31 março 2010

Good Morning Sunshine


So I’m not allowed to wear skinny jeans because I have hips? No!
Shakira was right, hips don't lie!

“As long as you know men are like children, you know everything!"
Coco Chanel


3rd Must Have:
A pair of skinny jeans


TdB

Pensamentos impensados

Atendendo a que todos os meses têm um signo, qual será o signo do 13º mês?

Lesseps, após o extraordinário trabalho que teve com a abertura do canal, teria exclamado: que grande canudo! Na altura foi considerado um dito soez.

Se se chocarem ovos de perdiz, já pôdres, será que nascem perdizes "faisandés"?

Tentaram promover uma exposição pornográfica mas foi vetada; foi uma espécie de veto de castidade.

Todos aqueles que não se conformam com a maneira de viver da actual civilização, vão buscar ideias ao famosa manual Cem Maneiras de Viver Sem Maneiras.

30 março 2010

Jardim das Oliveiras

Foi chamado ao templo pelos doutores da lei. Pediram-lhe que entregasse aquele a quem chamava de Mestre. Em troca, receberia trinta moedas de prata. Era esse o preço da traição. Uma bolsa cheia em troca de uma vida.

Deram-lhe três dias para dar uma resposta. Era o tempo que faltava até à madrugada antes da Páscoa. Tinham medo que o povo se revoltasse quando o prendessem, por isso preferiam fazê-lo de noite, quando todos dormissem.

Por um lado pesava-lhe o facto de entregar um homem justo. Sabia o que o esperava, e não via nele razão para uma morte tão demorada e dolorosa.

Por outro lado, já há algum tempo que certas dúvidas o preocupavam. De que outro modo poderiam ter a terra prometida, de que ele tanto lhes falara, se não derrotando os romanos que estavam no poder? Se ele se intitulava rei, onde estavam as suas riquezas? Onde estavam os exércitos prontos a combater e a recuperar a terra que lhes pertencia? Porque perdia tanto tempo a pregar, quando poderia estar a preparar a batalha?

Chegou, por fim, à conclusão de que este não era o profeta que tanto esperava. E sentiu-se desiludido. Mais que isso, sentiu-se traído. Tinha depositado todas as suas esperanças neste homem a quem chamavam messias. Todas em vão. Isto, juntamente com as trinta moedas, era suficiente para o entregar.

Levou os doutores da lei até ao Jardim das Oliveiras. Sabia que o encontraria aí, a rezar. Quando lá chegou viu-o de pé, no meio de alguns discípulos que, tal como o povo, também dormiam. Parecia ter envelhecido vários anos desde a última vez que o tinha visto, na ceia dessa noite. Tinha os olhos inchados e os traços do rosto vincados pela angústia. Dirigiu-se a ele para cumprir o que tinha sido acordado.

'Judas, é com um beijo que entregas o filho do homem?'

SdB (III)

28 março 2010

Músicas dos dias que correm

Domingo de Ramos

Hoje é Domingo de Ramos e eu, ainda que não repetindo a fórmula com a frequência de outros dias, não me esqueço da minha condição de católico. Dada a extensão do Evangelho, optei por escolher apenas um trecho que, ano após ano, não deixa de me tocar.
A semana que agora começa é para nós, crentes, a liturgicamente mais importante do ano. Que a saibamos viver com um coração renovado. Uma Boa e Santa Páscoa para todos.

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

N Levavam ainda dois malfeitores
para serem executados com Jesus.
Quando chegaram ao lugar chamado Calvário,
crucificaram-n’O a Ele e aos malfeitores,
um à direita e outro à esquerda.
Jesus dizia:
J «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem».
N Depois deitaram sortes,
para repartirem entre si as vestes de Jesus.
O povo permanecia ali a observar.
Por sua vez, os chefes zombavam e diziam:
R «Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo,
se é o Messias de Deus, o Eleito».
N Também os soldados troçavam d’Ele;
aproximando-se para Lhe oferecerem vinagre, diziam:
R «Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo».
N Por cima d’Ele havia um letreiro:
«Este é o rei dos judeus».
Entretanto, um dos malfeitores que tinham sido crucificados
insultava-O, dizendo:
R «Não és Tu o Messias?
Salva-Te a Ti mesmo e a nós também».
N Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o:
R «Não temes a Deus,
tu que sofres o mesmo suplício?
Quanto a nós, fez-se justiça,
pois recebemos o castigo das nossas más acções.
Mas Ele nada praticou de condenável».
N E acrescentou:
R «Jesus, lembra-Te de mim,
quando vieres com a tua realeza».
N Jesus respondeu-lhe:
J «Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso».

N Era já quase meio-dia,
quando as trevas cobriram toda a terra,
até às três horas da tarde,
porque o sol se tinha eclipsado.
O véu do templo rasgou-se ao meio.
E Jesus exclamou com voz forte:
J «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito».
N Dito isto, expirou.

27 março 2010

A esperança de Margarida (fim)

Todos os dias levantava-se e sentia um prazer ingénuo, quase infantil, em ir de t-shirt branca com as mãos nos bolsos, ao Café Central do Aníbal ler o jornal e ouvir os velhos dizer que o Salazar é que era bom e que deviam pôr uma bomba em tudo o que não funcionasse, como a Caixa de Previdência ou o Notário! Rapidamente se tornou no “aí Jesus” das solteiras todas, claro! Um dia chegou ao café como sempre por volta das dez, dez e qualquer coisa, pegou no jornal e ia sentar-se quando sentiu uma mão forte a bater-lhe no ombro.

Torcato Pereira mantinha-se o cromo de serviço na Cabreira, o seu amigo com quem tinha subido aos muros, com quem se ria do Abade e com quem enganava pelas noites a irmã para irem correr todos os bares próximos possíveis de Simca enquanto era novo e ambos bêbados, claro! Torcato tinha-se conseguido manter exactamente o mesmo depois daqueles anos confusos na vida dos dois: sempre grande e corado a rir e com as mangas arregaçadas, a camisa aberta até ao umbigo e disponível para beber copos onde fosse e com quem fosse. Tinha-se tornado agente imobiliário naquela terra que não parava de crescer e toda a Cabreira tinha-se habituado a falar-lhe sempre que alguém queria comprar ou vender alguma coisa. Tinha ganho muito dinheiro com os lotes da quinta da Condessa e achava que os sobrinhos dela eram uns selvagens. Conhecia toda a gente e ria-se à grande facilmente.

Não pediram contas um ao outro quando se encontraram, apenas trocaram um olhar terno que apenas o tempo explica, no meio de palavrões, janelas fechadas, madeiras de mesas e de bancos sempre com oleados de morangos e melancias com quadradinhos, calendários de mulheres nuas a venderem pneus pelas paredes e pelas portas; tudo entre gritos, abraços e gargalhadas! Aquele palerma tinha voltado! Torcato tinha um Mitsubishi Colt já fora de moda, mas que ele achava que funcionava imenso com as pequenas, era estiloso, dizia! Mas na sua vida não tinha pequenas nenhumas, apenas uma namorada persistente: a Ilda Carrelhas que levava tudo à sua frente com berros e palavrões e que era dona do primeiríssimo supermercado da Cabreira. Fazia um esforço daqui à China para ir às terças a casa do Abade Afonso, que era o que a tornava respeitável como mulher tardiamente solteira e o seu contributo para o lanche resumia-se a passar a mão pela prateleira das bolachas e levar um pacote de Marias ou de Água e Sal ou o que tivesse mais por ali, o que fosse! Irritava-se sempre no momento em que se tinha de se arranjar, vestir coisas que lhe caiam mal com flores ou folhos e sapatos apertados que lhe deviam dar o ar que era necessário naquelas terças tormentosas em que o Torcato a levava, a zelar pela dignidade de todos, a casa do Abade para aturar aquele mulherame cada semana. Mas Ilda tinha sempre muito presente no seu peito que a grandeza e o respeito que lhe eram devidos se devia a outros mundos e a outras entidades.

Mas era certo que chegada lá via-se no meio das amigas que sempre conhecera desde que nasceu com sangues e idades confusas e eram com quem contava no fundo. Sentia-se bem e todas gostavam daquela querida que tinha uma atitude de mulher divorciada sem o ser, porque não tinha vergonha de se deixar amar, mesmo por um atolambado que todos também adoravam como o Torcato. Respeitava o calote de todas, fosse porque precisassem ou porque deixavam andar. Era a única entre as confrades das terças que não tinha vergonha de gritar que lhe doíam os calos e que estava farta da vida, porque sabia que todas a compreendiam e se sentiam por perto, mas não diziam. Afinal a querida Ilda era apenas dona do supermercado, por isso identificavam-se, mas não se acusavam!

