31 julho 2022

XVIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lc 12,13-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
alguém, do meio da multidão, disse a Jesus:
«Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo».
Jesus respondeu-lhe:
«Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?»
Depois disse aos presentes:
«Vede bem, guardai-vos de toda a avareza:
a vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens».
E disse-lhes esta parábola:
«O campo dum homem rico tinha produzido excelente colheita.
Ele pensou consigo:
‘Que hei-de fazer,
pois não tenho onde guardar a minha colheita?
Vou fazer assim:
Deitarei abaixo os meus celeiros para construir outros maiores,
onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens.
Então poderei dizer a mim mesmo:
Minha alma, tens muitos bens em depósito para longos anos.
Descansa, come, bebe, regala-te’.
Mas Deus respondeu-lhe:
‘Insensato! Esta noite terás de entregar a tua alma.
O que preparaste, para quem será?’
Assim acontece a quem acumula para si,
em vez de se tornar rico aos olhos de Deus».

28 julho 2022

Dos nossos panteões pessoais *

Funchal, Julho de 2022
Levy Strauss, nos Tristes Trópicos, cita Chateaubriand, mais ou menos assim - que a precisão não me acompanha hoje: 

Todos carregamos em nós um pequeno mundo composto por tudo o que vimos e amamos, a cujo santuário constantemente recolhemos, mesmo quando cruzamos e parecemos habitar um mundo estranho.

Cada um de nós tem os seus heróis - reais ou fictícios, que também com ficções se formam mentes. São pessoas que apreciamos, amamos, valorizamos, por quem temos apreço. São os escritores, os personagens mais marcantes da banda desenhada, os santos, os mártires, os amigos desaparecidos prematuramente, os músicos. Por outro lado, cada um de nós tem os locais das suas memórias, os livros, os cheiros. São, como já aqui escrevi um dia, as nossas famílias artificiais.

Beethoven, Bach, Eça, Mandela, Jesus Cristo, Corto Maltese, Santo Agostinho, João Paulo II, Vítor Damas, Yazalde, Melanie Safka, Janis Joplin, Amália e alguns poemas, o meu primeiro chefe na Lever, os padres que me ouvem, os amigos que me aconselham, os próximos que permanecem; rio de janeiro, praga, londres, áfrica, áfrica, áfrica, os açores; os grandes silêncios, as grandes conversas; o choro desinibido, a adolescência revisitada; os livros que me emocionam, as músicas que me elevam, a bondade que me comove.

O que une Beethoven, Corto Maltese e João Paulo II? Como junto pessoas que viveram em épocas diferentes, em realidades diferentes? No meu panteão pessoal. É nesse local que eles ganham uma importância semelhante, é lá que são verdadeiramente iguais, se irmanam num desiderato comum: fazer de mim uma pessoa melhor. Ali, nesse meu panteão, as diferenças não só se diluem, como potenciam a força que une estes e outros heróis. Ali nenhum é melhor do que o outro, porque são todos importantes. Por mais estranho que este raciocínio possa parecer.

Danielle S Allen, politóloga e escritora americana, escreveu muito sobre sociedade - sobre o que ela entendia ser uma connected society. Para ela há dois tipos de ligações: as bridging ties, que ligam pessoas diferentes, quer profissional, étnica, sócio-económica ou religiosamente, e as bonding ties, laços familiares, mais fáceis, que nos ligam à família e à comunidade imediata. E concluiu de forma evidente: as sociedades com mais sucesso são aquelas em que as principais instituições - escolas, universidades, empresas, órgãos políticos - promovem as bridging ties. Parece-me óbvio.

Os nossos panteões pessoais são micro-sociedades de sucesso, porque à volta de uma mesma mesa se junta a disparidade - Bach, Mandela, Santo Agostinho. Como poderíamos transformar estas micro-realidades em macro-realidades? De que forma o nosso panteão - todos os panteões juntos - tornaria as sociedades mais justas?  

Na minha mesa de cabeceira virtual está uma mala com as famílias artificiais que me compõem: o silêncio dos açores, o cosmopolitismo de londres, o requiem de mozart, o novo testamento, o logotipo da acreditar, o retrato dos meus mais próximos, o so long marianne do leonard cohen, o bom ladrão que pede para não ser esquecido. É lá que me recolho em tempos de borrasca interior.

Ver as famílias artificias dos outros pode ser um exercício de conhecimento alheio, mais do que de voyeurismo. Um activista anti-gay tem oscar wilde no seu panteão? Um fundamentalista religioso tem jesus cristo no seu panteão? Um pato-bravo da construção tem os açores como família artificial?

Para que serve este texto?

JdB   

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* publicado originalmente a 10 de Abril de 2014

26 julho 2022

Dos preconceitos

Para a MFM: podia ser uma praia na Sicília, mas é apenas junto à Fortaleza de S. Tiago do Funchal 

 Ao meu lado, uma pessoa classifica socialmente as pessoas que estão num determinado local: é tudo gente gorda. Do meu outro lado, outra pessoa classifica socialmente as pessoas que estão num determinado local: é tudo gente que fala alto. O que é comum a estas duas pessoas? O preconceito. O que separa estas duas pessoas? A forma como cada uma delas sente o mundo que a rodeia.

