Tudo neste videoclip é bom: o próprio bolero, o nome do bolero (gosto da palavra perfídia), a sensualidade displicente das cantoras, o preto e branco, a possibilidade de serem uma pessoa apenas, tão parecidas que são. A cereja em cima do bolo? O computador Apple, para nos trazer à terra. Tudo nos atira para 1939, quando músico mexicano Alberto Domínguez, num rasgo de criatividade imortal, nos ofereceu esta música. Podemos imaginar-nos na Cuba de Fulgencio Batista Zaldivar e nas noites de folia tropical em Havana. Podemos imaginar tudo isso, mas o computador devolve-nos à Terra, mata-nos o devaneio, retira-nos a ânsia de uma Cuba libre - nos seus mais amplos sentidos.
JdB
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Nadie comprende lo que sufro yo canto pues ya no puedo sollozar solo temblando de ansiedad estoy todos me miran y se van
mujer si puedes tu con Dios hablar preguntale si yo alguna vez te he dejado de adorar y al mar, espejo de mi corazon las veces que me han visto llorar la perfidia de tu amor
te he buscado donde quiera que yo voy y no te puedo hallar para que quiero otros besos si tus labios no me quieren ya besar y tu quien sabe por donde andaras quien sabe que aventuras tendras que lejos estas de mi
Franz Kappus escreve a Rainer Maria Rilke confessando-lhe como o passar das suas tristezas é perturbador. Na sua resposta de 12 de Agosto de 1904, Rilke incita-o a considerar se essas grandes tristezas não passaram antes através de si; e diz-lhe: se nos fosse possível ver mais longe do que o nosso conhecimento alcança, e um pouco além dos limites das nossas intuições, talvez então suportássemos as nossas tristezas com mais convicção do que as nossas alegrias». E acrescenta: por que razão haveria de querer excluir da sua vida toda a inquietação, toda a dor, toda a depressão de espírito, quando não sabe que trabalho é que esses estados estão a realizar dentro de si?
Estas pequenas citações dariam para um artigo sobre tristeza. Mas eu, anarco-revolucionário naquilo que não afecta a riqueza das nações nem a pureza dos costumes, quero fazer um find / replace, e, onde se lê tristeza, passar a ler-se erro. Porquê? Por um motivo prosaico. Afinal, na minha ronda de leituras desta manhã, cruzei-me com o poema abaixo que fala disso mesmo - de erro. E fala, numa leitura minha, pessoal, do erro como espaço fecundo de aprendizagem ou, porque não, do erro de certa forma redentor, que abre espaço à construção de um destino promissor. Não é isto que o poeta quis dizer? Não faz mal, a mim dá-me jeito esta leitura.
JdB
* [Texto aproveitado de um artigo publicado na revista Brotéria (Agosto - Setembro 2024), intitulado Onde firmar os pés sem chão. Manual para ser inteiro, com Santa Teresa do Menino Jesus, de Eduardo Amaral, sj]
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Dado o caso
Escolhe entre os erros que tens à tua disposição, mas escolhe certo. Talvez seja errado fazer o que está certo no momento errado, ou esteja certo fazer o que é errado no momento certo? Um passo ao lado, imposível de corrigir. O erro certo, uma vez desaproveitado, não é fácil que volte a surgir.
Hans Magnus Enzenberger (1929 - 2022) In "66 Poemas" (Tradução de Alberto Pimenta)
CRIATIVIDADE DA MADRE TERESA E DO TURISMO PORTUGUÊS
A 5 de Setembro, o meu Pai faria 100 anos. Que saudades daquele grande senhor, pai e professor, por profissão e por vocação, que partiu há 10 anos! Desde 1997, o 5 de Setembro passou a ficar associado à Madre Teresa de Calcutá, festejando o dia da sua morte que, à luz da fé, correspondeu ao nascimento para a eternidade. São incontáveis os episódios e as suas respostas antológicas, em especial com os mais frágeis e também com os mais críticos do seu trabalho junto dos indigentes do planeta. Ainda assim, recebeu inúmeras mostras de consideração, começando pelo Nobel da Paz, em 1979, o acolhimento com honras de Estado nas Nações Unidas e noutros palcos internacionais de prestígio. Diz muito a maior nação hindu do mundo ter colocado a bandeira indiana sobre a sua urna, quando desfilou pelas longas avenidas de Calcutá, sob um sol escaldante, enquanto as multidões se aglomeravam para uma homenagem pública muito sentida.
