29 fevereiro 2024

Da censura

 


Encontrei estes dois documentos (são fotocópias) na Fábrica do Braço de Prata, onde estive há algumas semanas. Infelizmente não li o Vagão J, de Vergílio Ferreira, nem a Apresentação do Rosto, de Herberto Helder, que foi apreendido na sua quase totalidade pela PIDE em 1968 e só viria a ser reeditado em 2020, tornando-se um objecto de culto. Por isso, não consigo sequer imaginar o que seriam estas duas obras à luz da realidade social e política de 1947 e 1968. 

Por motivos que se prendem com a minha idade, e pelo meio não intelectual por onde a minha família e amigos circulava, a Censura disse-me pouco. É, para mim, um episódio histórico, mais do que uma manifestação da ditadura. Assim sendo, entretive-me a ler o que o Sr. Joaquim Palhares, leitor, e o Sr. Borges Ferreira, capitão, tinham a dizer sobre o assunto, e por que razão os livros não deveriam ser publicados. 

Confesso que estas notas da Censura me despertaram a curiosidade. Que o Herberto Helder é hermético não é novidade - e pelos vistos esta característica já tinha sido identificada pelo censor em 1948. Já Vergílio Ferreira, não sendo surrealista, privilegiava o asqueroso. 

JdB  


28 fevereiro 2024

Vai um gin do Peter’s ?

RECEITAS QUARESMAIS

Do divertido e muito talentoso Chefe italiano Federico Fusca circulou, há um par de dias, uma receita rápida e simples como convém para as nossas agendas atafulhadas de afazeres:  uma massa cremosa recheada de amêijoas com raspas de limão e ovas de tainha, mesmo a calhar nesta época do ano, que convida a menus minimalistas e a privilegiar o peixe. A própria coreografia de ingredientes frescos a aterrarem certeiros em tachos e frigideiras dá logo vontade de correr para a cozinha: 

https://www.instagram.com/reel/C22jtF8IUUC/?igsh=bmdvM2swY3JrOHNq

De D. Tolentino Mendonça a receita é mais primaveril e espiritual, mas igualmente adaptada à quadra: 

«REZAR A PRIMAVERA INTERIOR

Ensina-me, Senhor, a fazer desta quaresma uma primavera. É fundamental que o degelo aconteça não apenas na natureza, mas nas nossas vidas. Que os dias se ampliem, mas não apenas na sua extensão externa. Que o calor avance não simplesmente como uma questão da meteorologia, mas como expressão da nossa humanidade recentrada, transfigurada em Ti.

Ensina-me, Senhor, a lição das coisas simples em meu redor. A lição das flores bravias, que não colocam condições para o seu florescer, nem escolhem os terrenos que nós pensaríamos mais apropriados: onde elas estão acendem simplesmente o seu pequeno sol, seja à beira das estradas secundárias ou num qualquer baldio que tem todo o ar de ser inútil. Enquanto para nós é tão fácil perder o melhor da vida por falta de comparência!

Ensina-me, Senhor, a lição das árvores, pois nos mostram quanto o renascimento começa por dentro. De facto, o renascimento principia por ser uma questão da seiva e não mero assunto de folhagem. As árvores testemunham que as grandes revitalizações nos pedem uma confiança paciente, nos desafiam a aprender a linguagem do silêncio e a crer naquele dom que vem de Deus e que já está em nós, mesmo se por muito tempo permanece invisível aos olhos.»

P. Tolentino

2.03.2021

Um tempo de Quaresma bom, que nos ajude a recentrar no principal e “destralhar” de tudo o que está a mais na nossa vida. 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

27 fevereiro 2024

Pensamentos dos dias que correm

Somos Uma Surpresa Para Nós Próprios

Como serão em privado as pessoas que conhecemos? Quanta surpresa se o soubéssemos. Porque nós, instintivamente, tendemos a julgá-las idênticas dentro e fora de si. Mas o que somos por fora é o que aceitamos que o seja e é o que os outros estabeleceram. Tal fanfarrão na praça pública pode ser um chilro piegas quando lá não está ou um medricas quando a coisa é a sério (Não dizia Aristóteles que os grandes atletas eram maus soldados?). Ou inversamente. O que aceita para si a imagem exterior de um mole, de um tíbio, de um encolhido de comportamento - no interior de si, e quando for caso disso, pode ser um obstinado de dente rilhado. Há um estilo de se ser que se adopta por convenção generalizada, orientação de uma época, obrigação protocolar no modo de nos manifestarmos.