A propósito, A Esperança da Margarida ou Margareth’s Hope é um chá de sabor delicado, muito caro e famoso mundo dentro e também atractivo, dizem os rótulos para quem percebe; de folha verde acastanhada a que se juntam outras folhas quaisquer colhidas no princípio do Verão. É feito na Primavera entre Abril e Maio, por isso. Foi sempre de longe o chá favorito do Abade Afonso Bento, que esperava pelas terças-feiras em que todas se matavam para o conseguirem nas mercearias chiques de Lisboa ou do Porto, menos a Ilda, claro, que achava que os pacotes coloridos que tinha no seu super chegavam, sobravam e recomendavam-se.

Fim

(para a semana são apresentadas fotografias que, à semelhança deste conto, fazem também parte do "Splendid Garage")

26 março 2010

polaroids de figuras extintas

#4 - luís

'estás aqui estás a levar, rais'parta este diabo!'
deve ter sido o lindo cartão de visita que te ofereci,
enquanto as pernas ganhavam balanço para
o massacre que se seguiria - botas de caçador, minhas,
contra pernas de sedutor em formação, tuas.
há amizades assim, nascidas de um duelo.

das amizades mais fortes, a nossa não foi a mais
improvável, mas talvez a mais estranha, naquele
sentido em que se a amizade tem algo de amor,
bem posso dizer que te odiei por te amar, sem o saber,
amei-te enquanto e porque te tive, como nos livros de psicologia,
e de novo te odiei, quando enfim te perdi - coisas da vida.

mas não vamos ficar por aqui, só memória e tristeza,
quando tanto houve de primavera nesses invernos juvenis,
tanta lenha e tanto verão, dias lentos e lânguidos,
mesmo quando chuvosos - que a juventude tudo embala,
brasa que incendeia palha, água, tudo o que passa,
matéria transitória que contudo, e contra tudo, permanece.

la dolce vita, filmada com os meios que havia, poderia
bem ser o guião desses dias esplêndidos, noites de folia
e rapina, embriagados de nós próprios e de imaginação,
todo um filme que só nós - e mais um ou outro - víamos,
alheios à suave despressurização dos bosques em volta,
ausentes da corrosão do tempo, essa gangrena em combustão.

éramos felizes, e imaginávamos mil aventuras, que eram
na realidade trinta e duas (mas quantas são, hoje em dia?),
éramos alegres, e beberricávamos cem gê-tê-is, que eram
na verdade quatro ou cinco (quantos são, hoje em dia?),
éramos jovens, e namoriscávamos vinte miúdas, que eram,
há que dizer, uma ou duas (são quantas, hoje em dia?).

felizes, alegres, jovens - com saúde, e era mais do que
a santíssima trindade (que me desculpem os leitores).
assim eram os dias, sublimes, envoltos em perfeição,
mergulhados em possibilidades, abertos ao mundo,
sem traumas, passados, mágoas, revoltas, náuseas,
- dois felizes rapazes, segurando a mão dos seus amores.

hoje, perdi-te. hoje, perdeste-me. complicadíssima operação
esta, que não se ensina em universidade nenhuma da vida,
por ciência ou arte - um nada gentil mecanismo de subtracção.
ambos navegamos agora em mar alto picado, coisa suicida,
deixando para trás juventude, beleza e um naco de coração,
resta a memória rasgada na ardósia e na pele, a traço de giz.

(ai, luís, luís. que foi isso que tu me fizeste? que foi isto que eu te fiz?)

gi.

25 março 2010

Deixa-me rir...

Uplifting!! É a palavra que me ocorre quando ouço esta música e vejo o George Michael (e outros) em palco. ADORO – em tamanho 72 - estas multidões em delírio, em perfeito uníssono musical e de sensibilidade. Adoro o palco, os efeitos de luz, as imagens projectadas, a encenação, o exagero. Adoro a sensação de que o “meu” tempo parou numa outra dimensão onde tudo e todos se diluem numa espécie de irmandade que comunga dum mesmo gosto, dum mesmo intenso prazer … não há como um bom concerto ao vivo! Não há espectáculo que se lhe iguale. Para mim, claro. Acho que ainda guardo este traço da minha já longínqua adolescência. E estou em crer que nunca o perderei… o que se pode vir a revelar patético no futuro…. Enfim, logo se vê…

Aqui fica o George Michael Live, em Earls Court, Londres, 2008, cantando I’m Your Man. Gosto de n músicas dele, acho-o fantástico em palco, mas confesso que tenho um fraquinho pelo I’m Your Man. Não pela mensagem (sei que não faço parte do público a quem esta música se destina….) mas pelo ritmo, sempre o ritmo. O elemento mais importante na música. Para mim, evidentemente.

Por isso, dancem, cantem e, como repetidamente diz o dono deste estabelecimento, “façam o favor de ser felizes” (quem dizia isto originariamente: o Raul Solnado?).


pcp

PS: talking about rhythm, ouçam “Faith”, também no contexto deste concerto.

24 março 2010

Vai um gin do Peter's?

Quem diria que pintura do séc. XVII-XVIII podia acumular sentido de humor e sedução? Ainda por cima em naturezas-mortas? Mas vou mais longe, assumindo que é, precisamente, por serem naturezas-mortas!
Experimentem dar um salto até à Gulbenkian para ver «A Perspectiva das Coisas. A Natureza Morta na Europa. Primeira Parte: séc.s XVII e XVIII»(*), e assim obterem a vossa perspectiva… Deixo também o título, em inglês, por corresponder, na perfeição, ao embate real do visitante com as pinturas ali expostas: «In the presence of things»!
O que se pode dizer de uma exposição que junta telas assinadas por Rembrandt, Goya, Meléndez, Oudry, Abraham Brueghel (o da 3ª geração), Chardin ou Josefa de Óbidos (ou Ayala), vindas do Louvre, Prado, The National Gallery, Rijksmuseum de Amesterdão, Museu de Pintura de Berlim, Museu Nacional de Arte Antiga, entre outras colecções? A forma expositiva tem a excelência a que a Gulbenkian nos habituou, com óptimas legendas e grupos temáticos bem sugestivos, para se explorarem: os arranjos florais, as mesas de festa, os troféus de caça, os objectos de valor com ostentação de raridades, além dos espantosos “Gabinetes de Curiosidades”, muito em voga na época, para terminar na reflexão mais filosófica: Questões de Vida e de Morte e na incontornávelVanitas”, evocando um dos livros mais poéticos da Bíblia, o Eclesiastes.
Em números, são 71 pinturas, provenientes de 34 Museus e de 11 colecções privadas, em que apenas uma é património da Gulbenkian. Dos artistas expostos, outra raridade é o facto de haver quatro pintoras: Josefa de Óbidos, Clara Peeters, Louise Moillon e Fede Galizia!
Numa definição à letra, as naturezas-mortas excluiriam a presença explícita do ser humano, dando-se preferência ao mundo inanimado, o que levou à subalternização desta temática, em muitas épocas da história. Mas o virtuosismo de pintores adeptos do tema, assim como o enriquecimento da sua simbologia, a par dos novos gostos sociais, com a descoberta de terras longínquas e de preciosidades exóticas, ou ainda a moda dos inventários e de estudos de ciências naturais nos primórdios do enciclopedismo, parecem ter favorecido as naturezas-mortas, sobretudo a partir do séc. XVI. Aliás, a beleza dos brilhos de muitas delas é hipnótica. São verdadeiros diamantes...

Willem Kalf (1619-1693), Natureza-Morta com Armadura, Armas de Guerra e Objectos de Aparato, 1643-45.