Como muitas outras famílias, fui criado com preconceitos - no meu caso, o preconceito era contra as pessoas maçadoras. Ninguém se importava com os gordos ou com aqueles que falavam alto. Acima de tudo, o intolerável era a gente que maçava o próximo e que, numa definição particularmente feliz, respondia sempre que se lhes perguntava como estavam. O maçador era, na verdade, esse tipo de pessoas: pergunta-se como estão e respondem

De certa forma é bom comentarmos que são todos gordos ou que falam todos altos ou que são todos maçadores. Porquê? Porque nos inclui numa falha comum, a do crescimento com preconceitos: os gordos, os barulhentos, os que maçam. Sou um preconceituoso auditivo, para além do pouco amor ao próximo com que rechaço quem me maça; isto é, não me incomodam os gordos. Ao meu lado, o preconceito é visual - a pessoa não se incomoda com os gritos, incomoda-se com a adiposidade. Por mais que aleguemos saúde pública, custos para o orçamento, etc., olhar com desprezo para um obeso é tão pouco cristão como olhar com desprezo para um adulto que grita ou que partilha com voz alta o que vai almoçar nesse dia.

Passei a vida a ouvir falar dos estetas, essa raça de gente que aprecia a beleza; nunca se fala dos estetas como uma característica, mas como uma qualidade de quem dá importância ao belo. Em bom rigor, não conheço ninguém que aprecie o feio... Não gostar de gente gorda ou de gente ruidosa é uma característica com que se nasce - há gente que apreende o mundo com os olhos, há gente que apreende o mesmo mundo com os ouvidos. 

Ver o preconceito nos outros é ver a humanidade nos outros, mesmo que isso faça de nós menos boas pessoas. O que já me taquina é achar que os gordos (como eu) são os alvos a abater no séc. XXI (por causa dos estetas), mas que não faz mal partilhar a vida aos gritos, seja num elevador, numa pastelaria, ou numa praia artificial na bela Madeira.

JdB

25 julho 2022

Poemas dos dias que correm

Asas fechadas
Asas fechadas são cansaço ou queda
Pedra lançada ou voo que repousa
Ai, meu sorriso a mim entrega
Que meu olhar não ousa
Asas fechadas, dizem dois sentidos
Ambos iguais e versos verticais
No teu sorriso só pressinto
Um sofrimento mais
Asas fechadas, desce quem subiu
Buscar a terra é ter fé lá no céu
Nos sorrisos indecisos
Outro sonho nasceu
Asas fechadas, sonho ou desespero
Ponto final ou ascensão sem par
Nestes sorrisos espero
Por não saber chorar
É prudente o silêncio
De quem só sabe sonhar

Luís de Macedo

24 julho 2022

XVII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lc 11,1-13

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Estava Jesus em oração em certo lugar.
Ao terminar, disse-Lhe um dos discípulos:
«Senhor, ensina-nos a orar,
como João Baptista ensinou também os seus discípulos».
Disse-lhes Jesus:
«Quando orardes, dizei:
‘Pai,
santificado seja o vosso nome;
venha o vosso reino;
dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência;
perdoai-nos os nossos pecados,
porque também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende;
e não nos deixeis cair em tentação’».
Disse-lhes ainda:
«Se algum de vós tiver um amigo,
poderá ter de ir a sua casa à meia-noite, para lhe dizer:
‘Amigo, empresta-me três pães,
porque chegou de viagem um dos meus amigos
e não tenho nada para lhe dar’.
Ele poderá responder lá de dentro:
‘Não me incomodes;
a porta está fechada,
eu e os meus filhos estamos deitados
e não posso levantar-me para te dar os pães’.
Eu vos digo:
Se ele não se levantar por ser amigo,
ao menos, por causa da sua insistência,
levantar-se-á para lhe dar tudo aquilo de que precisa.
Também vos digo:
Pedi e dar-se-vos-á;
procurai e encontrareis;
batei à porta e abrir-se-vos-á.
Porque quem pede recebe;
quem procura encontra
e a quem bate à porta, abrir-se-á.
Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe,
em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente?
E se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião?
Se vós, que sois maus,
sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
quanto mais o Pai do Céu
dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem!».

21 julho 2022

Rapazes... *

Falava da Argentina Santos com à vontade mas respeito, como compete às pessoas finas. Referia-se à Amália sem nunca usar a expressão diva porque, afirmava, há expressões calistas que já não podem ouvir-se. Comentava-se António dos Santos e sorria, lembrada do minh'alma de amor sedenta, ou do partir é morrer um pouco. Quando lhe perguntavam pelos sucessos fadistas sorria envergonhada, torcendo as pontas do xaile entre os dedos finos e bem tratados. Não gosto de falar disso, fui apenas uma rapariga com sorte. Conhecera Maria Teresa de Noronha que lhe ensinara, sem nunca lho dizer, que o Pintadinho era especial, ou se cantava muito diferente ou não se cantava porque era imitação. Comentava os discos do Camané, as saudades do Tony de Matos, a afinação irrepreensível da Hermínia, a injustiça de se associar o Max à mula da cooperativa. Discorria sobre o lundum, sobre a teoria da música portuária ou dos folhetos dos ceguinhos, da irrazoabilidade do fado ter nascido no mar, não obstante a beleza dos versos do Régio, superiores na frase os olhos ceguinhos de choro.... Sabia do fado Lopes ou do fado Anadia, das quadras glosadas em décimas, das afinações de Coimbra e Lisboa, da lenda das dez mil guitarras perdidas em Alcácer-Quibir... Conversava sobre fado, ouvia os outros, revelava um interesse sobre o mundo fadista nas suas várias vertentes - a história, as tendências, os contra-baixos, os mestres, a qualidade do som. 

