alteados todos os vales
e abatidos os montes e as colinas;
endireitem-se os caminhos tortuosos
e aplanem-se as veredas escarpadas;
e toda a criatura verá a salvação de Deus’».

***

Deus supera todas as barreiras, das erguidas pelos poderosos às do meu passado tortuoso

Uma página solene (Lucas 3, 1-6), quase majestosa, dá este domingo, segundo do Advento, início à atividade pública de Jesus. Um longo elenco de reis e sacerdotes traçam o mapa do poder político e religioso do tempo, e depois, inesperadamente, a mudança de rumo, a reviravolta.

A Palavra de Deus voa para longe do templo e das grandes capitais, do sacerdócio e das câmaras do poder, e chega a um jovem, filho de sacerdote e amigo do deserto, do vento sem obstáculos, do silêncio vigilante, onde cada sussurro chega ao coração.

João ainda não tem 30 anos e já aprendeu que as únicas palavras verdadeiras são as que se tornam carne e sangue. Que não se tiram de um bolso, já prontas, mas das entranhas, que te fazem sofrer e rejubilar.

Eis que a Palavra de Deus vem sobre João, filho de Zacarias, no deserto. Não é o anunciador que leva o anúncio, é o anúncio que o leva, que o persegue, que o impele: e percorria toda a região do Jordão.

A Palavra de Deus está sempre em voo à procura de homens e mulheres, simples e verdadeiros, para criar inícios e processos novos. Endireitai, aplanai, tapai… Aquele jovem profeta algo selvático descreve uma paisagem áspera e difícil, que tem os traços duros e violentos da história: toda a violência, toda a exclusão e injustiça são montes a abater.

A abater é também a nossa geografia interior: um mapa de feridas nunca curadas, de abandonos sofridos ou infligidos, os medos, as solidões, o desamor… Há trabalho a fazer, um trabalho enorme: aplanar e tapar, para se ser simples e linear. E se eu nunca for uma auto-estrada, não importa, serei uma pequena vereda ao sol.

Evangelho que conforta: mesmo que os poderosos do mundo ergam barreiras, cortinas de mentiras, muros nas fronteiras, Deus encontra o caminho para chegar até mim e pousar-me a mão no ombro, a palavra no colo, nada o detém.

Quem conta verdadeiramente na história? Quem mora num palácio? Herodes será recordado apenas porque tentou matar aquele Menino; Pilatos porque o condenou. Conta verdadeiramente quem se deixa habitar pelo sonho de Deus, pela sua Palavra.

A última linha do Evangelho é belíssima: cada ser humano verá a salvação. Cada ser humano? Sim, exatamente isto. Deus quer que todos sejam salvos, e não se deterá diante de ravinas ou montanhas, nem sequer perante a tortuosidade do meu passado ou dos cacos da minha vida.

Uma das frases mais impressionantes do Concílio Vaticano II afirma: «Já que por todos morreu Cristo (32) e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido» (Gaudium et spes, 22).

Cristo alcança todo o ser humano, todos os seres humanos, e o amor é a sua estrada. E não há nada genuinamente humano que não chegue ao coração de Deus.


Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 08.12.2018

08 dezembro 2018

Pensamentos Impensados

Mutismo
Houve uma altura da sua vida em que Adão não tinha com quem conversar; nem sequer com os seus botões.

Ortografias
Não  sei como se escreve ssensssasssional, mas com tantos S algum há-de acertar.

Chapeladas
O único homem incapaz de manipular eleições seria Duarte de Almeida, o Decepado.

Turismo
Gulliver, nas suas viagens, teve imperfeições: muitos altos e baixos.

Ruídos
Quer fazer um barulho de 140 decibéis? Faça dois barulhos de 70 decibéis.

Eu penso logo
Por  amor de Deus é um argumento de quem não tem argumentos para o nosso argumento.