(...) As regras de comportamento em grandezas chegam só à porta da rua ou ao menos da do quarto ou seguramente à da casa de banho. E daí para dentro, vale tudo, ou seja a regra somos nós. E é então que sabemos quem somos ou quem é aquele que consentimos que seja ou em que medida respeitamos em nós o que respeitamos nos outros. Mas nem é preciso talvez entrarmos na nossa intimidade. Quanta farófia se não desfaz em caca quando entra a polícia? Como se aguentaria ela, frente a um pelotão de fuzilamento? Mas o mesmo tipo revelado em fraqueza e enrolado de timidez poderia revelar-se em coragem quando a coisa fosse a doer. Tudo é tão casual. Somos tanto a invenção de nós em cada momento. Tudo é tão em nós uma fortuita conjugação de astros. Somos tão surpresa para nós próprios. Para a coragem ou o amor ou a verdade ou mesmo a inteligência. Ou o simples estar vivo.

Vergílio Ferreira, in 'Pensar'

25 fevereiro 2024

II Domingo do Tempo da Quaresma

 EVANGELHO – Marcos 9,2-10

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João
e subiu só com eles
para um lugar retirado num alto monte
e transfigurou-Se diante deles.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes,
de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra
as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.
Pedro tomou a palavra e disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados.
Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
e da nuvem fez-se ouvir uma voz:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor,
não viram mais ninguém,
a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte,
Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém
o que tinham visto,
enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação,
mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.

23 fevereiro 2024

Do que é "ter cara de..." *

 Ontem, por volta das oito da manhã, paredão do Estoril. 

Duas senhoras, por volta dos sessenta anos, pouco mais, equipadas com fato de treino vermelho, abordam um cavalheiro que, de auscultadores nos ouvidos, vem em sentido contrário. Pelo ar dele - enfim, podia ser da hora matutina - percebe-se que não se conhecem. Ele pára, esboça um sorriso matutino e esforçado, e cede o equipamento a uma delas. Esta põe-no na cabeça e, passados dois segundos, agita-se mansamente ao som de uma música cujo ritmo só posso imaginar. Três segundos depois a devolução ao legítimo dono e a continuação da passeata. 

Esta cena oferece vários ângulos de observação. Em primeiro lugar, o à-vontade com que alguém aborda outro alguém no meio da rua para lhe solicitar algo. Não falamos de esmola, de um isqueiro, de um telefonema numa emergência ou da indagação das horas. Não. As senhoras invejaram os auscultadores de um transeunte (destes auscultadores à antiga, que cobrem a totalidade dos ouvidos) e decidiram avaliá-lo. Não lhes ocorreu que o legítimo dono pudesse não achar graça a ser parado, a ser interrompido, a engolir uma repugnância de ver os seus auscultadores colocados sobre os ouvidos de alguém desconhecido. Conheço boa gente para quem isso constituiria um certo nojo. Por outro lado, ninguém nos diz que o cavalheiro se sentisse à vontade em partilhar o que estava a ouvir com pessoas estranhas ao serviço dele. Para algumas pessoas, a música de um ipod pode inscrever-se numa certa dimensão de privacidade.

Quando ando no paredão gosto de olhar para as pessoas e imaginar-lhes histórias. Em particular, quando têm auriculares ou auscultadores, gosto de lhes imaginar a música que ouvem, e encontrar uma certa coerência entre ocupação imaginada e música imaginada. Por exemplo, durante muito tempo cruzei-me com um casal dos seus sessenta e poucos anos. Ele tinha cara de ter sido maquinista da CP; ela, talvez operária numa fábrica de malhas. O que ouviria ele, que andava sempre de auricular nos ouvidos? Por outro lado, o que é ter cara de

(A esse propósito, lembro-me de uma história que me contaram há mais de 30 anos: fulano, jovem, à mesa da refeição em casa dos pais referiu-se a alguém como tendo "cara de criada". Ora, a empregada da casa, vigilante ao canto da sala de jantar para retirar atempadamente os pratos da sopa, que o empadão de batata ficava frio, questionou: "oh menino, e as criadas têm uma cara especial?").

O que é ter cara de? E o que nos diz isso da música que essas pessoas ouvem? O que ouve alguém que tem cara de maquinista reformado da CP? Tony Carreira? O pequeno Saúl? Ou pode ir surpreendentemente a um Freddy Mercury ou, ainda mais surpreendentemente, a um Mozart? Numa camada mais jovem, a imaginação estará mais próxima da realidade: ser filho/a de um maquinista reformado da CP ou de um gigante da nossa indústria não constitui diferença assinalável: todos/as têm um equipamento electrónico onde, com poucas excepções (talvez a comunidade africana) ouvem o mesmo género de música. Mas sobe-se uma ou duas gerações e o acesso à música, com excepção da telefonia, não estava generalizado. 

