26 abril 2024

Dos espelhos

Encontrei a imagem acima num post do Linkedin. Não sei o autor, nem o significado. Encontro-me, assim, em território totalmente livre: a interpretação que eu quiser dar-lhe, coincidente ou não com a original, é a verdadeira. Como verdadeira será outra interpretação, de outra pessoa, que nesta imagem verá coisas diferentes das que eu verei.

O que vemos quando nos olhamos ao espelho? Marguerite, da ópera Fausto, de Gounod, canta numa ária do terceiro acto: Ah! je ris de me voir si belle en ce miroir (Bianca Castafiore, personagem de Tintim, afirmará o mesmo). Voltada para o seu espelho, Branca de Neve fará uma pergunta retórica, porque já sabe a resposta: espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?

O que vemos quando nos olhamos ao espelho? E que perguntas dirigimos ao espelho? Fazemos as perguntas cujas respostas já sabemos ou fazemos as perguntas sabendo que só algumas respostas são certas - ou aceitáveis?

Num sentido literal, o meu espelho só reflecte olheiras mais ou menos cavadas, barba por fazer, uns olhos castanhos que revelam as noites difíceis ou as alegrias do momento. O meu espelho menos literal são os outros, mais ou menos próximos. É (também) neles - no que oiço, no que me respondem, no que me dizem, na forma como reagem às minhas interpelações - que eu vejo o que sou e quem sou. É neles que vislumbro o que gosto e não gosto de ver acerca de mim próprio. Esta certeza de que o reflexo do que sou nem sempre é agradável, é o preço que pago pela exposição das minhas fragilidades, dos meus defeitos; da minha humanidade, no fundo. Este preço não é um custo, é um investimento. O que ganho com esta interacção é superior ao que perco com esta interacção, mesmo que nem sempre goste do eu que se reflecte nos olhos dos outros. Porque é aqui que pode começar o caminho da melhoria. A imperfeição tenho-a sempre, resta saber se quero fazer alguma coisa com ela.  

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Esta frase de Clarice Lispector é de uma grande sapiência. Não diz que não devemos melhorar, mas diz - pelo menos isso diz - que precisamos de saber os nossos defeitos, mesmo que seja para identificar os que sustentam o nosso edifício. Ou sobretudo para isso...

A maçã da imagem é Marguerite, Bianca Castafiore, Branca de Neve. Apesar da parte meia comida, ou mais imperfeita, aquilo que estas personagens vêem é uma maça inteira, perfeita, luzidia, imaculada. Vêem o que querem ver, talvez o que acham que os outros querem ver, mas não vêem o que são. Mesmo que seja a parte imperfeita o que dá encanto à maçã.

JdB

24 abril 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 MAORIS E ZECA AFONSO 

Uma instalação aerodinâmica da autoria de um colectivo de artistas maoris arrebatou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza deste ano. O grupo nasceu em 2012, especializando-se em enobrecer materiais pobres e vulgares transpondo-os para o universo artístico. O objectivo (dizem) é elevar o espaço visual de quantos trabalham em fábricas, indústrias pesadas, oficinas, convertendo as matérias mais prosaicas em obras de arte. O resultado do entrançado de fios de lã, na forma aconchegante e protectora de uma casa impressiona pela beleza tranquila, sustentada por um jogo de luz e sombra fabuloso. O título «Takapau» remete para a indústria de moagem neo-zelandesa situada nas planícies homónimas.

Mataaho Collective, constituído pelas 4 neo-zelandesas de ascendência maori, que gostam de trabalhar a:
 ‘8 mãos, inspiradas por 4 cabeças’ (da esq. para a direita): Terri Te Tau, Bridget Reweti, Sarah Hudson e Erena Arapere-Baker.



Na véspera da comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, muitas histórias pessoais se cruzam nesta data marcante, lembrado por quantos o viveram com idade mínima para guardar memórias de um dia sem ir à escola, com a televisão suspensa até meio da tarde, uma vozearia confusa nas diferentes frequências de rádio, os telefonemas dos pais a trocar impressões em surdina para perceber como tudo ia evoluindo, amigos (com idades entre os 10 e os 13) que um pai historiador fez questão de levar ao Largo do Carmo para lhes mostrar um momento de viragem da história nacional, etc.  