Um dos moribundos de uma viela infecta dos bairros proscritos de Calcutá, que morreu nos seus braços, desabafou: «eu que vivi como um cão, vou morrer como e com um anjo». Um magnata ocidental, a quem a Madre Teresa pediu dinheiro para construir uma das suas casas da Caridade, cuspiu-lhe na mão que a mãe dos pobres lhe estendera. Mas ficou desarmado com a reacção da pequena missionária, que recolheu para si a mão com a cuspidela e lhe estendeu a outra: «Certo, isto é para mim. E agora, para os pobres» (abrindo a palma da outra mão). Tocado, o magnata entregou-lhe um cheque generoso.
Contou um jornalista espanhol, que se encontrou com a Madre Teresa na casa das Irmãs da Caridade, em Nova Iorque, ter aproveitado a ocasião para a criticar frontalmente por aquele tipo de trabalho, taxando-o de paternalismo eivado de assistencialismo ineficaz. E instava a missionária a adoptar uma intervenção mais política, cheio de conselhos sobre os métodos para erradicar a pobreza. Enquanto se afadigava numa argumentação acalorada (segundo o próprio) baseadas nas suas muitas teorias, a M.Teresa ouvia-o silenciosa e continuava a visita ao berçário das Irmãs, dando festas a um dos bebés abandonados, mudando fraldas a outro, segurando o biberon de outro. Quando se ouviu um choro mais intenso, a Madre acorreu ao bebé desesperado, pegou-lhe ao colo, acalmou-o e depois posou-o nos braços do jornalista para socorrer outro recém-nascido, que começara a chorar. Depois da surpresa inicial, o espanhol olhou para o bebé (confessou, mais tarde, que era a primeira vez que o fazia, naquele berçário), segurou-o com cuidado e, comovido, mudou o chip e converteu-se. O bebé de carne-e-osso com nome, que lhe fora confiado pela missionária albanesa, resultara na melhor definição do que era a caridade real, capaz de chegar a quem precisa.
Sem ideias feitas, nem teorias, a Santa de Calcutá partilhou algumas das melhores dicas sobre o amor profundo, à escala humana, que suplanta todas as diferenças de etnia, religião, idade, sexo, nacionalidade, matriz cultural, condição social, etc. apenas interessada em ajudar. É eloquente a atitude tolerante e aberta com que ajudou pobres de outras confissões religiosas, assim como agnósticos e ateus, com o objectivo maior de lhes aliviar o sofrimento:
«As pessoas boas merecem o nosso amor; as pessoas más precisam dele.»
«If you judge people, you have no time to love them.»
«Peace begins with a smile. (…) Every time you smile at someone, it is an action of love, a gift to that person, a beautiful thing.»
«If we have no peace i tis becausse we have forgotten that we belong to each other.
«We fear the future, because we are wasting the present. (…) Yesterday is gone…»
«Not all of us can do great things. But we can do small things with great love.»
Bio telegráfica desta mulher que teve a coragem de ir até às periferias infra-humanas da sociedade: nascida no seio de uma família católica da Albânia (então território da Macedónia), em 1910, Agnes Gonxha Bojaxhiu cedo revelou vocação para missionária. Aos 18 anos, entrou para a congregação das Irmãs de Nossa Senhora do Loreto. Começou na Irlanda, mas rapidamente seguiu para um convento na Índia, onde dava aulas. Volvida uma década de vida pacata, pediu dispensa para fundar uma nova congregação, que cuidasse dos muitos sem abrigos com que se deparou. Assim nasceram as «Irmãs da Caridade». Em 1948, já sob o nome de Teresa, adquiriu nacionalidade indiana. Com o Nobel da Paz (1979), a sua obra ganhou projecção mundial, impressionando pela dedicação aos mais desprotegidos, sem medo de contrair doenças, nem repugnância pela degradação humana extrema, que procurava aliviar. Foi beatificada em 2003 e canonizada em Setembro de 2016, pelo Papa Francisco.