Há 40 anos, o maquinista da CP ouviria o que a telefonia lhe oferecesse; hoje reformado, ouve o quê? E se afinal não é maquinista reformado, apesar de ter cara disso, mas um engenheiro informático ou um industrial do tijolo de Vieira de Leiria?

JdB

* publicado originalmente a 4 de Fevereiro de 2016

22 fevereiro 2024

Da morte como oportunidade de promoção

No próximo Domingo fará anos que nasceu Cesário Verde (25 de Fevereiro de 1855 - 19 de Julho de 1886). Entre nascer, ser empregado de comércio e morrer, passar-se-iam uns escassos 31 anos. Numa carta dessa altura para o seu grande amigo Silva Pinto, diz-lhe Cesário:

O Dr. Sousa Martins perguntou-me qual era a minha ocupação habitual. Eu respondi-lhe naturalmente: empregado de comércio. Depois ele referiu-se à minha vida trabalhosa, que me distraía. Ora meu querido amigo o que te peço é que conversando com o Dr. Sousa Martins lhe dês a perceber que eu não sou o Sr. Verde, empregado de comércio. Eu não posso bem explicar-te, mas a tua amizade compreende os meus escrúpulos. Sim?  

Em O Livro do Desassossego, escreve Bernardo Soares:

Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.

Tal como digo no primeiro parágrafo, entre nascer, ser empregado de comércio e morrer passar-se-iam uns escassos 31 anos. Embora o Sr. Verde tenha escrito todos os versos antes do fatídico dia 19 de Julho de 1886, só depois de ter dito ao irmão não quero nada. Deixa-me dormir e ter exalado o último suspiro é que ele se transformou em Cesário Verde, o poeta de O Sentimento de um Ocidental. Ser-se empregado de comércio é comum; já ser-se poeta é singular. Foi preciso a morte - como para tanta gente, em tantos momentos e em tantos lugares - para que ele se alcandorasse e passasse de uma vulgaridade para um destaque. 

Se o mundo fosse imperfeitamente perfeito, ou permitisse todas as imaginações, talvez pudéssemos pensar que Cesário Verde, se tivesse vivido 100 anos, teria sido sempre, e fatalmente, o Sr. Verde. A morte salvou-o, porque o que ele queria era ser Cesário Verde

JdB    

21 fevereiro 2024

Notas dissonantes - Duas últimas *

Há alturas em que gosto da ideia de nota dissonante, uma expressão que podia ser substituída pela ideia de incoerência sociológica, por exemplo. Eu explico: numa família de gente feia, há alguém que se destaca pela sua beleza. Há ali uma dissonância estranha, que podia ser ao contrário - a fealdade pontual no meio de uma beleza generalizada. O encanto manter-se-ia. Em Buenos Aires fui confrontado com este conceito mais do que uma vez, talvez porque estivesse mais atento, não sei porquê, talvez porque tenha conseguido explicar a ideia a um companheiro pontual de viagem de uma geração abaixo da minha. 

Na rua Caminito encontrei uma casal sentado à mesa numa esplanada. Ele era preto, ela era branca. Ambos estiveram o tempo todo de volta dos seus próprios telemóveis, nunca falando um com o outro. Passados 15 minutos, talvez, a artista que no restaurante cantava e dançava tango para os clientes veio buscá-lo para uma fotografia conjunta: a artista todo sensual e coleante e ele de chapéu de feltro debruçado sobre um olho, como se ambos fossem dançarinos locais. Mas ele era preto, e o tango é uma música de brancos, como há músicas de pretos, ou de chineses. Havia ali uma dissonância, como se víssemos um esquimó vestido de campino a dançar o fandango. 

Em San Telmo, no bairro onde fui roubado, o domingo é agitado de gente pelas ruas, pelas bancas, pelas esplanadas, pelos cafés ou pelos bancos de jardim. Não há sofisticação, elitismo, elegância fruto de casacos de peles bonitos ou de gente assumidamente milionária. E não obstante, no restaurante onde estávamos a beber umas tiradas e a comer amendoins com casca, um casal jovem bebia uma garrafa de Moet et Chandon, como se estivessem num hotel sofisticado de Paris.

Deixo-vos com Concha Buika em duas notas dissonantes: a cantar Jacques Brel e a cantar Carlos Gardel.