Sophia de Mello Breyner e o seu poema de 27 de Abril de 1974: «REVOLUÇÃO: Como casa limpa / Como chão varrido / Como porta aberta / Como puro início / Como tempo novo / Sem mancha nem vício / Como a voz do mar / Interior de um povo / Como página em branco / Onde o poema emerge / Como arquitectura / Do homem que ergue / Sua habitação»  


Depois, sucederam-se as celebrações dos que confiavam na liberdade, enquanto as alas comunista, trotskista e de esquerda radical variada cerrava fileiras para arrastar o rumo dos acontecimentos para outra direção, sonhando com uma ditadura pró-soviética. Segundo a private joke sussurrada entre comunistas (e contado por uma ex-comunista) sobre os efeitos intencionalmente devastadores do bolchevismo para tomar o poder de assalto, a primeira e maior vítima é sempre a verdade. Assim, tudo deve ser dito ao contrário para manobrar e baralhar as populações, além do ataque cerrado a todas as estruturas do regime a depor. Quanto mais caos melhor, como se infere da tal graça soprada entre camaradas: «os comunistas lutam tanto, mas tanto, pela paz no mundo, que não deixam pedra sobre pedra»!  

Quantas noitadas de vaticínios sobre o futuro ouvimos aos adultos mais próximos. Quanta tensão, quanto combate corajoso nos bastidores, até se chegar a um patamar mais sólido de liberdade real. Muito ficámos a dever a um punhado de heróis, que arriscou a vida para implantar a democracia, a liberdade em Portugal. As entrevistas de Maria João Avillez documentam com limpidez esses claros-escuros pós-revolucionários (no livro de 1994 agora reeditado «Do Fundo da Revolução» e no podcast do Observador).  

Por junto – ao jeito dos amigos adolescentes conduzidos ao local mais famoso da Revolução, imortalizado em pintura por Maria Helena Vieira da Silva (gin de 28.ABR.2021) – sinto-me privilegiada por também ter testemunhado em vida (embora com pouca idade), o dia inaugural de um novo tempo. Confirmei, anos depois, quanto aquela quinta-feira primaveril marcara a História do país. Mais crescida, senti-me agradecida aos verdadeiros democratas, que abriram caminho a custo, durante o PREC, aceitando que o processo seria demorado, difícil, com altos e baixos e até algumas regressões. Mesmo no mais recente índice de democraticidade publicado pelo The Economist, Portugal ocupa um lugar próximo de países com democracias débeis. Percebe-se que ainda há um caminho a percorrer para o Estado assegurar as funções de soberania, aceitar ser escrutinado no exercício do poder, garantir a qualidade da Justiça para combater e desincentivar a corrupção, relançar a economia sem comprometer a sustentabilidade das finanças públicas, inverter a tendência descendente do ensino, etc. Desafios não faltam. Haja vontade de continuar o caminho.  

Aqueles anos 70 do século XX, vibrantes e plenos de mudança em Portugal e em Espanha, sentiram-se na música. Dos talentosos aos gozões, a nova toada musical alterou-se. Nas vésperas da revolução dos cravos, as criações musicais pré-anunciavam um ciclo diferente, impregnando as sonoridades da moda de uma poesia cheia de metáforas interpelativas, também úteis para se esquivarem à censura descarada, mas primitiva, dos detentores do lápis azul. A voz comovida e pura de Zeca Afonso ajudou a dar cor àqueles anos turbulentos, antes e depois do 25 de Abril, embora sejam especialmente bonitas as suas baladas menos políticas, mais oníricas:  

 