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É português o filme premiado, em 2023, com o galardão do Melhor Filme de Turismo do Mundo, no festival de Valência. «ALMA DE Lû («A Soul Made from Wool») foi rodado em 2022 para dar a conhecer a beleza subtil e aconchegante do interior do país, numa zona raiana, onde os lanifícios e a serrania pedregosa se impõem. Sob uma banda sonora magnífica, o mosaico variado de actividades daquela região fluem em acelerado, numa sequência plástica sumamente artística, que fusiona recortes da paisagem montanhosa com teares e outros elementos da região. O argumento parte da história do herdeiro de uma fábrica de lanifícios arruinada, na Covilhã, que Francisco converteu num laboratório de artesanato criativo e experimental, cognominado New HandLab. A arte, o engenho e a boa vontade resgataram da falência uma velha indústria ameaçada de extinção, reenquadrando o saber milenar de artífices anónimos:
Também da Covilhã, outro filme premiado (com um bronze) tem um título igualmente poético para promover Pampilhosa da Serra, Arganil e Góis. A história segue o olhar curioso, inexperiente e límpido de uma criança, para a redescoberta de uma paisagem diferente, mas que nos cansámos de banalizar por falta de silêncio e de simplicidade para lhe reconhecer o fascínio e até a magia:
Por seu turno, a medalha do público recaiu sobre a curta-metragem de Leonel Vieira, dedicada à vila fronteiriça do Alto Minho – Monção – orgulhosa dos seus pergaminhos ancestrais:
Igualmente de inspiração medieva, o Museu do Oriente (parte Norte da Doca de Alcântara) oferece um concerto a 30 de Setembro, às 19h00, onde serão interpretadas cantigas das três grandes culturas que se entrecruzaram na Península Ibérica, nos séculos XIII e XVI: cristã, sefardita e árabe. Eduardo Ramos será o vocalista e tocador do alaúde árabe, enquanto Carlos Mendonça o acompanhará à flauta e na percussão. O espectáculo integra-se no Ciclo de Concertos da Antena 2, com entrada livre, mas sujeito à lotação da sala, pelo que será necessário levantar bilhete no próprio dia.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
As frases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dito à minha inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho frases inteiras, perfeitas palavra a palavra, contexturas de dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movimento métrico e verbal de grandes poemas em todas as palavras e um grande entusiasmo, como um escravo que não vejo, segue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde queria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do nexo vital que uniu o murmúrio rítmico não fica mais que uma saudade longínqua, um resto de sol sobre montes afastados, um vento que ergue as folhas ao pé do limiar deserto, um parentesco nunca revelado, a orgia dos outros, a mulher, que a nossa intuição diz que olharia pra trás, e nunca chega a existir.
Bernardo Soares, in "Livro do Desassossego"
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Eu Queria Ter o Tempo e o Sossego Suficientes
Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes
Para não pensar em coisa nenhuma,
Para nem me sentir viver,
Para só saber de mim nos olhos dos outros, reflectido.
Naquele tempo, Jesus deixou de novo a região de Tiro e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole. Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele. Jesus, afastando-Se com ele da multidão, meteu-lhe os dedos nos ouvidos e com saliva tocou-lhe a língua. Depois, erguendo os olhos ao Céu, suspirou e disse-lhe: «Effathá», que quer dizer «Abre-te». Imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente. Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém. Mas, quanto mais lho recomendava, tanto mais intensamente eles o apregoavam. Cheios de assombro, diziam: «Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».
Tenho do ténis, como tenho de todo o desporto, uma visão amadora. Nunca tendo praticado de forma sustentada nenhum desporto, sou atraído pelo que me diverte ou entretém, pela estética, pela qualidade que identifico com o meu olhar pouco sabedor. Do ponto de vista dos tenistas a minha ordem de preferência vai (sem ser forçosamente por esta ordem) a nacionalidade, se são canhotos ou destros, uma certa elegância a jogar. Por isso nunca gostei do Nadal; embora canhoto e espanhol (a favor / nada contra), sempre lhe encontrei uma certa rudeza - seja física, seja na forma como joga. E por isso sempre gostei do Federer; embora destro e suiço (nada contra / menos a favor) sempre lhe encontrei uma certa elegância, seja física, seja na forma como joga. e até na forma de se exprimir.