JdB





* publicado originalmente a 16 de Junho de 2017

20 fevereiro 2024

Poemas dos dias que correm

Convento de Cristo, Tomar (Fevereiro 2024)

Comentário sobre os velhos

Alguém tem de
ir à frente. A ir alguém
que vão
os velhos. Se formos pensar bem
para que é
que os velhos servem? A maior parte
não faz nada. Estão quase sempre doentes.
Em rigor só
dão trabalho. Consomem recursos
imensos. A ter de ir
alguém à frente
(é bom de ver:) que
vão eles. Nós temos objectivos. Toda uma
vida pela frente. Molhando
as calças de
pingos.
Lançando pão d’ontem
aos pombos.

João Luís Barreto Guimarães, Poesia Reunida, 2023, pp. 343-4.

19 fevereiro 2024

Da guarda que não se rende

Mosteiro da Batalha (fotografia tirada da internet)


Relativamente ao crucifixo que consta da fotografia acima, diz a Wikipédia:

Cristo das Trincheiras é uma estátua, que durante a Primeira Guerra Mundial, se tornou num símbolo de resistência e sobrevivência para os soldados do Corpo Expedicionário Português que estavam sediados em Neuve-Chapelle, França.[1] É considerada uma das peças mais emblemáticas da participação de Portugal na Primeira Grande Guerra. Atualmente encontra-se exposta no Mosteiro da Batalha. 


É nesta sala - Sala do Capítulo - que se encontra o túmulo do soldado desconhecido de Portugal que contém os corpos de dois soldados da Primeira Guerra Mundial. É um lugar com um grande simbolismo. 

Estive lá com amigos há duas semanas. A visita ao Mosteiro da Batalha organizou-se por forma a podermos assistir ao render da guarda, que se processou desta forma: pelas 11h01m (porquê o atraso?) chega um graduado (não percebi a patente) vestido de camuflado. Com um tom de comando manda recuar as duas ou três dezenas de visitantes para o fim da sala. Percebe-se que seja necessário espaço para o cerimonial que está prestes a continuar. Acontece que não há cerimonial... O graduado dá vozes de comando, os dois soldados largam a guarda do túmulo e, num porte pouco garboso, vão-se embora. Não há render da guarda, porque ninguém os rende. Porquê? A explicação é simples: parece não haver soldados que cheguem para uma guarda permanente, pelo que, ao fim de 30 minutos, os soldados têm de descansar. Voltarão mais tarde, depois de cumprirem as necessidades fisiológicas, de fumarem um cigarro e contarem umas larachas. 

A guarda é intermitente, o que nos leva a questionar: se só lá estão metade do tempo (ou menos sei lá eu...), para que serve isto? 

Mosteiro da Batalha (Fevereiro de 2024 -
os soldados que guardavam o túmulo foram descansar)

Não há nada pior do que ver-se uma cerimónia militar (ou mesmo civil) executada pelos ingleses. Porquê? Porque se estabelece um padrão, se coloca uma fasquia a uma determinada altura. Mas não somos ingleses, e a guarda a símbolos importantes para a Nação está sujeitos à disponibilidade de soldados, não à convicção da importância. Se calhar os soldados não querem fazer este serviço, ou estarão ocupados a limpar casernas ou a polir tachos para servir o rancho melhorado aos 3 oficiais que (estatisticamente) mandam em cada um deles.

A Pátria honrai que a Pátria vos contempla. Uma bonita frase de Camões que pouco se aplica nos dias de hoje.

JdB 

18 fevereiro 2024

I Domingo do Tempo da Quaresma

 EVANGELHO – Marcos 1,12-15

Naquele tempo,
o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto.
Jesus esteve no deserto quarenta dias
e era tentado por Satanás.
Vivia com os animais selvagens
e os Anjos serviam-n’O.
Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galileia
e começou a pregar o Evangelho, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo
e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

15 fevereiro 2024

Do garbo e da desilusão

Roberta trabalhava para uma autarquia, ensinando aos visitantes os meandros das batalhas portuguesas - a estratégia, as causas e as consequências, os intervenientes, os pormenores curiosos que ninguém dominava, nomeadamente a variedade das viandas, o peso das bestas, a técnica de secagem das flechas, o índice de flexão dos arcos, a forma de satisfação de necessidades básicas para gente revestida a armadura. Sabia tudo e de tudo, com uma competência que não oferecia dúvidas mas, acima de tudo, com um entusiasmo vibrante, sonoro, contagioso. Para Roberta, falar das artes da guerra, do armamento, da distribuição das forças, da orografia, era um prazer inolvidável, que a desgastava fisicamente mas que lhe alimentava a alma.