SdB (I)

Solenidade da Imaculada Conceição

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
o Anjo Gabriel foi enviado por Deus
a uma cidade da Galileia chamada Nazaré,
a uma Virgem desposada com um homem chamado José.
O nome da Virgem era Maria.
Tendo entrado onde ela estava, disse o anjo:
«Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
Ela ficou perturbada com estas palavras
e pensava que saudação seria aquela.
Disse-lhe o Anjo:
«Não temas, Maria,
porque encontraste graça diante de Deus.
Conceberás e darás à luz um Filho,
a quem porás o nome de Jesus.
Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo.
O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David;
reinará eternamente sobre a casa de Jacob
e o seu reinado não terá fim».
Maria disse ao Anjo:
«Como será isto, se eu não conheço homem?»
O Anjo respondeu-lhe:
«O Espírito Santo virá sobre ti
e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.
Por isso, o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus.
E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice
e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril;
porque a Deus nada é impossível».
Maria disse então:
«Eis a escrava do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra».

07 dezembro 2018

Textos dos dias que correm

A fusão das almas

«A fusão das almas é mil vezes mais difícil do que a fusão dos metais. Não nasce numa hora o verdadeiro amor nem das faíscas da fricção da pedra. Antes, nasce lento e propaga-se após uma longa cumplicidade que o reforça. Só assim se torna invulnerável ao tédio e aos abandonos.»

São duas vozes distantes cronologicamente e espacialmente, mas ambas provêm da cultura oriental e encontram-se no tema do verdadeiro amor. A primeira imagem para o descrever é a da fusão, usada pelo poeta turco Nazim Hikmet (1902-1963), que viveu longo exílio por motivos políticos.

Trata-se de uma ideia à primeira vista elementar, porque dever-se-ia saber que é árduo juntar duas almas, dois caráteres, duas experiências. E no entanto não nos importamos com isso e muitas vezes acreditamos que um casamento pode surgir de uma coabitação apressada e que uma amizade é apenas uma questão de sintonia.

Eis, então, a segunda advertência, assinada por Ibn Hazm (994-1064), literato árabe espanhol. «O amor não é – como se costuma dizer – fulminante: ainda que nasça de uma fulguração, deve ser construído e protegido, deve crescer e reforçar-se.

O seu caminho não conhece apenas a exaltação e a festa, mas também o abatimento e a rotina. Não é feito só de abraços e de carícias; atravessa igualmente o tempo da obscuridade e da frieza. Mas só se é temperado e constantemente alimentado consegue ser autêntico e perene».

Esta reflexão ilumina as ruínas de muitos casamentos falhados e revela impiedosamente a raiz profunda do seu desmoronamento. Mas resplandece também sobre muitos casais que na velhice conhecem igualmente a «fusão das almas».


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.12.2018

06 dezembro 2018

Da morte de uma prima

A 4 de Outubro deste ano escrevia um post que intitulei "Da arrumação da casa". Nele falava de uma pessoa da minha família por quem tinha uma amizade muito grande, amizade essa que sabia ser correspondida, mais por generosidade afectiva do que por meu merecimento. Nesse texto referia o facto de ter estado com ela nas vésperas de um AVC muitíssimo extenso e de lhe ter falado de assuntos práticos: contas bancárias, canos entupidos, vontades de futuro imediato. Não fui a tempo de fazer o que queria, que era conversar com ela sobre a vida, sobre o violoncelo do Pai, sobre os livros que uma Tia arrojada tinha na biblioteca ou sobre a família em geral. Morreu na 2ªfeira passada, sossegada, enclausurada num mundo próprio e desconhecido onde viveu durante pouco mais de um mês.