Um benefício directo da revolução foi o surgimento dos artistas censurados e dos discos proibidos, finalmente com direito de cidadania. No entanto, a arte voltava a politizar-se fortemente e, outra vez, em sentido único (enfim, o país moldável de 24 de Abril não mudara tanto assim, como lembrou sempre o diplomata José Cutileiro), só que virando esquerdista.  Mas muitas no repertório de Zeca Afonso continuam nostálgicas e de uma harmonia cristalina: 






Solnado na personagem do “Baladeiro” e outros comediantes souberam parodiar com o lado menos interessante (de doutrinação radical) dos ventos de mudança, a partir do final dos anos 60. Até no país pacato à beira-mar plantado, a hora pertencia aos poetas, a par de uns outros que se arvoravam em ‘educadores do povo’, revolucionários militantes a levar-se muito a sério, como cumpre aos ‘iluminados’. Chegara o ‘canto de intervenção’, que se ouvia por todo o lado, até em serões de algumas casas da alta burguesia lisboeta. Tudo fluía à portuguesa, semi clandestinamente, semi consentido pelo regime, que evitava enfrentar as elites. Já bastava as dores de cabeça com os estudantes, que punham as universidades e ferro e fogo, alimentando as manchetes da imprensa estrangeira ocidental, muito críticas do salazarismo e do marcelismo.  


Voltando à música de Abril: Zita Seabra conta um episódio divertido passado num comício, que lhe coube animar, em pleno PREC. Estava no auge da sua carreira no PCP e o sucesso a galvanizar as massas, naquela tarde, fê-la continuar ao microfone e alinhar com a multidão, quando começou a entoar a Grândola Vila Morena. Carlos do Carmo, mesmo à boca de cena, correu para o palco e arrancou-lhe o altifalante, segredando-lhe: isso não pode ser! Referia-se à inépcia musical da camarada Zita, inaceitável para os ouvidos melómanos do fadista. Revolução sim, mas desafinação não!  

Se 10 anos já era “muito tempo” para Paulo de Carvalho, fará meio século volvido sobre o 25 de Abril. Não me esqueço do que ouvi ao grande professor de História Jorge Borges de Macedo: a qualidade de um país depende, em grande parte, da capacidade de escolher e renovar as elites. Num país que se tem revelado incapaz de reter os mais novos, o futuro fica perigosamente tremido. Urge criar condições para a actual vaga migratória diminuir, gradualmente. Assistimos a uma sangria suicida de talentos num silêncio de aço, nada condizente com a liberdade que era suposto ter sido conquistada há 50 anos. Dos 3 D’s desejados pelos pais da democracia, como Sá Carneiro, Soares e outros, apenas 2 se cumpriram (com deficiências): Descolonização e Democratização. Falta o Desenvolvimento, crucial para uma democracia ser funcional e saudável. As gerações mais novas bem o merecem, para poderem dar continuidade a um país antigo, sábio no seu estilo muito próprio, herdeiro de uma História extraordinária. Que orgulho ser portuguesa! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

23 abril 2024

De um desporto que proíbe a corrida

Ontem tomei conhecimento de um desporto de que nunca tinha ouvido falar - e sempre que acontece esta ideia do 'nunca tinha ouvido falar' cresce em mim a certeza de que a dimensão da minha ignorância enche várias bibliotecas de Alexandria.

(Surge-me um pensamento peregrino: o que sei é quase mensurável, porque sei identificar as minhas áreas - poucas - de especialidade; e o que não sei, consegue medir-se? Consegue identificar-se, é uma dimensão finita?)

Retomo o assunto: ontem, num evento na Rinchoa, falaram-me de um novo desporto: o walking football. Inventado, ao que parece por um cavalheiro inglês (cuja obesidade era notória) consiste em regras mito simples: 6 pessoas de cada lado (é um jogo misto), balizas mais pequenas que as de futebol de salão (parece que metade), sem guarda-redes. Dois pormenores fundamentais: a bola não pode ser levantada acima da cintura e, pasme-se, é proibido correr. O jogo é para maiores de 50 anos. Antes disso não há maturidade suficiente para se praticar um desporto onde a transpiração vem da lycra e da falta de arejamento, não do cansaço.  