Tinham passado 20 anos desde que tentara concorrer à Academia Militar. Fisicamente ágil, veloz mas resistente, boa aluna a tudo (uma ou outra dificuldade em visão do espaço, que colmatava com horas infindas de estudo) partiu para as provas de aferição com alegria e confiança. Saíra desgostosa, desanimada, com um sentimento de injustiça que nada - nem sequer um jantar de marisco na capital - conseguia aligeirar. Roberta era caneja - irremediavelmente caneja - e os critérios de admissão eram rígidos. A rapariga chorou durante três dias e três noites após o que, seca de lágrimas e pronta para o combate, decidiu mudar de vida: passaria a partilhar uma sabedoria que só se adquire quando fundida com a paixão. 

Na sua actividade profissional Roberta cruzou-se com Roberto, e só a semelhança de nomes já lhe parecia de bom augúrio. Roberto era um homem alto, bem constituído, cujo físico estava escondido por detrás de um balcão onde ele vendia bilhetes e de onde manuseava um walkie-talkie, símbolo de poder e autoridade num trabalhador autárquico: Dra. Roberta? Queira chegar à recepção por obséquio.  E a Dra. Roberta vinha, lesta, entusiasmada, levando o grupo metaforicamente pela mão e falando aos visitantes de táctica e estratégia (e explicava a diferença), das alas que avançam antes das alas que recuam, dos besteiros, dos lanceiros, da coragem da infantaria, do garbo da cavalaria, da vida castrense como escola de virtudes e do fim do serviço militar obrigatório como uma desgraça equiparável à pandemia. 

Num dia em que tudo lhe correu particularmente bem - uma excursão interessada, conhecedora, com ideias polémicas sobre a ala dos namorados ou sobre o quadrado que não era quadrado - decidiu fazer uma surpresa ao Roberto: chegaria a casa dele após o jantar vestida de militar medieval, inundada de uma alegria interior toda feita de desejos de glória e recompensa, de luta corpo a corpo (com o Roberto, claro) que terminaria numa paz assinada entre beijos e carícias. Uma paz fundida, no fundo, com recurso a materiais humanos moldáveis. Se assim o pensou, melhor o fez. Assomou-lhe ao 3º direito, bateu com determinação à campainha e, assim que ele abriu a porta, gritou-lhe um D. Roberto! estais pronto para a peleja? Confrontou-se então com um homem espantado, ligeiramente assustado, que lhe balbuciou com uma voz que desaparecia: Roberta, se calhar nunca te disse que sou objector de consciência... 

Roberta olhou para dentro e pensou: e eu é que sou caneja? Virou as costas e bateu distraidamente com o chapéu-de-arma num extintor de pó seco. Não tinha previsto esta incursão lateral, pelo que tinha de bater em retirada.

JdB

14 fevereiro 2024

Vai um gin do Peter’s ?

EXPOSIÇÃO DE PINTURA NA BASÍLICA DA ESTRELA 

Até 31 de Março, está patente no átrio da Basílica da Estrela a exposição de uma artista plástica ucraniana, nascida em 1996, numa das cidades mais massacradas pelas tropas do Kremlin – Kharkiv. Veronika Blyzniuchenko teve de fugir do seu país, logo após 24 de Fevereiro de 2022, e rumar a outras paragens para sobreviver. Acabou por escolher Portugal, onde se radicou e reinventou. 

À esq. “Pássaros encarnados”; à direita “Limoeiro”. 

“Jardim Azul”

As aguarelas e os óleos de Veronika desenvolvem-se sob padrões geométricos que enquadram e decoram o conjunto. Em Portugal, o fascínio pelas tonalidades de Lisboa levou-a a acrescentar à sua palete tradicional os azuis do Tejo e da azulejaria portuguesa.

A pintora com as suas obras.

A colecção exposta no átrio da Basílica privilegia as telas mais recentes e mereceu um título estimulante, que interpela por provir de uma refugiada de guerra: «Beauty is a choice». Felizmente, continuou a apostar na arte.

Pintura sobre mobília

Pintura de murais.

Percebe-se quanto Lisboa mantém a tradição de acolher com salero e generosidade os refugiados, como fez na Segunda Guerra Mundial, em que foi um verdadeiro oásis de paz. Longe das bombas, a única guerra era a rábula divertida e muito bem desfiada por Raul Solnado. No século XXI, também Veronika se sente em casa nesta cidade solar e calorosa.  