A morte desta pessoa provoca em mim um sentimento muito específico: é preciso notar que todos à sua volta suspiraram de alívio, estou certo, quando souberam da sua morte. Era, acima de tudo, o descanso dela, passado um mês de um sofrimento que não saberíamos avaliar e com um quadro cuja irreversibilidade era total. A última vez que a vi, juntamente com uma irmã e duas sobrinhas, foi nos anos dela. De volta de uma cama onde ela dormia sossegada, rimo-nos com histórias passadas e falámos sobre as famílias mútuas que não conhecíamos, talvez esperançados que ela ouvisse gargalhadas e identificasse vozes e, naquele casulo em que vivia, se regozijasse com isso. Só Deus sabe.

Volto ao sentimento que me invadiu com a morte dela. Todos os desgostos com mortes de pessoas que me são próximas ficam aquém do desgosto maior que já tive, pelo que me habituei a relativizar tudo, ainda que não conscientemente. Já não sei se consigo ter desgostos enormes com a morte de pessoas. Talvez sinta uma pena muito grande: pena pelo desaparecimento de uma pessoa de quem gostava e com quem me cruzei muito; pena pelo desaparecimento de uma pessoa com memória, com inteligência e mundo, com um sentido de humor por vezes cáustico e ligeiramente maldoso, que saberia contar-me coisas que ninguém me contará mais. Seguramente o desaparecimento de uma pessoa que tinha os olhos bem abertos para a vida e para as pessoas, mesmo que a sua visão das coisas fosse a sua visão das coisas. Mas até isso era uma fonte de interesse - os exageros, a ideia certa que tinha, na sua cabeça, dos comportamentos dos outros, dos romances dos outros, do feitio dos outros ou da fragilidade dos outros. Era aquele ligeiro desequilíbrio, também, que lhe dava graça e interesse. E talvez a maior pena que me invade seja a de não ter conseguido conversar mais com ela, não porque ache que as pessoas são imortais, mas porque me deixo embrenhar na confusão do quotidiano. 

Habituei-me a tentar encontrar uma história nas perdas pelas quais passo - e sei que nem sempre consigo. Um dia destes dizia a uma amiga, que passa por um momento afectivo difícil, que, se não conseguirmos construir uma história (e cada um sabe como constrói as suas), temos apenas um buraco na alma, um desgosto que nos corrói os ossos e o coração, uma corrida sem sentido para o desânimo. A pessoa de quem falo morreu numa altura estatisticamente certa da vida (se é que se pode dizer isso) pois já tinha 88 anos. Que história construo eu com o desaparecimento dela? Uma história muito simples, feita de memórias boas e divertidas, de esperança no bom entendimento de pessoas que poderiam estar mais afastadas. Acima de tudo, e de forma muito egoísta, uma história escrita por pessoas da mesma família que provavelmente nunca se cruzariam, cuja existência seria algo vago e desinteressante. 

Na sua existência acamada e silenciosa, seguramente sob o olhar atento do Deus em que ela acreditava piamente, ofereceu-me a possibilidade de conhecer família, de colar nomes a caras e a episódios. Na minha lista de agradecimentos acrescentarei isso, pois é para mim importante. Que reze por todos nós, lá no Céu onde está.

JdB

05 dezembro 2018

Vai um gin do Peter’s ?

NATAL ÚTIL E ORIGINAL JUNTO AO PRÍNCIPE REAL  

Para saborear a Lisboa dos monumentos antigos e lindos, que resistiram ao terramoto de 1755, seguido de tsunami, a aproximação do Natal convida a um brunch no claustro ou no salão-refeitório do Convento dos Cardaes, onde os muitos petiscos seguem à letra as magníficas receitas conventuais. Percebe-se por que este brunch atingiu as 5 estrelas na votação do Tripadvisor: 


A 300 metros do Príncipe Real, mesmo nas franjas do bairro dos antiquários, este Convento (1) tem, diariamente, chá & scones. Até o livro de receitas está disponível para partilhar os truques culinários das monjas que se instalaram na Rua do Século, em 1703. 