Pessoas próximas falaram-me e enviaram-me este video, que fala na ligação entre o ténis e o ballet. Vale a pena ver, até porque são pouco mais de 3 minutos. Achei curioso, porque explica muito do meu gosto por ver o Federer jogar.
Nunca fui homem dado a pesadelos, felizmente. Mesmo nos tempos mais desafiantes da minha vida - e alguns foram-no - o meu maior pesadelo era acordado: a certeza da insónia e do que a provocava. Nunca acordei a suar, com taquicardia ou com uma sensação de pânico.
Curiosamente, os meus sonhos mais incomodativos tiveram sempre como pano de fundo a minha vida profissional. Uma vida profissional, diga-se de passagem, que nada de muito relevante tem a assinalar: comecei por baixo e fui subindo até ao limite da minha competência; nunca fui vítima de conluios nem ataques pessoais relevantes. Fui, talvez sim, vítima de um menor entusiasmo profissional num tempo difícil, que coincidiu com um época de mau ambiente na empresa. Quando tive de sair fi-lo com a consciência de que já não era a pessoa certa no lugar certo.
O pesadelo - talvez "sonho incomodativo" seja mais correcto - seria facilmente explicável pelo Freud (confesso que nunca li A Interpretação dos Sonhos) ou por um psiquiatra - ou talvez por um charlatão. Eu conto: vejo-me a entrar na empresa onde trabalhei 20 anos, embora a arquitectura seja diferente. Dou por mim a não saber onde está o meu gabinete e isso provoca-me ansiedade. Não estou perdido - simplesmente o gabinete desapareceu. Uma colega (que reconheci) pergunta-me, face ao meu estado de ansiedade: quer sentar-se um pouco? Percebo que há mais pessoas na minha situação. Questiono-me se devo falar com o meu chefe (um homem que já tinha morrido há meia dúzia de anos) e sugerir que se antecipe a minha saída. Mostram-me então uma lista com mudanças e indicam-me o meu novo gabinete: é um espaço sujo, relativamente estreito, com uma secretária e um candeeiro velho no chão, um pé direito muito alto (muito alto, mesmo) e umas obras artísticas grandes (parecem-me mais azulejos do que pinturas, não consigo identificar o que são) que acompanham a altura das paredes. Uma pessoa que não reconheci explica-me, simpaticamente, o que são. O sonho acaba.
Um psiquiatra, repito, explicaria facilmente por que motivo os meus sonhos incomodativos estão sempre ligados à empresa. Saí a bem, voltaria de bom grado para re-visitar espaços e pessoas se a fábrica ainda existisse. Não deixei inimigos e parti com um punhado significativo de boas recordações, algumas amizades que ainda sobrevivem ao desgaste do tempo e do afastamento físico. Alguém me explica o que quer isto dizer?
Um dia destes, na minha ronda de blogues, encontrei um pensamento. Alguém se questionava sobre o que o salvava do caos, sendo que a resposta reiterada era: a palavra. O sentido era este, se bem que o reproduza de forma obscenamente simplista. Não sei se poderei dizer o mesmo sem que se adivinhe uma presunção a que não quero atirar-me. Não obstante, estou em crer que a palavra escrita desempenhou uma grande importância nos momentos - e foram alguns - em que o caos se instalou dentro de mim com ideias de ficar.
Porque escrevo - seja no blogue, nos textos académicos que se prendem com temas que me tocam, nas cartas que envio aos que me estão mais próximos, nas frases com que invado de forma maçadora a caixa de correio alheia? Porquê? Para ordenar a desordem, para organizar o caos, para alumiar um buraco, para iluminar um caminho, para encontrar sentido para as coisas. Escrevo para mim próprio, sobretudo, mesmo que disfarce a tontaria - ou uma aparente vaidade - dirigindo-me aos outros. Estou tão certo disso como do meu número de contribuinte que fixei há anos.
(Também o faço por divertimento, mas porque não poderá ser isso considerado uma terapia, passe o exagero?)