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

13 fevereiro 2024

3ªfeira de Carnaval

 Tomei uma decisão: todas as 3ªs feiras de Carnaval, daqui até ao momento da minha morte ou do fecho do estabelecimento, o que acontecer primeiro, publicarei este texto, mesmo que já tenha netos


---

Chega-se a esta altura do Carnaval e todo o meu corpo se arrepela de terror pela época. Felizmente já não me desafiam para festas, já não tenho filhos para mascarar e sobre os meus netos não exerço responsabilidades. Não obstante, desejo a todos os foliões a maior das alegrias.

Repito a música que postei nesta mesma 3ª feira de Carnaval de 2016 e de 2018, qualquer que tenha sido o dia. Talvez não haja música mais apropriada para celebrar o momento em que todas as folias são possíveis antes das restrições quaresmais.

Deixo-vos com Manhã de Carnaval - a toada lenta retrata a energia com que celebro o dia.

JdB


Poema para o dia de hoje

 Um Carnaval

Vem ao baile vem ao baile
Pelo braço ou pelo nariz
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris

Deixa a tristeza roer
As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber

Vem ao baile das palavras
Que se beijam desenlaçam
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças

Vem ao baile oh tens de vir
E perder-te nos espelhos
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir

Vem ao baile da loucura
Vem desfazer-te do corpo
E quando caíres de borco
A tua alma é mais pura

Vem ao baile vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar.


Alexandre O'Neill

11 fevereiro 2024

VI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 1,40-45

Naquele tempo,
veio ter com Jesus um leproso.
Prostrou-se de joelhos e suplicou-Lhe:
«Se quiseres, podes curar-me».
Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse:
«Quero: fica limpo».
No mesmo instante o deixou a lepra
e ele ficou limpo.
Advertindo-o severamente, despediu-o com esta ordem:
«Não digas nada a ninguém,
mas vai mostrar-te ao sacerdote
e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou,
para lhes servir de testemunho».
Ele, porém, logo que partiu,
começou a apregoar e a divulgar o que acontecera,
e assim, Jesus já não podia entrar abertamente
em nenhuma cidade.
Ficava fora, em lugares desertos,
e vinham ter com Ele de toda a parte.

08 fevereiro 2024

Poemas dos dias que correm

A cidade

Dizes: vou partir
Para outras terras, para outros mares
Para uma cidade tão bela
Como esta nunca foi nem pode ser
Esta cidade onde a cada passo se aperta
O nó corredio: coração sepultado na tumba de um corpo,
Coração inútil, gasto, quanto tempo ainda
Será preciso ficar confinado entre as paredes
Das ruelas de um espírito banal?
Para onde quer que olhe
Só vejo as sombras ruínas da minha vida.
Tantos anos vividos, desperdiçados
Tantos anos perdidos.

....................................................................................................

Não existe outra terra, meu amigo, nem outro mar,
Porque a cidade irá atrás de ti; as mesmas ruas
Cruzam sem fim as mesmas ruas; os mesmos
Subúrbios do espírito passam da juventude à velhice,
E tu perderás os teus dentes e os teus cabelos
Dentro da mesma casa. A cidade é uma armadilha.
Só este porto te espera,
E nenhum navio te levará onde não podes.
Ah! então não vês que te desgraçaste neste lugar miserável
E que a tua vida já não vale nada,
Nem que vás procurá-la nos confins da terra?

konstandinos kavafis
justine, lawrence durrell
tradução daniel gonçalves
ulisseia
2007 

06 fevereiro 2024

Sobre vidas destroçadas e atrasos da justiça

Na capa de um jornal, o título gordo: dez anos de luto e de luta. Por cima, a letras mais pequenas, um parágrafo de chamada para uma outra página: pais de jovens universitários que morreram no Meco e em Braga continuam com as vidas destroçadas e à espera de justiça. Neste momento não consigo citar de cor nenhuma notícia relativamente ao desgosto e procura de justiça pela morte de Sara Carreira, mas os termos serão semelhantes: vidas destroçadas, desgostos imensos - e a justiça que não se faz. 

Em momento algum este texto deve ser lido como uma diminuição da dor dos Pais (no sentido do conjunto de pai e mãe) dos estudantes que morreram; o mesmo se aplica à dor de Tony Carreira. Ainda que esteja mais perto de saber do que o comum dos mortais, só posso imaginar o sofrimento dos pais; cada um é como é e as circunstâncias da morte terão seguramente influência. Não é a dor deles que me traz aqui, nem sequer a exposição mediática que promoveram ou deixaram que fosse promovida. Não sou ninguém para fazer juízos sobre ambos os temas.