Depois ia para casa. Sentava-se no seu peugeot, ajustava o espelho por onde via a perfeição da maquilhagem ou o surgimento de uma ruga, compunha uma madeixa de cabelo e ajustava a saia, que teimava em subir para níveis que não eram os dela. Talvez pusesse um pouco de baton, que a dignidade e a estética se mantêm numa festa ou no bulício do trânsito. E ia para casa, um terceiro esquerdo nas avenidas novas, decorado com um esmero simples. Sentava-se na sala ao lado de uma caixa com discos de 33 rpm, 45 rpm, mesmo 78 rpm. E alguns CD's: o Armandinho, o Artur Paredes ou o filho, o Menano, a Amália ou a Ercília Costa, os irmãos Moutinho, a Carminho ou o Vicente da Camara, o Tony de Matos sempre a apanhar a orquestra com elegância e saber. Na aparelhagem, o fado que se repetia sempre, sempre, ao longo da noite: de cada vez que te vejo / sinto um desejo canalha / beijar-te e marcar-te o beijo / c'oa ponta de uma navalha. Agarrava uma chave de fendas grande, afiada, e riscava os discos um a um - a Amália, o Vicente, o Tony, a Fernanda Baptista ou a Ada de Castro, o Marceneiro ou o Tristão da Silva. Riscava para trás e para a frente até à destruição total e irreversível. Depois daquele lote massacrado olhava com ar triste para o cabo da chave de fendas onde uma etiqueta revelava um pensamento de António Arroio: rapazes, não cantem o fado...   

JdB     

* publicado originalmente a 22 de Maio de 2015

20 julho 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 COVID CHEGOU AO FADO 

Depois de os dramas e tragédias terem inspirado fados famosos, Amália cometeu a proeza de trazer Camões, Pessoa, Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, O’Neill, José Régio para o canto mais popular do país, dando-lhe maior intensidade e sofisticação. Claro que a sua voz única e a sua gravitas transbordante de arte tornaram possível a transposição da boa poesia para a música. Alain Oulman assumiu o desafio musical, desencantando uma toada fresca para cada peça, em jeito de balada a que Amália sabia dar um cunho fadista. Embora as obras nascessem ao piano, eram depois sustentadas pelo ritmo ágil das cordas do trio guitarra, viola e baixo. Uma das junções antológicas dá vida ao poema de O’Neill – «Gaivota»: 


Dizia Amália que só cantava o que percebia, elegendo letras que corressem como água, para as sentir. Queria jogar-se por inteiro em cada nota, projectando na música as suas inquietações interiores. E o fado resultava no melhor veículo para expressar a sua alma melancólica e insaciável. A dupla Amália e Oulman deram som ao poema «Fado Português» de José Régio, cuja lírica mergulha naquela nebulosa onde lágrimas, despedidas, arte e morte se entrelaçam para tecer a trama de uma existência muito cantada e chorada, sob um fundo de céu e mar, à portuguesa. Adivinha-se por que o fado se entranhou em Amália, convertendo-se na sonoridade da sua ‘forma de vida’: 


  «FADO PORTUGUÊS

O Fado nasceu um dia
Quando o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava
Na amurada dum veleiro
No peito de um marinheiro
Que estando triste cantava
Que estando triste cantava

Ai que lindeza tamanha
Meu chão, meu monte, meu vale
De folhas flores frutas de oiro
Vê se vês terras de Espanha
Areias de Portugal
Olhar ceguinho de choro

Na boca de um marinheiro
Do frágil barco veleiro
Morrendo a canção magoada
Diz o pungir dos desejos
Do lábio a queimar de beijos
Que beija o ar e mais nada
Que beija o ar e mais nada

Mãe adeus, adeus Maria
Guarda bem no teu sentido
Que aqui te faço uma jura
Que ou te levo à sacristia
Ou foi Deus que foi servido
Dar-me no mar sepultura

Ora eis que embora outro dia
Quando o vento nem bulia
E o céu o mar prolongava
À proa de outro veleiro
Velava outro marinheiro
Que estando triste cantava
Que estando triste cantava

Ai que lindeza tamanha
Meu chão, meu monte, meu vale
De folhas flores frutas de oiro
Vê se vês terras de Espanha
Areias de Portugal
Olhar ceguinho de choro

Mais recentemente, o grande imitador de vozes, que é Canto e Castro, trouxe a comédia para o fado, observando o curso da história a partir de um saudável distanciamento humorístico. Inscrever-se-á mais na tradição do fado de Coimbra, com ecos trovadorescos, fazendo de tudo versos e árias para colorir os momentos marcantes do dia-a-dia. Através das muitas vozes de que Canto e Castro é capaz flui o «fado do recuperado» covid, como se fosse declamado por figuras conhecidas e inconfundíveis nos seus jeitos e trejeitos. Desfilam José Hermano Saraiva, António Costa, Cavaco Silva, D.Duarte, Alberto João Jardim e, por fim, Marcelo para o acorde final perlim-pim-pim:


Sobre a covid19 teve Herman uma das suas deixas divertidas e saudavelmente desmistificadoras: não se queixava de nenhum sintoma esquisito e achava-se completamente a salvo nos seus domínios de Azeitão, na boa companhia da mãe. Só se queixava por o palerma do vírus lhe ter atacado a roupa, encolhendo-a. Disse-o ao Alberto Gonçalves, em pleno primeiro confinamento, na Grande Entrevista de 21 de Maio de 2020.  

Felizmente, o fado espraiou-se também por várias das paragens onde chegaram os Portugueses, ecoando no Hemisfério Sul, por exemplo, na elite dos músicos brasileiros, provando quanto a arte desconhece fronteiras. Como não lembrar Maria Bethania a interpretar letra de Roque Augusto Ferreira («Por quem tu de consomes, coração?»), Chico Buarque no seu Fado Tropical (com a sua típica carga política) ou o duo de Carminho e Caetano Veloso? 


Se com Canto e Castro nos divertimos e surpreendemos a recordar os gestos, tiques e toadas dos vários protagonistas, com a arte de Amália e do dueto que junta Portugal com o Brasil só ocorre pedir SILÊNCIO, QUE SE VAI CANTAR O FADO!