Tem isto alguma relevância? Não, a não ser para mim. Para os outros são violações do sossego próprio, frases cujo sentido nascem e morrem dentro de mim, apesar dos que me conhecem o suficiente para entender os subterfúgios ou as bizarrias. É por isso que envio mais do que recebo, lutando interiormente contra a ideia da desilusão que advém de uma contabilidade desencontrada. Afinal, o combate ao caos é essencialmente solitário, e cada um sabe como fazer o seu. Perceber isto é perceber muito, porque o deve e o haver da vida estão longe de serem iguais. Felizmente, direi eu, apesar de tudo...
Cada vez que tive vontade e pude entreguei-me à gula e à luxúria. Com a preguiça vivo amancebada. Só fui seduzida pela avareza como meio para outros desvios. Sempre me mostrei irada e soberba, orgulhosa, arbitrária e teimosa. Talvez por isso não sentisse inveja. Tão segura de mim, tão inflexível, não podia invejar nada nem ninguém. Hoje, contudo, derrotada e só, sem esperança e vencida, tão inútil, sinto inveja de mim quando me amavas.
amalia bautista estou ausente tradução de inês dias averno 2013
The sun shines high above The sounds of laughter The birds swoop down upon The crosses of old grey churches We say that we're in love While secretly wishing for rain Sipping coke and playing games
September's here again September's here again
* música partilhada ontem no Linkedin pelo meu amigo João Silva, e que eu não conhecia.
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Em Julho de 2016 escrevi um texto para a Raquel, mulher do JdC, texto esse que girava à volta de uma história passada com ela em Moçambique: os miúdos apareciam-lhe em casa e, quando lhes era perguntado o que queriam, respondiam kungokhala (uma palavra que em Chichewa quer dizer só ficar) .
Fui repescar uma parte desse texto (quem quiser ler o post completo pode fazê-lo aqui) porque fala dos Setembros da minha juventude, e a lembrança desses tempo é uma espécie de regresso a casa. É um texto saudosista, eu sei, mas, como digo sempre, o passado é certo, o futuro não existe até prova em contrário.
Dino Meira compôs uma música a que chamou O meu querido mês de Agosto, Ruy Belo escreveu um poema que intitulou Como se estivesse em Agosto. Para mim, e roubando o título de uma crónica antiga de João Bénard da Costa, os dias de Agosto são dúbios. Certos, certos, como o são as minhas memórias, são os meses de Setembro. Eis, pois, o excerto que fala dos Setembros da minha juventude. Para algumas pessoas, a juventude é um local imaterial de refúgio para momentos atribulados.
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Penso que já terei escrito algo sobre este aspecto das minhas férias de juventude: durante alguns anos, talvez dos 13 até aos 24 ou 25 passei férias regulares em casa de amigos e primos no Alentejo. Era Setembro, e a casa enchia-se de gente, do cheiro a petróleo que substituía a electricidade, da emoção dos cigarros fumados às escondidas, do odor a sopa de cação ou de beldroegas, da música ouvida num pick-up a pilhas ou dos devaneios adolescentes de uma ida a Badajoz. Lembro-me de me perguntarem o que fazíamos lá durante um mês. A minha resposta repetia-se com a monotonia que advém das convicções: nada! E é por isso que é tão bom.
De facto, não havia grandes actividades, para além do pingue-pongue, dos jogos de gamão ou das idas à terra local ver a novela ou passear um bocado, das excursões a Vila Viçosa pendurados na boleia que substituía os carros inexistentes. Usando uma conjugação verbal já aplicada neste estabelecimento, estava-se. No fundo, ficávamos, e nada havia de mais feliz nessa dimensão de aparente inactividade. Não estávamos obrigados à agitação, não queríamos agitação para além daquela que já tínhamos. Queríamos algo que não se ligasse obrigatoriamente ao frenesim, à necessidade de programas diários, à agitação do corpo ou da mente. Estávamos, e isso dava-nos - ou dava-me, pelo menos - uma tranquilidade enorme e uma felicidade cujas razões só tarde percebi. Queríamos estar, porque encontrávamos nessa realidade aquilo que cada um precisava, ditado pela ingenuidade ou pela necessidade do subconsciente. Aquela casa era o nosso mundo. Ou era o meu mundo.