É curioso observar que os pintores de objectos incluem, com mais frequência do que se esperaria, a presença de seres vivos, através de paisagens luxuriantes, animais atentíssimos a cobiçar uma apetitosa presa já morta e até mesmo figuras humanas, de forma mais ou menos velada, em estilo de charada. Ao lado de troféus de caça, que fariam as delícias de qualquer chefe de cozinha, pousa um garboso pavão, ou espreita um gato a assumir a tentação do próprio espectador, além de borboletas, gulosamente, a esvoaçar por entre as flores frescas do jarrão. Ainda assim, a presença humana é a excepção. E nas excepções, Rembrandt destaca-se, com a acutilância que lhe conhecemos a observar a realidade. O tema é forte e contrastante: num primeiro plano, duas pavoas recém-mortas, sob o olhar prazenteiro de uma menina pequena, mais curiosa que intimidada pelo sangue fresco, ainda a escorrer. As pavoas são, assim, duplamente, observadas, de dentro e de fora do quadro, nós em contraponto à menina. Outras excepções, muitíssimo dissimuladas, são as telas de Abraham van Beijeren e de Clara Peeters, com os reflexos dos pintores espelhados nas superfícies curvas de jarros de prata lustrosa, num efeito de dupla assinatura da obra. Há depois mais excepções, por exemplo, nos retratos de pessoas, como se em pintura o retratar de um retrato (um quadro dentro do próprio quadro) pudesse distar do registo “directo” de uma figura na tela? Digamos que resulta numa certa ironia em cadeia!


Abraham van Beijeren (1620-1690), Natureza-Morta de Aparato, 1655.

O humor nas várias gradações, da graça subtil de uma mesa suculenta… menos alcançável do que gostaríamos, à observação mordaz e crua sobre o tempo de vida a esfumar-se, é um ingrediente expectável numa temática que, frequentemente, intercepta a linha de fronteira entre a vida e a morte, exprimindo a precariedade da existência. Mas não se imagine que a tristeza ou a frustração pela fugacidade da vida impera, porque o tom festivo – ainda que em vários casos haja um misto de sabor agridoce, pelo fim-à-vista – é dos leit-motivs do acervo exposto, como o evidenciam os temas propostos na exposição: Deleite para os Sentidos, Festim para os Olhos, Momentos preciosos, Doçarias, que nos oferecem fantásticos menus degustação, reveladores das diferenças entre o Norte e o Sul da Europa.
No gosto mediterrânico, abundam as frutas, os legumes frescos, o pão, a doçaria caseira a fazer juz a uma ementa saudável, light, de cores suaves. A sobriedade prevalece. Na Flandres e arredores privilegia-se a ementa farta, de aparato, com boas peças de caça, variedades infinitas de queijos e fumados. A superabundância parece ser a mensagem de bom acolhimento aos visitantes da casa onde a tela se exibe.
O simbolismo riquíssimo e quase encriptado(**) dos objectos representados nas telas, acentua-se também com a própria mise-en-scène e com a escolha criteriosa dos elementos retratados. Nada é inocente! O pavão de cores ricas em contraponto ao cisne branco de cabeça pendente, num jardim luxurioso, não se reduz ao virtuosismo do pintor a trabalhar minuciosamente as penas das diferentes aves, numa a opulência dos tons e na outra a textura macia mas monocromática; também os reflexos da luz refractada e multiplicada entre a transparência dos cálices de cristal e o ouro reluzente dos metálicos na «Natureza Morta com um Cesto de Copos» (Sébastien Stoskopf) não se cingem ao mero tecnicismo do jogo de luzes e caracterização dos materiais luminosos, como se depreende do copo partido do lado esquerdo e da tampa de um cálice dourado, triunfal, à nossa direita; o contraste entre a beleza fulgurante da natureza, de um outro nível de criação, a submergir a fragilidade das criações humanas, também possui uma metáfora explícita… Os exemplos são infindáveis. Num dos expoentes da ironia, e também da lucidez, é a própria arte que aparece, não apenas no seu esplendor, mas igualmente no crepúsculo a que está sujeita toda a existência. São disso expressão os instrumentos musicais virados para baixo ou abandonados no chão, os livros em avançado estado de degradação, a escultura de um espinho que atormenta um pobre rapaz. Também as armaduras ou os elmos jazem abandonados, porque todo o poder terreno é de curta longevidade… Enquanto a areia na ampulheta se vai escapando, sem possibilidade de recuo.
Na mesma linha de demonstração clara da efemeridade, várias jarras aparecem tombadas, apesar de lindas, as toalhas arrepanhadas em molho (naturalmente, onde o seu colorido e volumetria surtem melhor efeito cénico), os copos virados ou quebrados ou quase vazios. Parecem a versão pictórica da afirmação de Oscar Wilde sobre o facto de a beleza durar… uns minutos! É claro que o sentido decorativo da disposição das peças parece justificar os objectos caídos e as tapeçarias enroladas assimetricamente num dos cantos, conferindo movimento ao todo, em geral, realçado sob fundo escuro. Estamos em pleno barroco e a gestão muito cuidada da luz e dos reflexos, a exuberância das texturas e das cores, estão na ordem do dia.
Mas vale a pena voltar ao início: numa outra perspectiva, há também a exaltação da intensidade do instante. Da força do presente. Do gozo do prazer imediato. Há uma tela de Meléndez que exprime, espantosamente, a instantaneidade, com a chávena do chocolate quente virada, mas ainda sem o conteúdo ter desabado… apesar da sua liquidez ser evidente nos pingos que sujam a chocolateira prateada. Quase meio século antes da invenção da fotografia, o registo em tela destes instantâneos, que imobilizam centésimos de segundo, é hiper ousado!

José López Enguídanos (1760-1812), Natureza-Morta com Serviço de Chocolate, 1807.

Outra das ironias das naturezas-mortas – ainda que nem sempre intencional – é o suposto realismo, a camuflar, afinal, um artificialismo notável e até um estilo onírico, de forte carga simbólica, que só pelo hábil jogo de verosimilhança com a realidade se confundem com a sua representação directa. Puro ilusionismo! Quantas das flores que posam, lado-a-lado, nas jarras, são de épocas do ano incompatíveis e distâncias geográficas inconciliáveis, à época! A exuberância das raridades e de jóias exibidas em Gabinetes de Curiosidades não passam de realidades virtuais… só acessíveis em tela! Mas seria a peça do ourives mais preciosa que o seu duplo, na tela? Goethe considerou que não, formulando o expoente máximo que a pintura pode atingir, ao comentar uma natureza-morta atribuída a Willem Kalf (com obras em exposição): «Se tivesse de escolher entre os vasos dourados e a imagem, escolheria a imagem


Willem Kalf (1619-1693), Natureza-Morta com Náutilo, Taça Chinesa e Outros Objectos, 1662.

Bom, não sei se resultará numa boa ou numa má notícia dizer que cada quadro conta uma história, transmite uma mensagem, pressupõe uma mundividência própria. Diria que se avançarem para o estilo de investigação Poirot ainda se divertem mais… com cada tela. Boas descobertas!

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
__________________
(*) Patente ao público até 2 de Maio, na Galeria de Exposições Temporárias da Sede. Horário de Terça a Domingo:
10h00 às 18h00. Preço: 5€. Óptima documentação: folheto gratuito e catálogo a 40€, na livraria.
(**) O significado simbólico difere conforme o nível de leitura a privilegiar, entre o político, moral, religioso ou
social. Dois exemplos muito comuns: a
rosa evoca as duas principais famílias inglesas: Lancaster (púrpura) e York (branca), ou o amor e a paixão com conotações diversas dependendo da cor, além de ser um símbolo mariano; a flor-de-lis representa a monarquia francesa, estando ainda associada à nobreza de carácter e , simbolicamente, indica o Norte, além de estar associada à pureza de espírito , à virtude e de ser a principal insígnia do escutismo mundial. Não só as flores, como os frutos, os animais e as próprias cores estão associados a uma simbologia complexa.

23 março 2010

Se não fossem eles, não chegava ao chão...