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

19 julho 2022

Crónicas de um turista no Funchal

 


Não me parece que nas minhas várias vindas à Madeira tivesse passado pelo Seixal. Estive lá ontem e tirei estas duas fotografias. A primeira podia ser um cenário do Senhor dos Anéis; a segunda, embora pudesse ser nos Açores, lembrou-me algumas praias da Sicília, vá-se lá saber porquê...

Depois de um óptimo Domingo de "praia" (em bom rigor no Clube Naval) o dia amanheceu farrusco. No entanto, neste momento, nenhuma temperatura desce dos 21ªC, nenhuma temperatura sobe para além dos 24 ou 25ºC. 

O Funchal está pujante de turismo; vê-se isso nas ruas e nos restaurantes, o que é bom. Tal como no continente, não há pessoal para a restauração. Jantamos no Chalet Vicente e lamentamos não poder ir para a varanda: "gostávamos muito", dizem-nos, "mas não há pessoal que chegue". Apesar da escassez, o serviço é bom, simpático, educado, sem ser demasiado próximo. 

Tomar banho no mar da Madeira continua a ser uma experiência reconfortante; não há muitos banhos como este no mundo, estou certo. 

Fomos à missa na Capela da Penha de França. A cerimónia, celebrada por um padre novo com um comprimento de cabelo que escandalizaria os mais fundamentalistas, demorou 32 minutos e teve uma homilia muito inspirada. De facto, em meia dúzia de minutos explicou o que significa o calor do Verão para Abraão naquele dia específico (os momentos maus pelos quais cada um de nós passa) e a passagem de Marta e Maria, uma casa onde não havia pais (somos todos irmãos).

Apontamentos singelos de uma estadia funchalense.  

JdB    

18 julho 2022

Poemas dos dias que correm

 

Fui Pedir um Sonho ao Jardim dos Mortos

Fui pedir um sonho ao jardim dos mortos.
Quis pedi-lo, aos vivos. Disseram-me que não.
Os mortos não sabem, lá onde é que estão,
Que neles se enfeitam os meus braços tortos.

Os mortos dormiam... Passei-lhes ao lado.
Arranquei-lhes tudo, tudo quanto pude;
Páginas intactas — um livro fechado
Em cada ataúde.

Ai as pedras raras! As pedras preciosas!
Relâmpagos verdes por baixo do mar!
A sombra, o perfume dos cravos, das rosas
Que os dedos, já hirtos, teimavam guardar!

Minha alma é um cadáver pálido, desfeito.
As suas ossadas
Quem sabe onde estão?
Trago as mãos cruzadas,
Pesam-me no peito.
Quem sabe se a lama onde hoje me deito
Dará flor aos vivos que dizem que não?

Pedro Homem de Mello, in "Príncipe Perfeito"

17 julho 2022

XVI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Lc 10,38-42

Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus entrou em certa povoação
e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa.
Ela tinha uma irmã chamada Maria,
que, sentada aos pés de Jesus,
ouvia a sua palavra.
Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço.
Interveio então e disse:
«Senhor, não Te importas
que minha irmã me deixe sozinha a servir?
Diz-lhe que venha ajudar-me».
O Senhor respondeu-lhe:
«Marta, Marta,
andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
quando uma só é necessária.
Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada».

15 julho 2022

Das mudanças *

 A noção de aperfeiçoamento, o auto-conhecimento, a ambição do Céu como recompensa máxima, o sentido de sobrevivência ou o desejo de agradar atiram-nos para a mudança. A mudança é, paradoxalmente, a única constante da vida, e devemos mudar - ou pelo menos estar dispostos a. Não falo da mudança de emprego, de casa, de mulher ou de cão. Falo da mudança do que somos.

No livro Lo Specifico del Dottor Menghi (Italo Svevo) este cria um remédio que lhe anularia todas as emoções e lhe permitiria, por isso, criar melhor, pois as emoções só atrapalham o trabalho do artista. Esta pílula milagrosa (e o itálico reflecte alguma ironia...) provoca, obviamente, uma mudança profunda em quem a tomasse. Deixemos este caso mais radical e no domínio de uma certa ficção e baixemos ao terreno comezinho que é a nossa existência corriqueira: pode haver curas que matem um homem? Pode haver mudanças que nos descaracterizem de tal forma que possamos dizer que determinada cura matou determinada pessoa?

Somos egoístas, vaidosos, directivos, forretas, adictos, rancorosos, orgulhosos, preguiçosos. Apaixonamo-nos pelos outros apesar dos defeitos ou por causa dos defeitos? Até que ponto uma mudança pode ser de tal forma intensa que a pessoa já não é a mesma, foi despida do que a caracteriza para manter apenas uma pele? No fundo, como se fossemos uma roupagem que permanece sobre um interior que se altera em função das circunstâncias. E então, o manuel é um número de contribuinte perene, porque aquilo que ele é dentro de si é caduco. Quem é, então, o manuel?

Podemos replicar o raciocínio a uma potência infinitamente ridícula: o tratamento que elimina a agitação à maria e lhe dá, por isso, uma certa indiferença que ela nunca teve, curou ou matou? As cirurgias plásticas (por questões estéticas apenas) curam pessoas ou matam pessoas? Vou mais longe, usando um termo sensível: o prolongamento artificial da vida. O que significa, na realidade, prolongamento artificial? Significa que a vida tem um tempo definido? Alguém que se habituou a estar à cabeceira de moribundos afirmava que fica sempre algo de belo, quanto mais não seja a cor de uns olhos. Talvez matemos as pessoas - apesar de as mantermos vivas - quando já não as conhecemos, já não lhes revemos os beijos, o cheiro da pele, a tristeza dos outonos, os risos límpidos. 