O video que aqui partilho é fracote mas, mesmo assim, do melhor que encontrei. Penso que a falta de divulgação decorre do desejo de manter esta prática restrita a uma elite - a das pessoas que não vêem vantagem na corrida. Podia dizer que vou já a correr inscrever-me, mas tenho medo de não ser aceite caso se saiba que fui a correr...

JdB 

22 abril 2024

Poemas dos dias que correm *

Litania da Rua dos Fanqueiros

Ó porque será este chulé ibérico
Em Espanha é pitoresco mas aqui é pindérico 

Ó Rua dos Fanqueiros
Ó Salazar com teu rebanho de sacristas
Pensar que isto já foi terra de sardinha assada e de fadistas

Ó Rua dos Fanqueiros
Ó Lisboa ó Lisboa enjoada e indecente
Ó cidade sifilítica, são carochas ou gente? 

Ó Rua dos Fanqueiros
Ó Portugal minha pátria de meia-tigela

- Aqui para nós, passa-se tão bem sem ela!

Cristovam Pavia

* por sugestão involuntária de mão amiga

21 abril 2024

4º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 10,11-18

Naquele tempo, disse Jesus.
«Eu sou o Bom Pastor.
O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas.
O mercenário, como não é pastor, nem são suas as ovelhas,
logo que vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge,
enquanto o lobo as arrebata e dispersa.
O mercenário não se preocupa com as ovelhas.
Eu sou o Bom Pastor:
conheço as minhas ovelhas
e as minhas ovelhas conhecem-Me,
do mesmo modo que o Pai Me conhece e Eu conheço o Pai;
Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas.
Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil
e preciso de as reunir;
elas ouvirão a minha voz
e haverá um só rebanho e um só Pastor.
Por isso o Pai Me ama:
porque dou a minha vida, para poder retomá-la.
Ninguém Ma tira, sou Eu que a dou espontaneamente.
Tenho o poder de a dar e de a retomar:
foi este o mandamento que recebi de meu Pai».

18 abril 2024

Ainda das viagens (ou uma espécie de Duas Últimas) *

 Nos anos 30 do século passado Claude Lévi-Strauss estava na selva amazónica para estudar antropologicamente algumas tribos índias - Cadineus, Bororos, Nambiquaras e Tupi-Cavaíbas. Dessa experiência - e de muitas outras - saiu um livro chamado Tristes Trópicos que, escrito na primeira pessoa, começa de uma forma esperançada: odeio as viagens e os exploradores.     

Diz Lévi-Strauss a certa altura: 

Do mesmo modo que os homens e as paisagens, à conquista dos quais eu tinha partido, perdiam, quando eu os alcançava, o significado que deles esperava, do mesmo modo a essas imagens decepcionantes, ainda que presentes, substituíam-se outras, guardadas no meu passado e às quais não dera valor algum, quando ainda faziam parte da realidade que me rodeava. Caminhando, por regiões que poucos olhares tinham contemplado, partilhando a experiência dos povos cuja miséria era o preço - pago em primeiro lugar por eles - para que eu pudesse recuar no curso dos milénios, eu já não apercebia nem uns nem outros, mas sim visões fugitivas da província francesa que a mim próprio tinha negado ou fragmentos de música ou de poesia que eram a expressão mais convencional de uma civilização contra a qual seria bem necessário que eu me persuadisse de ter optado, com riscos de desmentir o sentido que tinha dado à minha vida. Durante semanas inteiras, nesse planalto do Mato Grosso Ocidental, tinha estado obcecado, não mais por aquilo que me rodeava e que eu não voltaria a ver, mas por uma melodia muito batida que a minha recordação ainda empobrecia mais: a do Estudo número três, Opus 10 de Chopin, na qual me parecia, por uma ironia a cujo amargor eu também era sensível, que tudo o que deixara para trás de mim nela se resumia. 