Os meus pés não têm lugar definitivo. É regra. Eventualmente, acabo por os arrecadar da melhor forma que me ocorre, convencido que é perfeita e definitiva, mas dois minutos bastam para me provar o quão enganado eu posso estar em relação aos ângulos certos. São grandes demais, as certezas e os pés.
Vezes há em que são pontadas irracionais e persistentes que me perturbam o conforto, outras é um formigueiro fininho que se impõe, meio dormente meio latejante, e me obriga a rever prioridades de arrumação que antes me tinham parecido irrefutáveis. Podias dormir em pé.
Ninguém consegue dormir aqui, independentemente da verticalidade adoptada.
O segundo dedo é magro e comprido como o indicador de uma mão de gente, ou pelo menos de uma que, nascida inteira, se tenha aguentado assim até ser usada para qualquer comparação. É maior que o primeiro, uma raridade anatómica que exibo com orgulho sempre que o calor pede uns chinelos de enfiar. Segundo não me lembro quem, é sinal que sou bom a tomar decisões, parvoíce, portanto, que eu nem sequer acerto no assentar dos pés. Ao menos é engraçado.
Ao menos que sirva para alegrar alguém.
Gosto de estar sossegado, não me apoquento facilmente e até sei esperar as demoras sem impaciência, mas nunca sei onde meter os pés. Escolho sempre mal e acabo invariavelmente por ter de aguentar um qualquer desconforto, por vezes durante pequenas eternidades, o que resulta em protestos físicos visíveis, vermelhidões e suores estranhos, rapidamente atendidos ou firmemente ignorados, dependendo da evolução das circunstâncias. Pára quieto com os pés! Tens de ir fazer xixi?
Desde pequenino que é assim.
É costume, como se sabe, arranjar às regras uma ou outra excepção, e neste meu caso podológico não é diferente. Se foi ou não o acaso que os fez encontrarem-se, isso é matéria para outra noite qualquer, a verdade é que o descanso do guerreiro está no enrolar instintivo, numa fuga ao desamparo e num anúncio certo do fim da jornada, dos teus pés nos meus. Aquece-me os pezinhos.
São tão bonitos os diminutivos, assim ao ouvido.

ZdT

22 março 2010

Preguiça

Há, em todos os amores nascidos entre dois quase desconhecidos, um não sei o quê de misterioso, de inexplicável, de impalpável. Podem ser acasos que têm a sua existência no espaço de um instante: dois olhares que se cruzam numa multidão, uma madeixa caída sobre o enigma de um olhar penetrante, um sorriso cúmplice numa monotonia generalizada. Um segundo depois e o mundo já girou, e o que era encanto e fascínio volta a ser aborrecimento e rotina.

Jorge e Odete tinham-se apaixonado um pelo outro sem que ninguém vislumbrasse um motivo, ainda que não tivesse de ser lógico. Encontraram-se pela primeira vez em casa de amigos comuns. Nunca ninguém tinha achado grande graça ao estudante de Filosofia em fase de desenvolvimento de uma tese chamada “Os pecados mortais e o seu enquadramento na sociedade de hoje”. Era um rapaz desinteressante fisicamente, com um cabelo num permanente desalinho, uma roupa pingona à qual era impossível associar uma moda ou uma época, mas não a velhice e o pouco cuidado.

Ela, pelo contrário, era uma mulher bem parecida, assediada em permanência por gente que circulava em carros baixos a velocidades elevadas e conhecia as estância de esqui como uma intimidade que esmagava. Tinha uma figura que se aproximaria da perfeição, e uma cara tão interessante que até um pequeno sinal no queixo suscitava sensualidades inexplicadas. Ninguém percebia a motivação dela, o que lhe suscitara uma centelha de amor

O que vês nele, Odete? Que homem mais desinteressante...

E Odete respondia com oferecendo um sorriso e retendo as palavras.

Era um par improvável, mas mesmo assim um par, porque apareciam juntos em todo o lado - festas, jantares sociais, eventos culturais, premières de filmes. Os transeuntes fixavam-se na beleza dela, na sua frescura, na sua aura. Beleza que parecia maior porque há encantos que não só têm um valor absoluto – Odete era muito bonita, em qualquer lado -como têm um valor relativo – Odete era muito mais bonita do que Jorge.

As marés seguiam as suas rotinas mansas, as estações do ano prosseguiam com uma regularidade de relojoaria suíça, a lua mudava de fase seguindo uma regra milenar. Um dia, Jorge apareceu numa festa e revelou-se um homem elegante, bonito, com uma farpela clássica que lhe assentava como roupa por medida num modelo de elite. As pessoas paravam para olhar, sobretudo para avaliar a mudança que parecia radical: o cabelo bem cortado e penteado, umas calças clássicas e bem vincadas, uma camisa igual à de qualquer príncipe.

O que lhe fizeste, Odete? Está um homem tão bonito...

A rapariga sorria e olhava para o Jorge com um misto de admiração e erotismo.

Posso usar esta expressão porque já a discuti com ele no âmbito da sua tese de mestrado. O Jorge, de facto, teve de se arrepender de um grande pecado. É honesto, correcto, com um feitio cordato e não faria mal a ninguém. Mas comete um pecado mortal – a preguiça.... Nem sempre há gente feia, por vezes há gente preguiçosa. E isso também é pecado?

JdB

21 março 2010

Reconciliação - desejar mudar e mudar mesmo

« Há tanto tempo que não me confesso que já nem sei… já nem sei como se faz! Até parece que mudou de nome, oiço falar de reconciliação… mas a verdade é que até me confesso muitas vezes a Deus e Ele lá sabe…. » Quantas vezes ouvimos este desabafo ou não será um grito a pedir ajuda? E também é certo que vemos muita gente que se vai confessar, com frequência até, e nem por isso tem cara de reconciliada.

Na verdade, de um modo ou de outro, andamos todos longe como “filhos pródigos” a esbanjar e a estragar talentos, bens e relações num novo riquismo próprio da nossa época consumista mas recheada de bolsas de miséria. Fazemos de conta ou fazemos o que queremos, como pensam alguns, achando-se evoluídos sem precisar de perdão nem remissão…. Outros, porém, temem. E, nem uns nem outros, se mostram muito felizes, nem são cartaz de que a coisa vai bem. No fundo, todos desejamos um mundo melhor, mais reencontrado consigo mesmo, com os outros, com a natureza, com Deus.

Façamos um bom Exame de Consciência.

E – porque não – fazer este ano uma grande revisão geral de toda a minha vida? Uma “confissão geral”, como se chamava antes, pode haver razão para a fazer, mesmo que os meus pecados já tenham sido perdoados. Mas não é por isso. É que nos faz bem rever o grande filme da nossa vida, certamente cheio de graças e falhas; mas a proposta, agora, seria revisitar o passado com Deus e não sozinho: ter o atrevimento de convidar Jesus Cristo a ver este filme e vê-lo com Ele e pelos olhos d’Ele. Rever tudo – graça e pecado – com olhos de misericórdia, para de tudo tirar proveito, para descobrir que “o amor é mais forte do que a morte”, que “onde abundou o pecado superabundou a graça”. Então, sairemos mais fortes e perdoados pela mão d’Ele para enfrentar o futuro com renovada Sabedoria e Fortaleza. São esses dois dons necessaríssimos que recebemos numa sincera confissão.

Deus só quer que cada um de nós nasça de novo. E nós – quem não? – queremos ter forças para começar de novo: mais ajustados a Deus, mais capazes de justiça… isto é, reconciliados.

Pego em mim e vou ter com Deus e digo-lhe “Pai pequei contra o céu e contra ti…” ou seja, digo-lhe o que sofro, digo-lhe o que faço sofrer, falo-lhe do egoísmo e da vaidade que me cegam, da impaciência e da mentira com que me justifico, dos desânimos e das consequentes compensações em que caio… Etc., digo-lhe “a vida dura” – e Ele já sabe e por isso me quer dar a mão e o abraço – e atrevo-me a gaguejar “quero ser melhor e parece-me que não sou capaz… sem Ti!” E Ele que é Pai e quer as coisas bem sentidas precisa de um “Padre”, de um instrumento concreto, vivo, para me transmitir a sua força e o seu perdão, através de um sinal eficaz que me ajuda a levantar e a caminhar para que o mal não torne a acontecer. A Absolvição liberta-me e dá-me liberdade.

Mas, Ele precisa de padre? Ele e nós, claro, e por três razões, por ordem de importância: a primeira é de ordem psicológica, pois, me ajuda, a mim, a ser concreto, objectivo e enfrentando-me diante de outro posso aceitar-me sem falsas humildades; a segunda é de ordem eclesial, comunitária, porque tudo o que fiz ou deixei de fazer – as omissões – teve a ver com outros, foi a outros e por isso, a comunidade ofendida deve estar representada e não só imaginada. Por fim, a terceira razão é teológica: é que se trata de ir receber uma força divina, uma graça de Deus que não posso dar a mim próprio. É aqui que está o ponto: não se trata de despejar o saco e de ficar aliviado; trata-se de encher a cabeça e o coração, esvaziados do amor pelo pecado, com a força de Deus, com o seu amor e a sua fidelidade. Confissão é um nome perigoso.