Podemos curar e com isso curar, mas podemos curar e com isso matar. A diferença é tudo, e talvez não tenha importância, afinal...

JdB 

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* publicado originalmente a 16 de Outubro de 2014

14 julho 2022

O Fado, canção de vencidos

Parto hoje para umas curtas férias no Funchal, repetindo uma hábito anual - ainda que irregular. Face ao que se passa a nível de calor no continente, posso dizer com propriedade que vou para a Madeira apanhar bom tempo - prevê-se que as temperaturas oscilem entre os 19ºC e os 23ºC.  

Gosto de ir ao Funchal. Ando a pé, gozo a vista sobre o oceano que se vê da casa onde estou, tomo banhos em locais com pouca gente e nenhuma areia - os dois factores negativos numa praia. O mar não está frio e permite mergulhos do pontão - é um mar fundo, cavado, com alguma ondulação. Por outro lado, é difícil encontrar-se gente antipática ou pouco educada na Madeira. Como já aqui referi, os trabalhadores da restauração do Algarve deveriam ir à Madeira fazer um tirocínio. 

Maximilano de Sousa (Funchal, Madeira, 20 de janeiro de 1918 — Lisboa, 29 de maio de 1980) ficou (mais) conhecido pelos piores motivos: A Mula da Cooperativa e Casei com Um Velha, ambas, na minha opinião, de detestável gosto, apreciadas por quem gosta de coisas jocosas cantadas com sotaque. Mas Max foi um cantor e fadista de enorme sobriedade e bom gosto, tendo-nos deixado obra composta por si.  


Fiz leilão de mim

Talvez de razão perdida 
Quis fazer leilão da vida 
Disse ao leiloeiro; venda ao desbarato 
Venda o lote inteiro que de mim, estou farto 

Meus versos, que não são versos 
Atirei ao chão, dispersos 
P'ra ver se algum dia, um mundo pateta 
Por analogia diz que sou poeta 

Fiz leilão de mim 
E fui por fim apregoado 
E de mau que sou
Ninguém gritou "arrematado” 
Fiz leilão de mim
Tinhas razão minha almofada 
Com lances a esmo
Provei a mim mesmo 
Que não valho mais que nada 

Também quis vender meu fado 
Meu modo de ser errado 
Leiloei ternura, chamaram-me louco 
Mostrei amargura, o mundo fez pouco 

Depois leiloei carinho 
E em praça fiquei sozinho 
Diz-me a pouca sorte, que para castigo 
Até vir a morte, vou ficar comigo.

JdB

13 julho 2022

Poemas dos dias que correm

Paredão do Estoril, 2 de Maio de 2022, 06.52h

Eu sei

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo. 

António Gedeão

12 julho 2022

Da arquitectura

 A arquitectura / decoração interessa-me por vários motivos - nenhum deles muito relevante: a minha tese de doutoramento, cuja velocidade coloca o caracol na categoria de corredor de velocidade, aborda o tema da arquitectura; a ideia de decoração cruza-se na minha vida, porque vivo em casas onde é preciso decidir onde se põem os quadros, as cómodas e as pratas, quando as há; por último, cruzo-me com pessoas que falam disso, porque há um estilo de decoração que se prende com um estilo de vida. A decoração já não é apenas estética - é uma filosofia de vida.

Sinto que estou rodeado de pessoas que afirmam querer vidas cleans, isto é, despojadas, simples, felizes. Sinto que estou rodeado de pessoas que querem casas cleans, isto é despojadas, com cores claras e relaxantes, cheias de espaços vazios e paredes desnudas. No fundo, uma depuração muito grande ou, para usar uma expressão do arquitecto Mies van der Rohe, uma arquitectura de pele e osso

Não gosto de decorações depuradas. A ideia de casas vazais deprime-me; a ideia de leveza cansa-me. Enquanto Mies usava a expressão less is more para designar o seu estilo, Robert Venturi, um arquitecto nos seus antípodas, afirmava que less is bore. Tendo a concordar. 

Ceio sábado com amigos. Fala-se de casas, de arquitectura, de decoração. Alguém afirma que de uma casa clássica se consegue fazer uma casa moderna, mas que a inversa não é verdadeira. Na verdade, de uma casa moderna não se faz uma casa clássica. O argumento pretendia defender a ideia de que as casas modernas são menos versáteis. Já no fim da conversa, alguém afirmou: estas casas moderna, muito despidas, muito depuradas, não têm alma

Sei relativamente bem o que está por trás do meu desejo de casas cheias, de paredes repletas da sanca ao rodapé. Mas também sei que esta depuração em excesso, a utilização de cores muito claras, muito descansativas, acaba por fatigar. Se for verdade a afirmação do parágrafo anterior, quem gosta de viver numa casa sem alma?

JdB

11 julho 2022

Músicas dos dias que correm

 


Nisi Dominus - que dá o nome à peça, é tirado do texto latino do Salmo 127 (126). O nome vem do incipit do salmo: Se não for o Senhor...

***

1271Cântico de peregrinação. Salmo da coleção de Salomão.

Se não for o Senhor a edificar a casa,

em vão trabalham os construtores.

Se não for o Senhor a guardar a cidade,

em vão vigiam as sentinelas.

2De nada vos serve trabalhar de sol a sol

e comer um pão ganho com tanta fadiga,

quando Deus é que dá a prosperidade aos seus fiéis.

3Os filhos são uma herança do Senhor,

eles são a sua recompensa.

4Os filhos nascidos na nossa juventude

são como flechas nas mãos dum guerreiro.

5Feliz o homem que tem muitas dessas flechas!