Há quem vá a Budapeste e só veja Budapeste. Há quem vá a Budapeste e, de frente para o Danúbio, consiga ver a calçada de Portimão, o cheiro da sardinha assada e do pingo em cima do pão, a força de uma mão maternal que nos confere segurança nas ondas do nosso mar. Viajar é, parece-me que li, partir para longe à procura de um regresso. Quem em Budapeste só vê Budapeste talvez nunca tenha partido, ou o pudesse fazer sem nunca sair do quarto. 

Deixo-vos com o estudo número três, opus 10 de Chopin, aquele que Lévi-Strauss ouviu no Mato Grosso. 

JdB

* publicado originalmente a 8 de Novembro de 2016


17 abril 2024

Poemas dos dias que correm

Ode à Paz 

Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego,
dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida! 

Natália Correia
in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, II 

15 abril 2024

Da narrativa e do storytelling


Acima estão as capas das minhas últimas leituras: o de cima sugerido por mão amiga, o de baixo encontrado por acaso, mas de um autor de quem já li pelo menos um livro. Há uma relação entre as duas obras: a primeira, escrita na primeira pessoa do singular, relata o percurso de uma rapariga que, aos 22 anos, é diagnosticado com um cancro. A segunda, escrita por um filósofo sul-coreano radicado há muito na Alemanha, fala da crise da narração que advém, também, da ascensão do storytelling

A diferença entre narrativa e storytelling parece-me óbvia; talvez seja um óbvio intuitivo, mais do que racional. A narrativa cria comunidades que se juntam à volta de uma fogueira, exige leitores  / ouvintes atentos e interessados, transforma "o estar-no-mundo num estar-em-casa". O storytelling, por seu lado, "produz narrativas como formas de consumo e contribui para que os produtos venham associados a emoções." O tempo moderno, feito de virtualidade, de monitores, de imediatismo, de "posts, likes shares",  não convida à narrativa. O tempo moderno é feito de factos e de informações e "[a] narração e a informação são forças antagónicas. A informação intensifica a experiência contingente, enquanto a narração a reduz, transformando a contingência em necessidade."

As estantes das livrarias estão cheias de livros como o de Suleika Jaoud. Pessoas que passaram por doenças diversas, por traumas, por dificuldades várias, querem escrever livros e partilhar a sua experiência com a sociedade. De repente dou por mim a pensar: estes livros - de apresentadore(a)s de televisão, actores / actrizes, gente comum, etc., são narrativa ou são storytelling? São de pessoas que querem contar a sua história ou dar publicidade à sua história? A minha resposta é: não sei. O meu preconceito talvez seja simples: Suleika Jaoud teve um cancro e é uma jovem adulta, pelo que o tema se cruza com a minha esfera de interesses diversos. O livro dela é uma narrativa. E se for escrito por uma apresentadora de televisão, pessoa do jet-set, que teve cancro de mama? A motivação de quem escreve é relevante?

Penso muito nos Pais de crianças com cancro que não têm ninguém que oiça as suas histórias. Todos eles querem partilhar a sua narrativa - para dar sentido àquilo que lhes aconteceu mas, também, como forma de sobrevivência, para não sucumbir àquilo a que alguém chamava a tirania do silêncio. Contar a sua história do seu drama é tornar a história do seu drama suportável.

JdB  

14 abril 2024

3º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – Lucas 24,35-48

Naquele tempo,
os discípulos de Emaús
contaram o que tinha acontecido no caminho
e como tinham reconhecido Jesus ao partir do pão.
Enquanto diziam isto,
Jesus apresentou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Espantados e cheios de medo, julgavam ver um espírito.
Disse-lhes Jesus:
«Porque estais perturbados
e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações?
Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo;
tocai-Me e vede: um espírito não tem carne nem ossos,
Como vedes que Eu tenho».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés.
E como eles, na sua alegria e admiração,
não queriam ainda acreditar, perguntou-lhes:
«Tendes aí alguma coisa para comer?»
Deram-Lhe uma posta de peixe assado,
que Ele tomou e começou a comer diante deles.
Depois disse-lhes:
«Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco:
‘Tem de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito
na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’».
Abriu-lhes então o entendimento
para compreenderem as Escrituras
e disse-lhes:
«Assim está escrito que o Messias havia de sofrer
e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia,
e que havia de ser pregado em seu nome
o arrependimento e o perdão dos pecados
a todas as nações, começando por Jerusalém.
Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».