Confessar-me, deitar para fora, posso fazer sozinho, ou como uns dizem, directamente a Deus. Fazê-mo-lo muitas vezes na oração mas, receber a graça, encher o vazio que o pecado deixou, isso tem de me ser dado. Então, reconciliação, sacramento do perdão, são nomes melhores. Na parábola do Pai do filho perdido, não é o filho que abraça o pai, é o Pai que vem abraçar o filho e levá-lo para casa. O filho só cai de joelhos e confessa a sua desgraça e o seu desejo de mudar. É o abraço do Pai que o muda.

Há quem pense assim: eu, primeiro, converto-me e depois faço o favor de me ir confessar e buscar a medalha de bom comportamento. Mas não. Primeiro desejo mudar – arrependo-me – e compreendo que sozinho não sou capaz, declaro-o, confesso-me e peço que me seja dada a graça. Então Deus dá-me o perdom: o dom que me cura e fortalece e orienta. Só então mudo; só então posso mudar de vida.

Nesta peregrinação, a ordem não é pecado confessado – conversão – perdão. É antes pecador arrependido – perdão – conversão. Quem o fizer fica reconciliado, re-encontrado com o seu verdadeiro “eu”, com os irmãos, com Deus e com a criação …

Fico sempre a pensar naquela frase de S. Paulo (Ef. 3, 20) mais ou menos assim: não somos capazes de imaginar o que Deus faria de nós se nós deixássemos.

P. Vasco de Magalhães, S. J.

5º Domingo da Quaresma

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
Jesus foi para o Monte das Oliveiras.
Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo,
e todo o povo se aproximou d’Ele.
Então sentou-Se e começou a ensinar.
Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus
uma mulher surpreendida em adultério,
colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus:
«Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.
Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres.
Tu que dizes?».
Falavam assim para Lhe armarem uma cilada
e terem pretexto para O acusar.
Mas Jesus inclinou-Se
e começou a escrever com o dedo no chão.
Como persistiam em interrogá-l’O,
ergueu-Se e disse-lhes:
«Quem de entre vós estiver sem pecado
atire a primeira pedra».
Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão.
Eles, porém, quando ouviram tais palavras,
foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos,
e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio.
Jesus ergueu-Se e disse-lhe:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?».
Ela respondeu:
«Ninguém, Senhor».
Disse então Jesus:
«Nem Eu te condeno.
Vai e não tornes a pecar».

20 março 2010

A esperança de Margarida (cont)

Abriram naquele doido amarelo pelas ruas onde antes passavam todos os dias Cristina Onassis e Carolina do Mónaco, pela Avenue Mozart depois pela Victor Hugo até à Étoile onde seguiram directos para o Jardins Elisées, um bar caro de cantoras mulatas com as mesas em espiral, escada em caracol, onde os árabes faziam cair notas sobre quem cantava e o piano de cauda no meio de tudo. Onde o dinheiro ia balouçando pelo ambiente e descendo até ao chão. Aquele ar de riqueza com um pouco de chique e muito de ostensivo irritou solenemente Ângelo, no fundo um serrano que se lembrava bem da Condessa e das senhoras da Cabreira a correrem para a casa do Abade Afonso às terças todas com a noção forte do que era bom e sempre com reservas em relação a almas pequenas, por muito douradas que fossem, mas que não impressionavam, porque eram pretensiosas, eram ocas e faziam rir.

Sobretudo surpreendido ficou com as oito ou dez mulheres ansiosas e pintadas que esperavam Jean num sofá corrido vermelho, a rir e a mexerem-se contentes de o verem finalmente, esperavam o que a noite tinha para lhe propor, com ele num papel de agente profissionalmente assumido! Todas elas lindas, bem vestidas de morrer e a cheirar bem. Queriam mais a companhia de um velho lânguido cheio de vícios e de dinheiro do que um jovem potente manequim a prestar provas semana que vem para Armani, Valentino, Dolce & Gabanna ou Mugler, quem fosse! Parece que todas tinham deixado de sentir, com horizontes confusos e sem noção de sexo, de amizade ou de bem. Eram apenas bonitas, pronto, mas bonitas de gritos, caramba, porra! Não se deixavam perder por um amor, nem por uma paixão sequer; apenas e simplesmente pelo brilho do dinheiro que não as levava nunca a lado nenhum, mas ainda não tinham percebido isso, coitadas delas, e quando se apercebessem já seria tarde com certeza!

Ângelo pensou em Deus, passou os olhos por todas aquelas pequenas giras e boas sem rumo, pensou em si e no que tinha construído; e que lhe sabia a nada, a escuro ou a vácuo, qualquer coisa dentro desse conceito. Passou a mão pela cara e levantou as sobrancelhas, preocupado consigo, com o seu destino e com o seu cansaço. Queria qualquer coisa que não era de certeza aquilo que lhe tinha ofuscado os olhos toda a vida; se calhar era apenas agarrar alguém, mesmo sem sexo definido, pela cintura e pedir que partisse consigo para o cimo de uma montanha a sentir que não eram dois mas apenas um, sentir que os silêncios não eram pesados e que se podiam rir das mesmas coisas, deslumbrarem-se com as mesmas cores e com horizontes rasgados. Aquele champanhe era realmente bom, enfim, mas o que pensou estava certo, sabia-o desde sempre! O que o tinha feito ir com um circo estrada fora atrás de um dia sem destino, quando pensou que o mundo não tinha fim, e se calhar não tinha; e o que centenas de Ruths não tinham tido coragem para abraçar durante a vida; era uma constante, um peso, uma perseguição, uma maldição que parecia acompanhá-lo sempre, porque afinal via que nunca tinha chegado a lugar nenhum. A noção geográfica antes da de serenidade pesava-lhe em grande! Nem sentia os toques de cotovelos, de joelhos e de dedos daquelas queridas todas à volta dele! Estava bêbado era o que era, mas feliz, claro, com as luzes, as cores, os sons, os risos, os copos e os cigarros, mais uma vez na sua vida por aí no mundo! E o Nissan continuava como se a noite fosse toda só para ele nas ruas, pelo empedrado e pelo cimento dos passeios, pela noite de Paris. Ângelo e Jean, Sabrine e Nicole, se se tivessem enganado nalguma delas não fazia mal nenhum! Eram daquelas caras que não se decoram. Espremiam todos a adrenalina e os seus próprios corpos até às olheiras profundas. Haveriam de prestar contas sempre no dia seguinte quando acordassem com o peso do mundo na testa e gente estranha na cama enquanto abriam os olhos e vislumbravam algumas luzes dum infinito qualquer por entre as brechazinhas da persiana, com o barulho e a vida a correrem indiferentes lá fora na rua, os fumos dos carros, as vozes das pessoas, os pios dos pássaros e o vazio simplesmente.

A pachorra do dia seguinte conquista-se a punho! É despachar quem está a mais entre lençóis tipo “vai lá e apaga a luz antes de saíres” e tentar depois continuar a viver entre uma cerveja ou antigas receitas de tias velhas para a ressaca, com gemas de ovo, molho inglês e sal que fazem um cristão vomitar até à última. Se, por outro lado, a tal receita for com pozinhos e coisas menos claras para o nariz e para o estômago de alguém num estado assim lastimável, é porque se está nas mãos de estranhos esquisitos, nada cristãos, e mais vale continuar ressacado com sabor a cabo de guarda-chuva na boca e um paralelo de calçada na testa. Mas, profundamente cansado como se sentia, já nada espantava Ângelo, não cansado de noitadas, mas da vida e da procura que não sabia ao certo identificar.

Depois da tal temporada no Olympia, arranjou emprego num casino. Não como “O Maior Mágico do Mundo vindo directamente da América do Sul”, mas no bengaleiro. Arranjou também um pequeno apartamento confortável e modesto com vista para centenas de varandas com roupa a secar para os lados de La goute d’Or e viu-se com muita pouca vontade para sair à noite em esquemas com Jean Paul ou com amigos mais ou menos que ia conhecendo. Espantava-se com a sua capacidade vinda não percebia de onde para tratar da roupa e do pequeno-almoço a qualquer hora que fosse, para ir trabalhar ou apenas para sair e sentir o ar do fim da tarde na cara. O seu T1 era limpo e arrumado, cheio de coisas no frigorífico, tipo iogurtes, patês, fiambre e coisas congeladas. Passava os natais com Jean Paul e com loiras flamejantes, sempre diferentes, a rir e a beber, mas isso era inevitável com um comparsa assim e sozinho, completamente sozinho algures no mundo, como se sentia, sem o cheiro da serra, as recomendações da Domingas para ir à missa e as discussões aos gritos sobre futebol pelas tascas da Cabreira.