Ainda que esteja a ser potencialmente injusto, encontro nas expressões vidas destroçadas e à espera de justiça (no fundo, o que se pressente nas notícias sobre o julgamento do caso Sara Carreira) um nexo causal. Isto é, entre ambas as expressões parece haver uma relação de causa e efeito: as vidas destroçadas são-no (talvez também) por causa do atraso da justiça. O conjunto das expressões é que dá dimensão à notícia - afinal, por si só, uma vida destroçada não é tema para chamada de primeira página; e a morosidade da justiça tornou-se um banal.  

O assunto interessa-me pela dimensão conceptual humana. A forma como cada Pai que perde um filho se reconstrói é um tema que me toca por vários motivos. Ao longo dos últimos 20 anos fui lendo muito sobre isso - fases do luto, sentido da vida, histórias que se constroem e querem contar, necessidade de um corpo para encerrar um capítulo, etc. Nunca me tinha debruçado sobre a dor de um Pai cujo filho/a perde a vida por um motivo que requer intervenção de tribunais. É o castigo de um assassino ou do responsável por um acto (ainda que não voluntário) e que provoca a morte de um filho o que permite que alguém se reconstrua? 

Um olhar simplista sobre o assunto dos jovens universitários ou de Sara Carreira suscita uma pergunta imediata: a dor maior de perder um filho é imensa. Para quê andar a escarafunchar na ferida e querer que alguém seja dado como culpado? Porém, como disse, talvez este olhar seja simplista, e talvez seja necessário que se faça justiça para que se possa seguir em frente. A sentença é, assim, o corpo de que necessitamos para fazer o luto.

JdB

04 fevereiro 2024

V Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Marcos 1,29-39

Naquele tempo,
Jesus saiu da sinagoga
e foi, com Tiago e João, a casa de Simão e André.
A sogra de Simão estava de cama com febre
e logo Lhe falaram dela.
Jesus aproximou-Se, tomou-a pela mão e levantou-a.
A febre deixou-a e ela começou a servi-los.
Ao cair da tarde, já depois do sol-posto,
trouxeram-Lhe todos os doentes e possessos
e a cidade inteira ficou reunida diante da porta.
Jesus curou muitas pessoas,
que eram atormentadas por várias doenças,
e expulsou muitos demónios.
Mas não deixava que os demónios falassem,
porque sabiam qual Ele era.
De manhã, muito cedo, levantou-Se e saiu.
Retirou-Se para um sítio ermo
e aí começou a orar.
Simão e os companheiros foram à procura d’Ele
e, quando O encontraram, disseram-Lhe:
«Todos Te procuram».
Ele respondeu-lhes:
«Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas,
a fim de pregar aí também,
porque foi para isso que Eu vim».
E foi por toda a Galileia,
pregando nas sinagogas e expulsando os demónios.

02 fevereiro 2024

Moleskine

Frases soltas

Há muito anos, integrado num grupo de amigos relativamente fixo, desenvolvi um hábito totalmente irrelevante: no fim do jantar num restaurante - quase sempre em estabelecimentos baratos - começar a escrever frases que eram ditas à mesa. As frases eram escritas de forma solta, entre as nódoas de vinho tinto, de gordura ou de café. Não tinham de ter uma sequência lógica nem tinham de ser ditas pela mesma pessoa. Findo o jantar, dobrava-se a toalha e levava-se para casa. A leitura posterior da toalha gerava um exercício curioso - saber quem disse, porque disse, a que respondeu, o que foi respondido, o significado da frase. Acima de tudo - estavamos muito longe dessa fase, poderia ser um momento de imaginação.

Um dia destes, no paredão, ouvi uma senhora dizer para a outra: o problema é que ele gosta do seu café de manhã. Dei por mim a recuar 40 anos e a confrontar-me com uma toalha de papel cheia de frases. Em que circunstâncias é que gostar de um café de manhã é um problema? Seria alguém preso?

Um dia soube de alguém que comprava fotografias soltas na Feira da Ladra. Fotografias não identificadas, de pessoas desconhecidas, em locais muitas vezes desconhecidos. O exercício é o mesmo: uma frase solta - escrita ou dita - um retrato solto são pontos de partida para histórias de adivinhação.

***

 Filmes

Partilho com alguém que estou a ver A Paixão de Shakespeare pela enésima vez. Do lado de lá vem a graça: já só falta O Gladiador. A minha resposta é imediata: O Gladiador é um filme; a Paixão de Shakespeare é mais do que isso. 