Até 16 de Dezembro, a Venda de Natal dos Cardaes dispõe ainda de bancas com presentes para todas as idades e bolsas, além da loja tradicional repleta de frascos de compota, geleias, chutneys, molhos exóticos, caviares maravilhosos e biscoitos de muitas variedades. As receitas da venda revertem a favor das cerca de 40 doentes que o Convento mantém a seu cargo, desde o século XIX.

A somar aos petiscos e presentes, também é possível visitar o espólio monumental daquele espaço carregado de história e de arte, sendo das poucas estruturas pré-pombalinas que ainda persiste. O edifício foi construído para as Carmelitas Descalças, a mando de D. Luísa de Távora, que veio a ingressar no Carmelo. A austeridade exterior esconde os tesouros de arte sacra do interior, onde sobressai a talha dourada ou os painéis de azulejos holandeses na Igreja maior, as telas setecentistas e oitocentistas por todo o edifício, os lambris de azulejo português, as imagens em madeira estofada, os tectos de masseira em caixotões e as inúmeras peças de mobiliário em madeira policromada como os pequenos oratórios e trípticos utilizados para o mesmo efeito [no gin de 17 de Nov.2014 descreve-se o edifício com mais detalhe].  

Igreja principal nas duas perspectivas: da clausura com o portal emoldurado por telas soberbas, e do altar-mor revestido a talha dourada. 

Na entrada pela rua do Século, recebe-nos o Pequeno dono da casa.

Num nicho, na escadaria do convento, destaca-se a imagem da Senhora do Loreto.

As maquinetas são outra das preciosidades guardadas neste Convento. 

Azulejaria e madeira policromada abundam. 

Pequeno oratórios em madeira policromada também pululam pelo edifício.
À esq.- destaca-se a tela de Nossa Senhora da Assumpção, da autoria do primeiro pintor português do barroco – Bento Coelho da Silveira (1617-1708).
À dta. – armário da Sala do Capítulo com altar no interior em rococó tardio. As figuras na face interna das portas personificam a Fé, a Esperança, a Caridade e a Perseverança.

Por vicissitudes da história, no século XIX, o convento começou a receber doentes cegas de condição desfavorecida, para as defender dos abusos e da miséria a que estavam votadas. A iniciativa partiu da III Condessa de Rio Maior, apoiada por um conjunto de senhoras, que fundaram a Associação Nossa Senhora Consoladora dos Aflitos, aproveitando o edifício deixado pelas Carmelitas. A partir de 1877, o cuidado das doentes passou a ser assegurado de forma permanente pelas Irmãs Dominicanas, que ali permanecem até hoje.

O próprio nome da associação – «Nossa Senhora Consoladora dos Aflitos» – resume bem a situação que se vive dentro daquelas paredes espessas do Convento. Por um lado, lembra até que ponto as Irmãs e as suas “protegidas” vivem no fio da navalha, dependentes dos donativos, do voluntariado que (felizmente) continuam a atrair e destas vendas ocasionais. Por outro lado, remete para a missão consoladora junto de enfermas crónicas, num dia-a-dia à mercê da generosidade (quando há…) do cidadão comum. No fundo, aflitas mas nada falhas de uma fé vigorosa, que acredita também no ser humano!  

Movidas por esse espírito de confiança, os Cardaes voltam a contar connosco para poderem manter uma casa, que nem mesmo após a implantação da República (1910) se extinguiu, apesar das tentativas drásticas das autoridades. Só que, mal expulsaram as Irmãs para as encarcerar no Arsenal da Marinha, levantou-se tal alarido entre as cegas ao cuidado da Ordem e os próprios vizinhos, que tiveram de autorizar o regresso da Congregação Dominicana. Dizem que pesou, sobretudo, o choro contínuo das doentes. Bastou-lhes 48 horas para demover uma polícia mandatada pelo regime anticlerical de Afonso Costa. Fica a pergunta: quanto tempo demorará a nossa geração – a das causas solidárias –  a sentir-se interpelada?... Uma resposta que implica escolhas concretas, muito a ver com o Natal.  