Não será envergonhado pelos seus inimigos,

quando tiver de se defender diante dos juízes.

10 julho 2022

XV Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lc 10,25-37

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
levantou-se um doutor da lei
e perguntou a Jesus para O experimentar:
«Mestre,
que hei-de fazer para receber como herança a vida eterna?»
Jesus disse-lhe:
«Que está escrito na lei? Como lês tu?»
Ele respondeu:
«Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma,
com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento;
e ao próximo como a ti mesmo».
Disse-lhe Jesus:
«Respondeste bem. Faz isso e viverás».
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
«E quem é o meu próximo?»
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Um homem descia de Jerusalém para Jericó
e caiu nas mãos dos salteadores.
Roubaram-lhe tudo o que levava, espancaram-no
e foram-se embora, deixando-o meio morto.
Por coincidência, descia pelo mesmo caminho um sacerdote;
viu-o e passou adiante.
Do mesmo modo, um levita que vinha por aquele lugar,
viu-o e passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem,
passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão.
Aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada,
levou-o para uma estalagem e cuidou dele.
No dia seguinte, tirou duas moedas,
deu-as ao estalajadeiro e disse:
‘Trata bem dele; e o que gastares a mais
eu to pagarei quando voltar’.
Qual destes três te parece ter sido o próximo
daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
O doutor da lei respondeu:
«O que teve compaixão dele».
Disse-lhe Jesus:
«Então vai e faz o mesmo».

08 julho 2022

Das diferenças *

Maria gostava de sentir-se uma mulher disponível mas Manuel, o seu marido, apreciava-lhe sobretudo a capacidade organizativa;
Joaquim gostava de sentir-se um líder nato mas Marta, a sua mulher, apreciava-lhe sobretudo o sentido de humor;
Carlos gostava de sentir-se um homem generoso mas Francisco, um amigo de longa data, apreciava-lhe sobretudo a inteligência;
Isabel gostava de sentir-se uma mulher muito despachada mas Joana, uma amiga de longa data, apreciava-lhe sobretudo a independência.
Etc.

***

Atentamos nestas condições iniciais, que poderiam replicar-se quase até ao infinito de possibilidades, e desconfiamos que La Palice não diria melhor. Olhamos para dentro de nós e orgulhamo-nos de algumas qualidades; os outros olham para dentro de nós e apreciam algumas qualidades. Num mundo perfeito, redondo sem achatamento dos pólos, as qualidades que mais apreciamos em nós coincidiriam com as qualidades que os outros mais apreciam em nós. Isto é, haveria uma concordância total. A disponibilidade de Maria seria apreciada pelo Manuel, a liderança de Joaquim apreciada pela Marta, e assim sucessivamente. Ora, acontece que esta perfeição do mundo é uma inexistência. Felizmente, estou em crer. 

As nossas relações afectivas (e excluo destas lucubrações as relações filiais ou fraternas) têm uma componente egoísta. Parece-me isto de uma verdade indesmentível. Passe a estranheza ou improbabilidade de algumas relações, o facto é que nos relacionamos (genericamente falando) com as pessoas com quem temos afinidades - sociais, de objectivos, de educação, de feitio. Quando olhamos para o nosso cônjuge ou para os nossos amigos mais próximos, apreciamos as qualidades que nos dão prazer ou jeito, independentemente da miríade de outras virtudes que a pessoa possa ter. Não amamos incondicionalmente, sem critério, altruisticamente, numa generosidade de santo. É óbvio que Manuel olha para Maria e reconhece-lhe a disponibilidade, como Joana olha para Isabel e reconhece-lhe o despacho. Mas, no fundo, apreciam principalmente a capacidade organizativa e a independência, porque lhes dá jeito, porque os seus interiores privilegiam isto em detrimento daquilo.

Há um certo egoísmo na forma como amamos. A questão em apreço é esta: quanto de egoísmo pomos no modo de amar? Cada um de nós quer sentir-se especial e único face ao amigo mais próximo, ao cônjuge com quem partilha a vida. Ora, para isto acontecer, Marta tem de apreciar, sobretudo, a liderança nata de Joaquim, e Francisco de apreciar, também sobretudo, a generosidade de Carlos. Qual é a probabilidade disto acontecer numa relação afectiva? Não faço a menor ideia. O que acontece é que, frequentemente, valorizamos no outro qualidades às quais ele dá importância diminuta, sendo que a inversa também é verdadeira. É errado? Não. Talvez seja apenas maçador, e isso, numa relação, pode ser fonte de frustração, de um certo tédio de morte.  

Alguém de quem sou muito amigo dizia - e já o repeti aqui - que das frases que mais a irritava no próximo era a singeleza com que algumas pessoas afirmavam: eu só quero ser feliz. Proferiam-no revirando os olhos da alma ao advérbio, como se a felicidade tivesse a simplicidade de um gelado, e o maldito destino se entretivesse a destruir esse desfrute a que todos teríamos obsessivamente direito, como o cidadão o tem ao serviço nacional de saúde. 

JdB

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* publicado originalmente a 19 de Março de 2014 

06 julho 2022

Carta a um anjo

 Nasceste hoje, mas há 28 anos.

***

Dizer que não há um dia em que não te lembremos é já uma frase batida. No entanto, esta persistente memória não decorre apenas de um pensamento que não dominamos, ou de episódios que se agarram à nossa existência como um passageiro que alterna entre o amável e o doloroso. Esta persistente memória decorre, também, do que decidimos fazer com aquilo que nos acontece. 

Há uma semanas, pessoa que não conheço pessoalmente (fui colega de trabalho do Pai) pediu-me para prefaciar o livro que escrevera. O livro, uma espécie de autobiografia misturada com auto-ajuda misturada com catarse, é um soco no estômago. Falarei dele quando a altura chegar, mas revelo apenas que, após momentos muito difíceis na vida desta mãe, o filho - de sete anos - foi diagnosticado com um cancro. 