Os filmes que nos são importantes são-no por diversos motivos: pela qualidade / beleza da banda sonora, pelo momento da vida em que os vimos, pela qualidade da interpretação, pela história, etc. A Paixão de Shakespeare tem várias virtudes: a actriz principal, a história, a aprendizagem da obra Romeu e Julieta mas, acima de tudo, tem uma dimensão de metáfora que me é particularmente agradável. Pode ver-se tudo - a beleza da actriz, o requinte do guarda-roupa, o enquadramento histórico, o desempenho dos actores, etc.  Acima de tudo isso está o diálogo:

- Estamos perdidos,
- Não, vai correr bem.
- Como?
- Não sei, é um mistério.

O encontro com a metáfora é o encontro com uma dimensão superior da estética. Há uma beleza e um encanto na metáfora que não devem ser descurados. Ensinar isto aos excessivamente racionais poderia ser uma obra de misericórdia.

JdB 

01 fevereiro 2024

Memórias para o dia de hoje


(...) 

Apesar do clima de grande tensão, o monarca optou por seguir em carruagem aberta, envergando o uniforme de Generalíssimo, para demonstrar normalidade. A escolta resumia-se aos batedores protocolares e a um oficial a cavalo, Francisco Figueira Freire, ao lado da carruagem do rei.

Há pouca gente no Terreiro do Paço. Quando a carruagem circulava junto ao lado ocidental da praça ouve-se um tiro e desencadeia-se o tiroteio. Um homem de barbas, passada a carruagem, dirige-se para o meio da rua, leva à cara a carabina que tinha escondida sob a sua capa, põe o joelho no chão e faz pontaria. O tiro atravessou o pescoço do Rei, matando-o imediatamente. Começa a fuzilaria: outros atiradores, em diversos pontos da praça, atiram sobre a carruagem, que fica crivada de balas.

Os populares desatam a correr em pânico. O condutor, Bento Caparica, é atingido numa mão. Com uma precisão e um sangue frio mortais, o primeiro atirador, mais tarde identificado como Manuel Buíça, professor primário, de 32 anos, expulso do Exército, volta a disparar. O seu segundo tiro vara o ombro do rei, cujo corpo descai para a direita, ficando de costas para o lado esquerdo da carruagem. Aproveitando isto, surge a correr de debaixo das arcadas um segundo regicida, Alfredo Costa, 28 anos, empregado do comércio e editor de obras de escândalo, que pondo o pé sobre o estribo da carruagem, se ergue à altura dos passageiros e dispara sobre o rei já tombado.

A rainha, já de pé, fustiga-o com a única arma de que dispunha: um ramo de flores, gritando “Infames! Infames!” O criminoso volta-se para o príncipe D. Luís Filipe, que se levanta e saca do revólver do bolso do sobretudo, mas é atingido no peito. A bala, de pequeno calibre, não penetra o esterno (segundo outros relatos, atravessa-lhe um pulmão, mas não era uma ferida mortal) e o Príncipe, sem hesitar, aproveitando porventura a distração fornecida pela atuação inesperada da rainha sua mãe, desfecha quatro tiros rápidos sobre o atacante, que tomba da carruagem. Mas ao levantar-se D. Luís Filipe fica na linha de tiro e o assassino da carabina atira a matar: uma bala de grosso calibre atinge-o na face esquerda, saindo pela nuca. D. Manuel vê o seu irmão já tombado e tenta estancar-lhe o sangue com um lenço, que logo fica ensopado.

A fuzilaria continua. D.ª Amélia permanece de pé, gritando por ajuda. Buíça volta a fazer pontaria (sobre o infante? sobre a rainha?) mas é impedido de disparar sobre a carruagem pela intervenção de Henrique da Silva Valente, simples soldado de Infantaria 12, que passava no local, e que se lança sobre ele de mãos nuas. Na breve luta que se segue o soldado é atingido numa perna, mas a sua intervenção é providencial. Tendo voltado o seu cavalo, o oficial Francisco Figueira carrega primeiro sobre o Costa, que ferido pelo príncipe é atingido por um golpe de sabre e preso pela polícia, e de seguida dirige-se a Buíça. Este ainda o consegue atingir numa perna com a sua última bala e tenta fugir, mas Figueira alcança-o e imobiliza-o com uma estocada.

Retirado daqui. Realço o gesto heróico do oficial Francisco Figueira, tio bisavô de um querido Amigo.

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