12 abril 2024

Pensamentos dos dias que correm

Convento de Cristo (Tomar), Fevereiro de 2024

 Afirmação da Verdade

Se queres convencer alguém da tua verdade, não a expliques ou demonstres - afirma-a. E ela será tanto mais convincente quanto mais força puseres na afirmação. A afirmação é compacta, a demonstração é cheia de buracos. Uma pedra não tem intervalos para os ratos se intervalarem nela. Se queres ser chefe e dominador e senhor, berra o teu sim ou o teu não e deixa aos fracos o talvez. E terás ocupado o baldio das almas humanas em que elas não sabem que semear. E serás histórico, se fores grande, mesmo no crime. Porque o homem é míope de sua natureza e só vê acima do tamanho do boi.

Vergílio Ferreira, in 'Pensar'

10 abril 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

BOA MÚSICA BRASILEIRA E UMA LONGA PEREGRINAÇÃO 

Vale a pena recuperar, nos arquivos dos anos oitenta, a actuação histórica de músicos brasileiros de primeira água com a argentina Mercedes Sosa (1935-2009), passada no programa da TV Globo: ‘Chico & Caetano’. Nesse 14 de Março de 1987, Chico Buarque e Caetano Veloso juntarem em palco Milton Nascimento, Gal Costa e a argentina para interpretarem em quinteto a canção chilena «Volver a los 17». É contagiante a cumplicidade amiga que os une, bem sintonizados entre os momentos corais e os solos lindos na voz única de cada um: 


Outro momento sublime de poesia e música coube a Maria Bethânia, sempre no seu melhor para homenagear a devoção salerosa e sentida, que o povo baiano devota à Mãe do Céu. Começou por uma declamação vivida da ladainha de Santo Amaro: «Mãe de todos nós / Roga por tudo, que tudo é teu… / Maria de todas as vidas, Maria de todas as horas /… Cuida de tudo, que tudo é teu»(1)  e concluiu com a oração-cantada de Elis Regina sobre o encontro reconfortante da compositora com a Senhora da Aparecida, com quem desabafou e abriu um coração angustiado, ferido, mas de filha que se confia sem hesitações, nem fingimentos: 


Neste Domingo 7 de Abril, festa da Misericórdia instituída por S.João Paulo II, o Papa Francisco lançou a longa peregrinação do ícone da Misericórdia, para o fazer chegar a todos os recantos habitados do planeta: «às igrejas, às praças, aos lares do mundo». 

A viagem urbi et orbi demorará uma década, até 2033, ano do Jubileu comemorativo dos dois mil anos da Ressurreição de Cristo. Ficou a cargo da Pequena Casa da Misericórdia de Gela (Itália), a quem pertence o ícone, concebido para comemorar uma década de existência daquela instituição, criada a pedido do Papa. 

O ícone de aspecto antigo, porque concebido segundo os cânones da tradição bizantina, só data de 2023. O interior contém relíquias dos santos associados à Misericórdia, como os dois polacos S.João Paulo II e Santa Faustina Kowalska, e ainda Santa Teresinha do Menino Jesus, Santa Teresa de Calcutá e o beato Carlo Acutis. No 10º aniversário da Pequena Casa de Gela (Novembro de 2023), foi abençoada pelo próprio Papa, estreitamente ligado àquela instituição italiana: 

Bênção do ícone da Misericórdia (NOV.2023), que iniciou a missão de Peregrinatio Misericordiae, confiada pelo Papa aos voluntários
e hóspedes da Pequena Casa da Misericórdia de Gela, para que chegue a todas as geografias. 