Do outro lado do Atlântico, uma enfermeira, mãe de um filho pequeno que perdeu a luta contra o cancro, escreve-me com dúvidas de alma. E o cancro com que foi - ela própria - diagnosticado agora? É uma consequência de um luto mal feito? Qual o impacto do cancro infantil nas pessoas, nas relações, na maneira de olhar o mundo? Que sentido dá ela à vida? O que pode ela fazer com aquele sofrimento? 

Não conheço pessoalmente as pessoas sobre as quais escrevi mesmo agora mas, quando as encontrar, seremos amigos de sempre que se abraçam comovidamente. O que liga as pessoas são estas fragilidades, esta confiança num outro que não conhecemos mas com o qual partilhamos dúvidas, esperanças, lágrimas que não nos envergonham. Há uma comunidade virtual que se forma, mais forte do que muitas comunidades físicas. Somos todos sócios de um mesmo clube cuja password é o seu filho pequeno tem cancro. E somos sócios de um mesmo clube onde queremos fazer qualquer coisa, seja pela mais pura abnegação, seja porque não somos nada, apenas farrapos, se não nos agarrarmos a estas causas, às dúvidas do outro, às ansiedades do outro, às nossas próprias dúvidas e ansiedades.

***

Nasceste hoje, mas há 28 anos. O teu nascimento abriu as portas de um mundo que não sabíamos que existia, mas que nos transformou. Não somos os mesmos, não seremos os mesmos.

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu 

JdB, em nome de todos os que te lembram

Vai um gin do Peter’s ?

 A VIDA PARA JEAN D’ORMESSON

Na pagela distribuída na Missa de Corpo Presente de um grande amigo, que entrou na eternidade, na noite de Domingo, cita-se o texto que o escritor francês da Academia Francesa – Jean d’Ormesson (1925-2017) – dedicou à vida e à importância de todos os que cruzam o nosso caminho. 

D’Ormesson tinha a raridade de mostrar um optimismo invulgar nas elites do Velho Continente, recomendando a esperança, achando possível ser feliz, confiando que até o sofrimento teria algum sentido, cultivando um humor soft, em geral, limpo de sarcasmos e sendo maximamente agradecido à vida. São frases suas: 

- «Ce qui éclaire l’existence, c’est l’esperance»; 

- «Un hosanna sans fin. Disons les choses avec simplicité, avec une espèce de naïvet: il me semble impossible que l'ordre de l'univers plongé dans le temps, avec ses lois et sa rigueur, soit le fruit du hasard. Du coup, le mal et la souffrance prennent un sens - inconnu de nous, bien sûr, mais, malgré tout, un sens»;  

- «Je crois en Dieu parce que le jour se lève tous les matins, parce qu'il y a une histoire et parce que je me fais une idée de Dieu dont je me demande d'où elle pourrait bien venir s'il n'y avait pas de Dieu.»

A metáfora de d’Ormesson sobre uma existência muito preenchida por família e amigos, fez boa companhia ao meu amigo, que geriu com fé cristalina e enorme coragem o cerco de um cancro feroz. Deixou-nos com a mesma tranquilidade de um outro amigo – o Pe. António Vaz Pinto, SJ –, que encarava a morte sem receio, embora gostasse de viver: «Sempre tive uma óptima relação com a morte. A morte é a porta da ressurreição. Por isso, se me disserem que vou morrer amanhã, não me afecta nada. Não preciso de mais de um quarto de hora. É só mudar de casa». 

Na pagela vem a tradução em português, aqui postada ao lado do original de Jean d’Ormesson: 



Numa das suas entrevistas antológicas, já com bastante idade, d’Ormesson confirmou por que foi alcunhado de ‘embaixador da alegria’:


Na sua longa vida de 92 anos, o escritor não foi poupado a tempos conturbados. Numa breve amostra: na sua juventude, França esteve ocupada pelos nazis e Paris à mercê das cruéis SS. Seguiu-se a guerra na Argélia e um processo de descolonização violento. Em plena Guerra Fria, já perdida a Indochina (ex-colónia francesa) e com o Vietname a ferro e fogo, as avenidas de Paris encheram-se de uma multidão de estudantes a gritar palavras de ordem, ao mesmo tempo que atirava pedras à polícia, espatifava montras e deixava um rasto de destruição à sua passagem. Corria o mês de Maio de 68 e o mundo presenciava o luxo dos que podiam rebelar-se com a fogosidade própria da juventude. No lado da Cortina de Ferro, os estudantes checos (que apenas pediam alguma liberdade e nada partiram) eram esmagados pelas lagartas dos tanques russos e Álvaro Cunhal ia num deles, o que lhe valeu ser condecorado pelo presidente soviético Brejnev. Na cidade de Praga, aquela Primavera de 1968 soube a Inverno e a inferno. Os anos 70, ficaram marcados pelo choque petrolífero e alguma regressão económica no Ocidente, enquanto perduravam regimes totalitários na China, no Vietname, na Coreia do Norte, surgia o do Cambodja, etc. No final dos anos 80, viveu-se uma fase de alívio iniciada após a Queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS – a maior prisão que o mundo conheceu. Já o século XXI, foi inaugurado com o ataque às Torres Gémeas e uma onda de terrorismo temível. Entretanto, as guerras regionais continuavam a pulular em vários pontos do globo, incluindo na Europa (depois da ex-Jugoslávia, nos anos 90, veio a invasão de parte da Geórgia por Putin, em 2008 e a Crimeia, em 2014). Mesmo assim, para lá de todas as tribulações (e este elenco é simbólico), d’Ormesson quis ser feliz, dia após dia. Somou, assim, ao talento literário a grande arte de tomar a realidade pelo ângulo mais positivo e interessante. Daí o olhar sorridente e aberto, que sempre o acompanhou e lhe permitiu descobrir o melhor de cada momento.