Também a nova coqueluche musical francesa tem a ver com o Natal. Aos 27 anos, Vianney assina a música mais vista no youtube, além de contracenar com Fanny Ardant numa peça que está a dar brado em Paris – «Ma mère est folle». Falta-lhe só estrear-se na Sétima Arte. Apesar do sucesso: continua a levar uma vida pacata, oposta à dos transgressores do hard rock, sem vergonha de ser o melhor da turma e de ter gostos simples. Estranham, porque: «não bebe, não fuma, não se droga, antes: canta, reza e o cinema estende-lhe os braços. A sua única insolência: ‘Je suis toujours heureux!’»(2) Soma uma segunda provocação: viajou até Estocolmo de bicicleta para encontrar a inspiradora do seu êxito musical – «Pas là». Generoso, quis brindar a multidão que se acotovela pela Gare de Lyon com uma interpretação, ao vivo, de «Pas là». Mesmo numa gravação de menos qualidade, fica bem evidente o alcance da surpresa, que chegou ao requinte de deslocar um piano para o átrio da mega estação de comboios. Como dizem os franceses – foi um presente «comme il faut»:


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
____________________________
(1)   Horários: o chá-15h30 às 19h00; os brunchs aos Sáb. e Dom.-12h00-15h00; a venda das 14h00-20h00. https://www.conventodoscardaes.com/visite.html.   Tel.  213 427 525. 
(2)   In «Paris Match» de 28.Nov.2018.

04 dezembro 2018

Duas Últimas




Mais um disco acabado de sair. Deixo-vos com Se Vieres, letra de Carminho e música do Fado Santa Luzia, e O Começo, com letra de Pedro Homem de Melo e música do Fado Bizarro.

JdB

03 dezembro 2018

Textos dos dias que correm

Advento: Semente de um tempo novo

De novo o advento. Regressar ao princípio. Refazer, como novidade absoluta, o caminho antigo. Assumir a transumância como método. Ser nómada em obediência à voz antiga, aquela que sobrevive entre uma multidão de ruídos, o apelo do deserto, «endireitai…», como quem diz, «despertai!».

Começar de novo. Hoje é sempre a primeira vez. Avançar. Assumir a tonalidade primeira, o acorde fundamental a partir do qual se compõe um hino à mais pura das alegrias. E não ter medo da alegria.

Ser tela onde a palavra já dita e redita mil vezes – amor, perdão, paz… - se desenha como Boa Nova. Hoje, de novo, porque amanhã não sei o que será.

Procurar os fios invisíveis que ligam a terra ao céu. Reparar as ligações que me ligam a ti e a Ti. E recolher as sementes da eternidade espalhadas, em noite de vendaval, por terras desconhecidas. Encher a taça e voltar a semear. Pacientemente. Com esperança. Basta a esperança.

Porque este tempo é um dom no qual se desconstrói e reconstrói a memória. Porque neste tempo voltamos a ser como crianças que andam à roda com as mesmas perguntas: «Onde fica Belém?», «quem são os homens do Oriente?», «quando é que chega o Natal?». E espreitamos, através da fé, o horizonte desconhecido à procura desse lugar, simples e despojado, onde Deus se fez homem.

Porque neste tempo somos de novo o adolescente sonhador que acredita no cumprimento da promessa repetida de geração em geração, «Amanhã é Natal, Ele há de vir de novo».

Porque neste tempo não queremos ser como casas pesadas de janelas fechadas e atulhadas de mobiliário comprado em tempo de promoção.

Este é o tempo de escavar as camadas da compreensão da verdade e aceder, ainda que de «maneira imperfeita», com uma fé ainda muito imperfeita, às razões do mistério de Deus feito menino.

É o tempo de aceitar ser um rebento enxertado no ramo de uma história milenar cujos frutos, sabe Deus, guardam as sementes de um novo advento.