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Já no final do poema referido, e referindo-se ao seu Agosto, diz Ruy Belo:
Agosto não é a pura palavra não é determinada designação para um tempo onde cada uma dessas coisas anualmente se encontra comigo Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde procuro pôr os meus passos onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que no frágil edifício dos dias
Subscrevo tudo, se o poeta, lá na eternidade onde vive, me deixar substituir Agosto por Setembro.
Setembro começou, para mim, em 1971. Se à chegada àquele meu Alentejo me tivessem perguntado o que é que eu queria, a resposta seria óbvia: kungokhala.Bom Setembro para todos.
Naquele tempo, reuniu-se à volta de Jesus um grupo de fariseus e alguns escribas que tinham vindo de Jerusalém. Viram que alguns dos discípulos de Jesus comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar. – Na verdade, os fariseus e os judeus em geral não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos, conforme a tradição dos antigos. Ao voltarem da praça pública, não comem sem antes se terem lavado. E seguem muitos outros costumes a que se prenderam por tradição, como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –. Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus: «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?» Jesus respondeu-lhes: «Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim. É vão o culto que Me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’. Vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens». Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão e começou a dizer-lhe: «Ouvi-Me e procurai compreender. Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro. O que sai do homem é que o torna impuro; porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro».
Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!».
Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.
Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.
Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza «dossiers» com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios.
É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e por que não?, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efémeros como o dia a dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.
Se as coisas continuarem indefinidamente assim, o escritor pode ser alcandorado a gloríola nacional, com todos os direitos inerentes a uma situação dessas: academia, nome de rua, estatueta ou estátua, tudo isso em devido tempo, quer dizer, já velho ou já morto o escritor.
Pedra campal sobre o assunto.
Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"
Fez ontem um ano que morreu o JdC e, na altura, escrevi o que me veio à alma, e que pode ser (re)lido aqui. Na 3ªfeira, a almoçar com o meu querido amigo fq, lembrámo-lo brevemente.
Não me é difícil fugir ao lugar-comum do ai que impressão, já lá vai um ano... Talvez me atire a outro lugar que me é comum: cumprir-se-iam, este ano, 53 anos de uma amizade muito próxima, o que não significa uma amizade toda perfeita. Para trás ficam décadas de convívio, de partilha, de confidências, de alguns afastamentos, de muito divertimento ou militância política, de alguma discordância que nunca raiou a discórdia.
Em algumas áreas da minha vida sou mais homem de lamentar o passado que (não) foi, do que desejar o futuro que pode ser. Inclino-me mais para olhar para trás do que para a frente - uma atitude realista, até porque o ontem existiu, o amanhã não se sabe se virá. Devido ao desaparecimento dos dois padres com quem costumava conversar / confessar-me (um para o Céu, outro de regresso às ilhas) dei por mim sem orientação espiritual. Podia ir procurar outra pessoa? Como diz o anúncio, sim, podia; mas não seria a mesma coisa... O que me falta? Tempo útil. Falta-me kairos, porque chronos tenho sempre. Estou falho de paciência para contar a minha vida a alguém que me conheceu ontem.
De alguma forma isto acontece com as amizades. Tenho bons amigos, a quem falo e de quem oiço. Tenho bons amigos que me confidenciam coisas, e a quem eu confidencio coisas, que sabem muito de mim e eu deles. Mas o JdC (e, de certa forma, o fq) conheciam quem eu fui e a minha circunstância. Eram pessoas lá de casa, como se dizia, e que percebiam o contexto de muitos acontecimentos. A pessoas novas na minha vida já não tenho tempo de qualidade / kairos para falar da infância, do impacto da educação, dos setembros da minha juventude, das minhas cicatrizes ou da minha genealogia, de pessoas que já cá não estão ou, estando, também não estão. Em bom rigor, também já nem quero maçar ninguém com informações que só para mim são relevantes, porque me constituem.