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

05 julho 2022

Textos dos dias que correm

Os Convencidos da Vida

Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.
Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força.
Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista.
Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se?
(...) No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil.
Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro.
Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi.

Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"

04 julho 2022

Das capas das revistas

 


Já uma vez escrevi sobre as capas da ditas revistas cor-de-rosa. Em querendo basta seguir o link - em quatro anos pouco ou nada mudou.

A revista Mariana (quem será a Mariana que dá nome a uma revista?), publicada a 2 de Julho deste ano suscitou a minha atenção. Porquê? Por duas ordens de razão, a primeira prendendo-se com o facto de falar menos de telenovelas do que algumas revistas semelhantes. Por junto ficamos a saber que Ana Carolina deixa Carlos - quem quer que seja a Ana Carolina e o Carlos, e qualquer que seja a telenovela.

O que me suscita sempre curiosidade e interesse nestas capas são os títulos que, quais teasers, suscitam os incautos - ou apenas interessados - a comprar a revista para lerem os detalhes que estão no interior. Ao contrário dos jornais iminentemente desportivos ou económicos, uma revista como a Mariana é eclética, e isso percebe-se na capa - apelativa, diversa, desafiante. Assim, em conselho de redacção, o que foi considerado relevante para uma chamada de capa?

- a frase "chocante" de Fernanda Antunes que afirma não "esperar estar cá muito tempo";

- a Dra. Esmeralda Martins que fala de saúde oral;

- Bruna, que surpreende, ao procurar emprego por amor a Bernardo;

- a defesa dos oceanos;

- por último, mas seguramente não menos importante, o facto de Ronaldo injectar botox nos genitais.

Por si só, cada um destes temas é susceptível de um número próprio: o luto de uma mãe que, segundo sei, tem dois filhos vivos. 

(Enquanto pai que perdeu uma filha poderia discutir o destaque que se dá a este drama e as frases que os pais dizem de si próprios ou a este respeito, mas não vou fazê-lo.)

O facto de Bruna procurar emprego por amor a Bernardo não deixa de me surpreender. Talvez por viver numa bolha privilegiada, nunca conheci ninguém que procurasse emprego por amor ao companheiro/a. As pessoas podem procurar uma ocupação / emprego por uma questão de ética de vida, de realização profissional ou pessoal, de necessidade financeira. Mas por amor? Não sabendo o suporte financeiro de Bruna (e do Bernardo só o que se diz nas revistas) imagino-a a ser empregada numa pastelaria ou numa repartição com milhões num banco. Chega a casa a cheirar a croissant ou com os dedos crivados de agrafes, mas o amor a Bernardo tudo justifica. Amar perdidamente, com amou desgraçadamente Florbela Espanca, tem agora uma conotação diferente - a inscrição numa folha de pagamentos, com direito a 13º e 14º meses e, numa futura modernidade, uns dias por mês para aquilo que não escolhe dia nem hora.

Sobre a defesa dos oceanos e sobre a Dra. Esmeralda Martins, que falará de saúde oral, nada tenho a dizer - parecem-me temas relevantes e actuais, sobre os quais tudo o que se diga é pouco, estou certo. Gostaria de falar sobre as injecções de botox nos genitais de Ronaldo mas, confesso, sou vencido pelo pudor e pela ignorância. Para que quer ele injectar botox nos genitais? Para perder as rugas? Para eliminar os papos ou os pés de galinha? E teremos fotografias no interior sobre os interiores de Cristiano? 

A revista Mariana não me suscita qualquer interesse pelos temas propostos na capa. O que me chamou a atenção foi o facto de estarem todos na capa - os genitais de Ronaldo, o drama de Fernanda Antunes, a saúde oral da Dra. Esmeralda, o emprego de Bruna por amor. O facto de Ana Carolina deixar Carlos é a nota dissonante, porque a ficção não ultrapassa a realidade.

JdB

03 julho 2022

XIV Domingo do Tempo Comum

 Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
designou o Senhor setenta e dois discípulos
e enviou-os dois a dois à sua frente,
a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir.
E dizia-lhes:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao dono da seara
que mande trabalhadores para a sua seara.
Ide: Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos.
Não leveis bolsa nem alforge nem sandálias,
nem vos demoreis a saudar alguém pelo caminho.
Quando entrardes nalguma casa,
dizei primeiro: ‘Paz a esta casa’.
E se lá houver gente de paz,
a vossa paz repousará sobre eles:
senão, ficará convosco.
Ficai nessa casa, comei e bebei do que tiverem,
que o trabalhador merece o seu salário.
Não andeis de casa em casa.
Quando entrardes nalguma cidade e vos receberem,
comei do que vos servirem,
curai os enfermos que nela houver
e dizei-lhes: ‘Está perto de vós o reino de Deus’.
Mas quando entrardes nalguma cidade e não vos receberem,
saí à praça pública e dizei:
‘Até o pó da vossa cidade que se pegou aos nossos pés
sacudimos para vós.
No entanto, ficai sabendo:
Está perto o reino de Deus’.
Eu vos digo:
Haverá mais tolerância, naquele dia, para Sodoma
do que para essa cidade».
Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo:
«Senhor, até os demónios nos obedeciam em teu nome».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago.
Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões
e dominar toda a força do inimigo;
nada poderá causar-vos dano.
Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem;
alegrai-vos antes
porque os vossos nomes estão escritos nos Céus».

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