Um dia, sem lhe parecer rupturante, fechou as duas malas que tinha, deu um beijo enorme a Jean e partiu numa camioneta de emigrantes para trás de todos os montes, Europa fora entre milhares de sacos vazios que passadas semanas tornariam cheios de azeite, de bacalhau e de vinho. Ele, pelo que lhe dizia respeito, não voltaria. Confiava na sua sorte quase inabalável, o que não foi fácil, porque quase dois dias de viagem enlatado entre berros de bêbados, guinchos de criancinhas e cheiro a frango, pó e sopa, com um calor insuportável e uma velha gorda ao lado a querer sempre conversar, acabam por abalar a fé de qualquer cristão!

Assim, quando a camioneta parou e ele desceu na Praça do Conde de Vivalma, a maior da Cabreira, a meio do dia e do calor, pôs as malas no chão e respirou o mais fundo que pode. Os cafés, os correios, as lojas, tudo estava mudado, mas eram-lhe completamente familiares as linhas, as cores, os cheiros! Os toldos com reclames da Super Bock e o sino da igreja a chamar para a missa da tarde! As mulheres a escolherem fruta na mercearia do Quim Aldrabão e a Câmara com a bandeira nacional, sempre solene. Mas Ângelo já contava com esta avalanche de emoções, por isso tinha voltado com uma sensação estranha de conquista e com uma enorme serenidade dentro de si, já se sabe. Foi logo para casa da Domingas com ar firme, mas humilde, e bateu à porta, hesitante, sem medo. Para ela foi uma chatice ouvir a campainha, porque era terça e já estava atrasada para ir para casa do Senhor Abade. Quando a professora abriu, curvada e com os óculos na ponta do nariz e viu um homem desconhecido, assustou-se até conseguir reconhecer o sorriso do seu pai na cara de Ângelo e, sem dizer uma palavra, sentou-se no chão a chorar. Ângelo chegou-se ao pé do braço dela, levantado e a tremer, com a intenção de tocar-lhe com o indicador no nariz, nos olhos, no cabelo e nos dentes, sempre sem conseguir falar. Sentiu-lhe o cheiro, mas não ouviu o som da voz dela, apenas soluços e o sabor salgado de lágrimas. Uma cena lancinante foi o que foi! A partir daí a vida de ambos mudou. Ângelo não tinha voltado, tinha ressuscitado e calmamente foi-se embrenhando na vida da professora e da vila.

19 março 2010

polaroids de figuras extintas

#3 - filipe

anos a fio, colegas de carteira e de malandrice inocente,
amiguinhos pequeninos com queda para a esperteza matreira,
mas sem ponta de maldade.

anos depois, na vida adulta, tudo importa, filipe - tudo importa.
por isso mesmo, é importante escrever 'sem ponta de maldade',
porque a poesia nem sempre é justa,
mas as mais das vezes a justiça é razoavelmente poética
(só em Portugal é que não, eu sei, mas se vamos por aí,
nunca mais acabamos o poema..).

crescemos, jogámos futebol, catrapiscámos as meninas,
- uma vez, até a mesma, se bem me lembro.
coisa linda esses nossos dias.

mais tarde, divergimos, como quase sempre acontece,
há milhares de livros a explicar a isso.
nunca li nenhum, por dandismo ou coisa assim.

mas, dizia, divergimos, quando os gostos, a cosa mentale,
começam a fazer da suas.
passámos então a ser colegas, companheiros,
mas não mais os preferidos um do outro.
(lembra-me outras coisas, mas adiante.)

mais uns anos passaram, lembras-te da ânsia de lá chegar?
e chegámos, mas o carro não parou, continuou, seguiu viagem,
para nosso espanto e, voilá, disfarçado terror.

tudo importa, filipe - tudo importa. também o terror, como verás à frente.

era fim-de-ano, ainda a juvenília imperava com as suas cores garridas.
na festinha de aldeia, bar do júlio alugado pela comissão de festas possível,
encontro-te à porta, sob a ombreira, mas mais ainda sob aquele céu de chumbo
que a noite beirã por vezes comporta.

estavas bebido, muito. eu estava bebido, um pouco.
anos de intervalo pelo meio e lembrar o que, já nessa altura, havíamos sido.
de repente, sem perceber bem,
abraçaste-te a mim e desataste a chorar convulsivamente.

os passantes, poucos, amigos e ébrios, diziam de nós
'mais dois bêbados! que rica festa! isto está porreiro, pá!',
movidos a cerveja e bebidas espirituosas baratas, decerto.
movidos a juventude e inconsciência, talvez.

mas só tu e eu é que sabemos,
que às 00h01 do dia 1 de Janeiro de um ano qualquer,
nos braços um do outro,
descobríamos aterrorizados
que falháramos ambos a vida.

tantos anos depois, tanta coisa depois, filipe,
e os dois amiguinhos de carteira de escola,
perceberam que

tudo importa. tudo importa.

e que nada mais importa.

(só o terror. e, em dias claros, o amor.)

gi.

18 março 2010

Deixa-me rir...

Caros audiophiles, this week I offer a group which until last week I had never heard but which I immediately liked.
Midlake, I discovered, are a Texas band who only came to be noticed in 2006 with an album called Trials of Van Occupanther.
They originally were jazz musicians but claim to be influenced by early 1970s classic/progressive/folk rock bands such as Jethro Tull and King Crimson and also by contemporary artists like Radiohead.
Personally, on certain songs I also hear very definitely the distinctive guitar sound of Fleetwood Mac around the time of Rumours, and the lead singer reminds me of Rufus Wainwright and Neil Young.
More than this it is too soon for me to say, but I present two songs, from their new album The Courage of Others, which so far have made for me the most impression, and hope that you may enjoy:



Acts of Man:
If all that grows starts to fade, starts to falter
Oh, let me inside, let me inside, not to wake
Let all that run through the fields, through the quiet,
Go on with their own, on with their own hidden ways

When all the newness of gold travels far from
Where it had once been,
Worn like the earth over years,
And when the acts of men
Cause the ground to break open
Oh, let me inside, let me inside, not to wait

Great are the sounds of all that live
And all that man can hold


Rulers, Ruling All Things:
I have been cruel and kind without knowing
I fell into silence overwhelmed by these days
For I had been shown empty rulers, ruling all things
Thinking the world was mine to lay hold of
I breathed in the promise of maiden and man
But each had their own illusions to hold on to

I only want to be left to my own ways
The rulers have won leaving all things undone
I've stood in awe of the whole creation
Gathered among them was the morning
Giving all it's rest

Thinking the world was mine to be lost in
I ran with freedom and sang in between
For I have the path of wonder
There before me


A proxima,
PO


17 março 2010

Pensamentos impensados

Quando falamos de energias renovaveis será que estamos a falar de "doping"?

A ASAE e a Brigada de Narcóticos apreenderam o Auto de Mofina Mendes, de Gil Vicente; pensaram que era Morfina Mendes.

O acto de se ver através duma lupa diz-se lupanar.

Ausência total de caco
Como depois se provou
Quem foi o grande velhaco
Que descobriu o tabaco
E que o mundo forNICOT

SdB (I)

Good morning sunshine

"No matter how long or how hard you shop for an item, after you've bought it, it will be on sale somewhere cheaper"


2nd Must Have:
A little black Dress

(É só uma lista do que acho que o armário de uma mulher deve ter; agora as marcas já variam conforme o que cada um gosta ou ganha. Por exemplo, os estagiários só se dão ao luxo de comprar na Modalfa ou na Zara em dias de festa...)

TdB

16 março 2010

Ao luar

Todos na região o conheciam. Uns pessoalmente, outros pelos rumores que se murmuravam sobre ele, e alguns apenas por ouvirem as suas fúrias, cujos gritos assustavam quem passasse à sua porta. Famoso pelo seu temperamento, geralmente mau, e pelo seu génio, muitas vezes também com o adjectivo anterior. Era compositor, e como muitos outros saía de noite para procurar a inspiração que teimava em fugir.

A ela, ninguém a conhecia. Ninguém falava dela, ninguém olhava para ela na rua, e ninguém a ouvia quando pedia uma moeda para um pão. Era cega de nascença, e essa condição tinha-lhe trocado muitos dos pequenos prazeres da vida por pesadas amarguras. Um desses pequenos prazeres foi o de não poder ver a lua cheia sobre o lago vizinho. Foi uma cruel partida que a vida lhe pregou. Deu-lhe uma cama com uma vista aberta sobre o lago, mas tirou-lhe os olhos que a podiam ver.