O JdC faz-me falta: para coisas tão simples como a identificação de um embaixador, ou para coisas tão pessoais como a escuta de um lamento ou de uma recomendação. Nalguns casos, e para alguns episódios, só ele era conhecedor de eventos passados, só ele poderia, com uma propriedade total, alvitrar que eu fizesse isto ou aquilo, que seguisse este ou aquele caminho. E ouvi-o sempre, mesmo que nem sempre concordasse. E ouvi-o sempre, porque lhe reconhecia competência suficiente para merecer ser ouvido. Uma competência que não lhe advinha da experiência própria, forçosamente, mas da motivação.
Gosto sempre de pensar no que desaparece quando me desaparecem os mais próximos, o que morre com quem morre: pode ser uma ideia de amor incondicional, de memória ou de afecto. No caso dele a resposta é simples: independentemente de outras coisas, nomeadamente um passado muito comum, desaparece a interlocução. Para pessoas como eu, é desaparecer muito.
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A Igreja lembrou ontem Santo Agostinho de Hipona, bispo e doutor da Igreja. Não resisto a transcrever uma parte do seu livro Confissões.
Tarde Vos amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Vós estáveis dentro de mim, mas eu estava fora, e fora de mim Vos procurava; com o meu espírito deformado, precipitava me sobre as coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco. Retinha me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e dissipastes a minha cegueira. Exalastes sobre mim o vosso perfume: aspirei o profundamente, e agora suspiro por Vós. Saboreei Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes me e agora desejo ardentemente a vossa paz.
As frases tarde vos amei e fora de mim vos procurava podem ser lidas como uma boa metáfora para outras partes da nossa vida. Por vezes vamos tarde para qualquer coisa, porque procuramos a solução fora do sítio correcto.
Nascida há 60 anos, no dia do Patrono dos Jornalistas e da Comunicação Social, a Filipa Ribeiro da Cunha deixou-nos a 20 de Agosto, depois de dois anos especialmente difíceis, após o diagnóstico de um cancro feroz. Como era seu apanágio, até essa dura prova atravessou com insólita tranquilidade, alicerçada numa fé profunda, que não temia a morte, nem o sofrimento, o que é ainda mais raro.
Sabemos quanto o mistério da hora da Partida convida mais ao silêncio, pois as palavras ficam aquém deste momento sagrado e estranho para os padrões humanos. Também o sentido ulterior de uma vida humana cabe mal em palavras, pelo que me fico pelo desenho de um rosto que breves traços biográficos ajudarão a reconstituir:
De carácter enérgico e uma genica que a sua magreza não faria adivinhar, habitava-a um especial gosto pela vida, saboreada com intensidade e originalidade. Logo nos tempos de estudante, na Católica, foi pioneira no lançamento do movimento de acção social da universidade – o GASUC – marcando gerações de colegas e amigos, que passaram a guardar algum tempo livre para visitar prisões, hospitais, bairros pobres, acompanhar miúdos precisados de apoio nos estudos, etc. À medida que os anos foram passando, o seu coração generoso e audaz aguçou-lhe o sentido maternal, sempre de portas escancaradas a todos, começando pelos mais carentes. E com muitos se cruzou em diferentes pontos do globo, acompanhando o marido na sua carreira internacional. A casa de família servia de abrigo e de pontos de encontro marcantes, tal como as conferências com que animou serões em inúmeras salas de Washington e Lisboa. Conheci amigos nas franjas da fé que foram tocados pelo seu testemunho desassombrado, sustentado em grandes textos e ilustrado por telas maravilhosas e bandas sonoras de primeira água. Uma das suas apresentações versou sobre um tema que lhe era especialmente querido – as Obras de Misericórdia, explicadas através da pintura do romântico francês popularizado pela figuração idealista da revolução francesa – Eugène Delacroix:
Não por acaso, a Filipa teve o dom e também a arte de estar rodeada de gente valorosa, começando pelos 7 filhos e pelo marido, que são per se o melhor testemunho da garra daquela Mãe memorável, que comunicava a fé por todos os poros, com uma audácia sumamente original. A escolha do poema de Sophia para a sua pagela oferece uma óptima síntese sobre a fecundidade de uma existência sob o signo de uma fé festejada a cada passo, cumprindo depressa uma vida a caminho do Pai:
«AS FONTES
Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.
Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.
Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.»
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)