De facto, a Casa da Misericórdia é a resposta a um sonho de Francisco, que considerava urgente criar um espaço de abrigo e de ajuda eficaz às multidões de imigrantes e desamparados, que vagueiam por Itália. Em novembro de 2013, a Pequena Casa começava a funcionar no povoado de Gela (Itália), sob a liderança do Pe.Pasqualino di Dio. Cumprindo o projecto original, acumulou multifunções enquanto centro de acolhimento, simultaneamente, ponto de distribuição de comida e de roupa, cantina, dormitório e posto médico. Por isso, nas palavras do Papa, proferidas na audiência privada com os 300 peregrinos da Casa (6.Nov.2023), o trabalho realizado por e naquele oásis de generosidade foi descrito como «um farol de luz e esperança na escuridão do sofrimento e da resignação. (…) Pode ver-se que se deixaram provocar e inquietar pelas necessidades dos irmãos e irmãs que Deus colocou no vosso caminho, especialmente os últimos, os mais necessitados». 

Assim ressoa e ganha vida a mensagem de Misericórdia confiada por Jesus à mística polaca: «A humanidade não encontrará paz, enquanto não se voltar com confiança para a Minha Misericórdia».  Tão simples, quanto exigente e demasiado actual para estes tempos turbulentos e belicosos, ensombrados por guerras e ameaças insidiosas à liberdade e à dignidade humanas. 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
___________________
(1) «LADAINHA DE SANTO AMARO 
Nossa Senhora, mãe de Jesus, 
Mãe de todos nós, 
Roga por tudo que tudo é teu, 
Por cada coisa, por cada ser, 
Pelos que cantam, pelos que choram,
Pelos os que te esquecem, pelos os que Te imploram. 
Santa Maria Nossa Senhora, 
Maria dos tamarineiros, dos riachos, manguezais 
Dos dendezeiros bonitos, 
Maria dos canavias, Maria das fontes limpas,
Maria das Cachoeiras, Maria das águas claras, 
Que brincam por sobre os seixos, 
Maria do Subaé, 
De águas tristes, pesadas, 
Maria dos barcos, canoas, 
De velas cheias de vento, 
Maria dos pescadores, 
Maria das canas doces, 
Dos alambiques, do mel, 
Maria das flores e folhas, 
Das sementes, dos espinhos, 
Maria de cada casa 
E de todos os caminhos,  
Maria de nossa infância, 
Maria de toda gente, 
Maria de todo amor, 
Maria de cada Igreja 
De azulejos, alfaias, redomas, lindos altares, 
Maria das procissões, 
Das festas, das romarias, 
Dos cânticos, da alegria, 
Maria de cada noite, 
Maria de todo dia, das praças, coretos, cinemas, 
Maria dos meus amores, 
Dos meus sobrados tristonhos, 
Dos meus mais doces sonhos, 
Maria dos seresteiros 
Dos cantadores, poetas, 
Maria dos sinos plangentes, 
Maria das torres acesas, 
Das palmeiras solitárias, 
Das pontes, muringas e rios, 
Maria de todo o sonho, 
De música e harmonia, dos pratos e dos pandeiros, 
Das festas de fevereiro, 
Maria das chegadas 
E também das despedidas, 
Maria de todas as vidas, 
Maria de todas as horas, 
Maria Nossa senhora, 
Mãe do Menino Jesus, 
Rainha de toda a luz, 
Cuida de tudo que tudo é teu.»
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~  

09 abril 2024

Poemas dos dias que correm

 AGAVE

Não sou útil nem belo,
Não tenho cores alegres nem perfumes;
As minhas raízes roem o cimento
E as minhas folhas, marginadas por espinhos,
Protegem-me, afiadas como espadas.
Sou mudo. Só falo a minha linguagem de planta,
Difícil de entender por ti, homem.
É uma linguagem insólita,
Exótica, já que venho de muito longe,
De um país cruel,
Cheio de vento, venenos e vulcões.
Esperei muitos anos antes de expressar
Esta minha flor altíssima e desesperada,
Feia, fibrosa, rígida, mas estendida para o céu.
É a nossa maneira de gritar que
Morrerei amanhã. Compreendes-me agora?