Foi num desses pequenos passeios nocturnos que ambas as personagens se encontraram. Ela, enfezada e encolhida num canto, ouviu-o a aproximar-se. Já o tinha ouvido passar várias vezes durante a noite, e identificava-o sempre pelas melodias que trauteava pelo caminho. Decidiu pedir-lhe, em vez da habitual esmola, que ele lhe tocasse a vista que a cegueira lhe havia roubado.

E foi esse pedido que lhe devolveu a inspiração que teimava em fugir. Correu para casa, sentou-se ao piano, e de lá saiu uma imagem para o reflexo da lua sobre o lago que vale mais que mil palavras.

SdB (III)

15 março 2010

Avareza

Pouco havia em Celeste que se diferenciasse da generalidade das mulheres. Tinha uma altura média, um beleza corrente, umas mãos equilibradas e de uma elegância quase corriqueira, um cabelo castanho muito claro que não se destacava por nada. No entanto, era dona de uns olhos azuis claros – claríssimos, mais precisamente – quase como se Deus quisesse que se assemelhassem ao Céu ou se a natureza tivesse olvidado um pouco mais de cor naquela transparência. Eram de uma estranha beleza – talvez pela sua raridade.

Num dia de Março, a tarde punha-se num calor manso enquanto o sol se escondia por trás dos prédios ao longe. Celeste cruzou-se no escritório com Ricardo Pires, o novo director financeiro, um profissional alto e esguio com umas mãos nervosas e um olhar irrequieto por trás de uns óculos sem história. Era o primeiro encontro

boa tarde, como tem passado
bem muito obrigada, senhor doutor

e o homem dos números não disfarçou o fascínio por aqueles olhos que eram de uma transparência tal que se poderia ver a alma através deles. A fixação era quase incomodativa, não fosse a Celeste ter sentido um ligeiríssimo aumento do batimento cardíaco, fruto daquelas coisas que a ciência não explica e a experiência chama nomes diferentes.

Alguns meses depois cruzaram-se num centro comercial, ela com um conjunto novo de atoalhados adquiridos em oportunidades imperdíveis, e ele com o Eurico o Presbítero debaixo do braço, numa edição anotada e antiga. Já se conheciam bem e o convite

Posso convidar-te para jantar, Celeste?
Claro, gosto muito

surgiu natural e esperado, como quem não se espanta com o pôr-do-sol ainda que se deixe fascinar por ele.

O Dr. Ricardo Pires revelou-se um conversador nato, culto, com um mundo extenso vivido fora das paredes de um escritório e da secura desinteressante dos gráficos, e citou Herculano

10 anos... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar 10 anos amarrado ao próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e depois desfechar do céu nas profundezas do nada?

antes de a brindar com um fetuccine de mexilhões que perfumou com um xerez superior e com umas ervas aromáticas numa precisão de alquimista.

Entre adultos pode haver um momento, um instante, um ponto – talvez se possa chamar de não retorno – que separa o afastamento físico e a proximidade. Transposta essa porta - que é um levíssimo roçar de mãos, o contacto dos corpos numa passagem estreita, dois olhares que se fixam na embriaguez de um desejo – não há regresso possível e a expressão

há-de ser o que Deus quiser

é uma frase não descartável no domínio das possibilidades audíveis.

No dia seguinte, Celeste bebericava uma tisana com os olhos postos num folha diferente das oportunidades imperdíveis. Sabes Adília,

e a Adília a abanar a cabeça a garantir que sim, que sabia

há mais para além do sentido vulgar que damos às coisas, das definições a que fomos habituadas ao longo de séculos sem fim. Agarramo-nos a conceitos,

e a Adília num constante vaivém de cabeça, que sim, que sabia

mas nem tudo é assim. O que achei do Dr. Ricardo Pires? Um homem culto, que cozinha como ninguém, que tem um olhar irrequieto e viajante. Um homem à sua maneira sedutor. Mas, na escuridão de uma cama larga e à luz de uma vela ténue, revelou-se. E sabes o que achei?

e a Adília a responder que sim, que continuava a saber

Naquele quarto rico e bem decorado achei-o um homem avaro. Avareza, foi a palavra que me ocorreu. Não a do dinheiro ou dos bens materiais, como aprendemos. A ausência da generosidade física, da retribuição da carícia, do altruísmo sensual. Avareza, Adília. Avareza. Isso também é pecado?

JdB

14 março 2010

4º Domingo da Quaresma

De tanto chamar a Deus, “Senhor”, (e não deixa de o ser, mas certamente é “Senhor à sua maneira” e não à nossa!) podemos esquecer o nome mais belo que Jesus nos deu. O nome, “Pai”, que Jesus exprimia em aramaico: “Abba”, “Paizinho”! É com ele que Andrei Tarkovski termina o belíssimo filme “Sacrifício”. Jesus não queria que olhássemos para Deus como um rei, um senhor ou um juiz. Esses títulos evocam superioridade, exigem obediência e submissão, reclamam o cumprimento de deveres. Pai implica relação, intimidade, descoberta e amor.
É uma maravilha o pai desta parábola. Não pensa em si e não se ofende quando o filho mais novo o trata como “morto” e lhe pede a sua parte da herança. Espera-o e comove-se ao vê-lo ao longe, renunciando a toda a compostura para o abraçar e beijar. Devolve-lhe a dignidade de filho e prepara-lhe a verdadeira festa onde a alegria supera em muito as anteriores diversões e prazeres. Não pede contas dos bens esbanjados nem castiga os seus desvarios. Tudo parece pronto para um final feliz.
Mas uma sombra vem obscurecer esta felicidade. O irmão mais velho fica ressentido. Ele, que sempre tinha cumprido tudo, revolta-se com o excesso de generosidade do pai. Não era justo. Os seus méritos não eram reconhecidos. Não faz sentido desbaratar mais bens com aquele que tanto desperdiçou. Sem se dar conta, dentro de si, o dever tinha morto o amor. Por isso, trata o pai como um senhor, e o irmão como um estranho.
Mais uma vez, o pai é surpreendente. Sai de casa, ouve o filho e procura reacender nele, de novo, o amor apagado. Está sempre a caminhar este pai! A ir ao encontro dos filhos perdidos. Um perdido na distância, outro na proximidade; um na desobediência, outro no dever. Que frase tão bela diz ao filho mais velho: “Tu estás sempre comigo”! E insiste na necessidade da festa. Como que para nos dizer que todo o perdão é uma festa, e que nem a teologia, nem o direito canónico, nem a catequese, nem a liturgia podem esquecer isto. Trazemos um pouco dos dois irmãos na alma? Umas vezes um, outras, o outro? E do pai, o que transparecemos? A casa do Pai, que também acredito ser a Igreja, produz a memória feliz que alimenta a esperança de um regresso? Com que alegria e projecto de crescimento acolhemos? Que disponibilidade criamos para fazer festa? É muito difícil dizer “Pai” simplesmente por dever!

P. Vítor Gonçalves


Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
os publicanos e os pecadores
aproximavam-se todos de Jesus, para O ouvirem.
Mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo:
«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».
Jesus disse-lhes então a seguinte parábola:
«Um homem tinha dois filhos.
O mais novo disse ao pai:
‘Pai, dá-me a parte da herança que me toca’.
O pai repartiu os bens pelos filhos.
Alguns dias depois, o filho mais novo,
juntando todos os seus haveres, partiu para um país distante
e por lá esbanjou quanto possuía,
numa vida dissoluta.
Tendo gasto tudo,
houve uma grande fome naquela região
e ele começou a passar privações.
Entrou então ao serviço de um dos habitantes daquela terra,
que o mandou para os seus campos guardar porcos.
Bem desejava ele matar a fome
com as alfarrobas que os porcos comiam,
mas ninguém lhas dava.
Então, caindo em si, disse:
‘Quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância,
e eu aqui a morrer de fome!
Vou-me embora, vou ter com meu pai e dizer-lhe:
Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho,
mas trata-me como um dos teus trabalhadores’.
Pôs-se a caminho e foi ter com o pai.
Ainda ele estava longe, quando o pai o viu:
encheu-se de compaixão
e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos.
Disse-lhe o filho:
‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho’.
Mas o pai disse aos servos:
‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha.
Ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés.
Trazei o vitelo gordo e matai-o.
Comamos e festejemos,
porque este meu filho estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’.
E começou a festa.
Ora o filho mais velho estava no campo.
Quando regressou,
ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças.
Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo.
O servo respondeu-lhe:
‘O teu irmão voltou
e teu pai mandou matar o vitelo gordo,
porque ele chegou são e salvo’.
Ele ficou ressentido e não queria entrar.
Então o pai veio cá fora instar com ele.
Mas ele respondeu ao pai:
‘Há tantos anos que eu te sirvo,
sem nunca transgredir uma ordem tua,
e nunca me deste um cabrito
para fazer uma festa com os meus amigos.
E agora, quando chegou esse teu filho,
que consumiu os teus bens com mulheres de má vida,
mataste-lhe o vitelo gordo’.
Disse-lhe o pai:
‘Filho, tu estás sempre comigo
e tudo o que é meu é teu.
Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos,
porque este teu irmão estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’».