P. Nélio Pita, CM
Publicado em 01.12.2018

02 dezembro 2018

1º Domingo do Tempo do Advento

EVANGELHO – Lc 21,25-28.34-36

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas
e, na terra, angústia entre as nações,
aterradas com o rugido e a agitação do mar.
Os homens morrerão de pavor,
na expectativa do que vai suceder ao universo,
pois as forças celestes serão abaladas.
Então, hão-de ver o Filho do homem vir numa nuvem,
com grande poder e glória.
Quando estas coisas começarem a acontecer,
erguei-vos e levantai a cabeça,
porque a vossa libertação está próxima.
Tende cuidado convosco,
não suceda que os vossos corações se tornem pesados
pela intemperança, a embriaguês e as preocupações da vida,
e esse dia não vos surpreenda subitamente como uma armadilha,
pois ele atingirá todos os que habitam a face da terra.
Portanto, vigiai e orai em todo o tempo,
para que possais livrar-vos de tudo o que vai acontecer
e comparecer diante do Filho do homem».

01 dezembro 2018

Pensamentos Impensados

Ex...citações
Forcado cita o touro. Touro dá meia volta e vai-se embora. Fim de citação.

Dois em um
Alguns deputados quiseram estar em dois lugares ao mesmo tempo. O dom da ubiquidade não é para qualquer pessoa. Santo António conseguiu por uma boa causa. Os deputados, a ser verdade, cometeram crime de peculato.

Comes e bebes
Quando se junta a fome com a vontade de comer, deve tomar-se uma pastilha de fastio.

Castigos
O PAN autoria chicotadas psicológicas?

Escanhoadelas
A Rainha está sempre bem barbeada porque God shave the Queen.

Olfato
Todos os cadinhos vão dar aroma.
(lema dos mestres perfumistas)

SdB (I)

30 novembro 2018

Dos profetas da graça

Há uma certa ideia, enraizada fortemente ainda que sem raizes científicas, de que se falarmos muito numa coisa essa coisa acontece. Normalmente falamos de coisas más: se falarmos muito numa doença talvez essa doença apareça; se falarmos muito num comportamento desagradável que se avizinha talvez esse comportamento se verifique. O poder desse oráculo é-lhe todo dado pelo maligno, está todo ele revestido de cheiro a enxofre. A doença de alguém pode acontecer se falarmos muito nela, mas não é por falarmos muito na cura de alguém que essa cura aparece. Pensamento positivo é outra coisa. Isto de que falo é apenas a probabilidade (ou a certeza nalguns espíritos mais fortes) de alguma coisa má acontecer se falarmos muito na possibilidade dessa coisa má acontecer.

Não sei se um profeta fala do futuro, daquilo que pode vir a acontecer - e normalmente o profeta não é um homem todo ele revestido de luz e brilho, muito pelo contrário - ou se fala para o futuro. Há a expressão profeta da desgraça, mas não há a expressão profeta da graça. Significa isto que falar do futuro (ou falar para o futuro) é sempre invocar o chifrudo, ou pelo menos deixar que ele se coloque de permeio. Falar para a frente (ou falar da frente?) nunca é um acto de virtuosismo ou de confiança - é sempre um alerta ameaçador, uma aviso para o castigo que se adivinha. Embora o dicionário diga que o profeta é alguém que prediz o futuro por inspiração divina, não me parece que seja verdade. 

Não se pode falar do passado que é sinal de imobilismo; não se pode falar do futuro que o maligno arrebita a orelha, sobretudo se falarmos muito nele. Resta-nos o presente, esse instante que se repete até à exaustão, que tem a duração de um nano-segundo, talvez menos, porque passa logo a ser passado. Resta-nos pouco do que falar, e é por isso que me dedico a isto. A alternativa poderia ser recomeçar a fumar, mas acabaram com os cigarros sem filtro.

JdB

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