13 março 2010

A esperança de Margarida (cont)

Chegou a casa cedo pela tarde e buzinou para cumprir um ritual estabelecido: Philip, o seu filho querido pequenino de um pai qualquer, francês para aí, se houvesse bancos de esperma era onde tinha recorrido com certeza, mas pronto foi o que surgiu, corria a rir para os seus braços sempre sólidos mas não muito presentes, com a ama nervosa atrás com ar preocupado. Era a Philip que competia todos os dias guardar o carro na garagem pelo caminho do jardim não muito longo mas sempre generoso entre grama e canteiros, ao colo da mãe que o ia enchendo de beijos e de festas. Entre eles sabiam que estavam perto do que mais forte havia na vida de ambos; entre os carrinhos match box de Philip por um lado e os brokers da Bolsa de Valores onde Ruth se mexia por outro. Entraram em casa a rir, com Philip agarrado ao pescoço da mãe e sentaram-se no balcão da cozinha a beberem Coca-Cola e a prepararem hambúrgueres com molhos de cores gritantes sob o olhar reprovador da ama com as mãos atrás das costas. Depois de Philip se ter deitado, Ruth entrou na sala, tirou os sapatos e os brincos e agarrou a alcatifa com os pés. Pôs um disco do Fausto Papetti e sentiu fortemente, em frente das portas de vidro que davam para o jardim, como todos os dias, a enorme solidão que morava no seu peito. Deitou-se na mais fria, longínqua, branca e áspera das camas!

Num dos sábados seguintes foram ambos ao circo conforme prometido, com Philip sem mais mãos para pipocas, latas e balões. Sentaram-se, pouco depois as luzes apagaram e começaram os palhaços, que aos olhos de Ruth eram como desenhos animados; depois os trapezistas e os equilibristas; as meninas loiras com plumas no rabo em cima de elefantes e tudo mais que o circo dá! Quando entrou Ramón, El Grande, “O Maior Mágico do Mundo vindo directamente da América do Sul”, Ruth não queria acreditar no que estava a sentir e o seu coração começou a bater descontrolado! Depois de uns momentos de dúvida; será não será; ficou com a certeza que apesar dos anos não podia deixar de se tratar do soldado Ângelo, número não-sei-quantos da Cabreira, aquele irmão perdido da Dona Domingas que tinha sido o homem mais marcante que tinha passado pelos seus braços, omnipresente no seu dia-a-dia e na sua intimidade.

O olhar de Fellini sobre o mundo era realmente do mais simples que havia, afinal! O ar sólido que mantinha não deixava margem para dúvidas! A alma dele muito para além do corpo que habitava abraçou ternamente o espírito de Ruth quando entrou no palco seguro de que nada durante o espectáculo iria correr mal. Era ele completamente, e apesar de todos aqueles anos, reparou que continuava a deixá-la fora de si, com acessos de suor e sem defesas para olhar em frente. O cheiro, o tom da pele, a maneira como mexia as mãos, regressaram a si no minuto em que o viu, dentro de um smoking sob holofotes, a tirar coelhos do chapéu e a serrar meninas todas brilhantes ao meio. No fim, sem querer e sem saber porquê, viu-se com Philip pela mão a bater com os nós dos dedos e a tremer, à porta do furgão que servia de casa a Ramón ou a Ângelo, tanto fazia. Tinha sido desde sempre o seu homem, para sempre! Quando ele abriu a porta de t-shirt branca o mundo caiu e Ruth viu estrelas, cavalos a correr, bombas atómicas a explodir. Ia dizer alguma coisa, mas só viu o sorriso e os braços dele para cima, onde se perdeu por uns minutos. Afinal era claríssimo para si que não queria mais nada no mundo, apenas aquele calor!

Combinaram então jantar em casa dela essa noite. Foi logo a correr Datsun fora tratar de tudo e com uma inexplicável vontade de dar um ar de solteira a todo o ambiente geral! Pôr o Philip na cama e arranjar a mesa com copos altos, velas, frutas e essas coisas! Pôs também um vestido preto e justo com elastano de modo a que se sentisse apalpada sempre que se mexesse; chegar um frasco de perfume atrás das orelhas, enterrar os dedos no cabelo para soltar a laca e partir à abrir quando a campainha tocasse, e tocou! Correu para a porta enquanto calçava uns sapatos de tacão alto. Ângelo entrou, enorme no seu peito, tirou o casaco, deu-lhe um beijo forte e ela irritou-se com a sua própria insegurança diante aquele sorriso provocador com qualquer coisa de erótico até, dum cheiro que a fazia sentir pequenina e duma voz que não a deixava falar. Era impressionante como estava, quer quisesse quer não, nas mãos daquele homem mágico, artista de circo, de um nível social e cultural indefinido, mas que apenas com a sua presença conseguia fazê-la sentir totalmente mulher, com desejos de ser possuída, controlada, propriedade de! Assustava-a o facto de ser tão claro que por ele abandonaria tudo, e que o que mais queria era esperar tempos a fio o seu regresso à noite de cada dia para uns minutos de amor que de certeza a tornariam na mulher mais feliz do mundo. Momentos que a fariam sentir amada, desejada, protegida, única. Instantes que o seu mundo de escritórios, de reuniões, de compras e de mãe não lhe dava! Por tudo isso foi inevitável que as velas naquela noite ardessem até à última, o jantar ficasse frio na mesa, e Ruth entrasse no seu quarto ao colo de Ângelo aos beijos, com o mundo lá fora e bem longe. É óbvio que com a luz da manhã seguinte era-lhe impossível pensar sequer em partir com ele estrada fora, circo dentro, por isso restou-lhe nos meses seguintes apenas a sensação de ter sido bem amada uma vez mais.

Passados anos a deambular pelo mundo, aqui e ali, Ângelo viu-se aterrar em Charles de Gaulle, finalmente numa temporada muito esperada por ele no Olympia; e logo no aeroporto conforme combinado, esperava-o Jean Paul, um velho amigo de farras que já tinha tido um número de tigres, mas agora contentava-se com um de pombas amestradas porque já tinha aprendido a ganhar dinheiro com mulheres e com a noite. Jean Paul já com a cabeça cheia de esquemas para os dias que se aproximavam, com os óculos escuros e brilhantina, casaco de couro e brinquinho, pôs a mala de Ângelo no banco de trás do seu Nissan 200 SX amarelo, todo quitado, enquanto se riam alto, contentes de se verem e de estarem juntos. Era bom aquele vento depois de sair do ar comprimido do avião!

Mitterrand era o novo presidente e não era Paris que era deles, era o mundo todo! A solidez de Ângelo assentava nas Ruths que ia deixando pelo mundo; na Domingas que estaria eternamente na Cabreira; e nos amigos como Jean Paul que estariam sempre a esperá-lo pelos aeroportos e estações. Gostavam da vida de ambos, acreditavam e contavam completamente consigo próprios e riam-se às gargalhadas enquanto o bólide amarelo galgava passeios e passava por sentidos proibidos em direcção ao pequeno apartamento de Jean, perto da Porte d’Auteil. É sempre muito forte a sensação de estar com amigos às duas da tarde em cuecas, a beber champanhe e a falar de mulheres que vão passando, dos contratos que vão conseguindo e da barriga que vai aparecendo. Há uma linguagem comum nas casas dos homens solteiros, mundo por aí: revistas aos montes na casa de banho, meias a secar no micro ondas e embalagens abertas de comida chinesa estragada no frigorífico, por isso nada parecia estranho a Ângelo, apenas a porcaria do telefone que não parava de tocar. Tomaram banho, estilaram-se e saíram para jantar.

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