(10 Setembro 1983)

Primo Levi
(1919 - 1987)
(Tradução de Luís Filipe Parrado)

08 abril 2024

Vânia e as listas de Antonino *

 Como acontece quase sempre na história das famílias, antes de Antonino perceber já os pais de Antonino haviam percebido: numa viagem a Salamanca, quando o rapaz tinha 15 anos e revelava de forma clara, ainda que não acintosa (que neste caso se traduziria por uma precocidade enervante) uma queda para a pintura enquanto observador, Antonino quis visitar todos os museus e palácios da cidade onde esta forma de arte fosse preponderante. Contudo, não seguiu um critério geográfico, que consistiria em fazer troços pequenos do palácio A para o museu B; não seguiu um critério cronológico, ou de estilo, que passava por ir do mais antigo ao mais moderno, ainda que a inversa também fosse possível. Antonino seguiu um critério meramente numérico e crescente no mapa da cidade - de 1 até n, sendo que podia deslocar-se a uma ponta da cidade para ver o séc. XV e, seguidamente, deslocar-se à outra ponta para contemplar o séc. XXI, desde que estes museus e / ou palácios específicos fossem numericamente seguidos. 

Quando entrava no museu ou palácio, Antonino pedia imediatamente um catálogo dos artistas expostos e, num ápice (havia uma espécie de queda natural para a coisa, o que a tornava rápida e pouco fastidiosa, ainda que preocupante) Antonino seleccionava os artistas começados por A - e era esses que via em primeiro lugar, seguindo depois para a letra B. A rotina repetia-se até Z, sendo que de permeio havia o W e o Y para engrossar as variáveis. Isso implicava - e esse facto não carece de explicação - subir escadas e descer escadas à procura do D ou do N, podendo viver com a desilusão de uma letra orfã e só, sem nenhum nome que lhe fizesse companhia.

Antes de Antonino perceber a obsessão, já os pais de Antonino haviam percebido a obsessão: eram os catálogos, os cânones, as listas (listas de tudo, mas também listas de listas, talvez mesmo listas de listas de listas). O inferno, não como temor, mas como lista iconográfica de torturas; a História de Portugal, não como um conjunto de grandezas e misérias, mas como uma lista de dimensão genealógica: A pai de B, que é pai de C, que é pai de D e de E, de quem nasceu o terceiro bastardo E3; o livro de linhagens de D. Pedro, conde de Barcelos, não como um documento medieval pioneiro, mas como uma lista prática de informações relevantes (por oposição à genealogia de Jesus, uma lista não prática, mas que também constava na sua lista de listas). 

Após o curso de História e uma pós-graduação em arquivismo na variante catálogo, Antonino seguira uma carreira de bibliotecário de autarquia, criando e recriando listas, imaginando ordenações, congeminando frequências e tendências, diversificando o rol de compras mensais tomando em consideração a ordenação alfanumérica de prazos de validade, número de fornecedores por distrito e lista de órgãos sociais com predominância da letra J. Vânia, deitada ao seu lado, tinha feito um curso de pintura, praticava ioga, meditação e voluntariado aos fins de semana num lar de idosos. 

Para eles era a primeira noite - uma noite chuvosa, ventosa, a levantar tudo pelo ar: folhas, papéis de jornal, cascas de maçã, passarinhos mortos e caídos dos ninhos, aromas de frango assado. Vânia tinha uma figura invejável, fruto de uma boa genética, que, quanto à alimentação, a rapariga ia a um cozido, a uma farófia, a uma léria ou a uma sopa da pedra, sem medo e sem remorso. Era alta, esbelta, vistosa sem ser exuberante, com uns olhos azuis de cortar a respiração e uma ligeiríssima e interessante assimetria dos dentes da frente. Antonino beijou-a com fervor carnal e paixão afectiva, porque não conseguia separar os sentimentos. Tocou-lhe com jeito e educação, elogiou-a com simplicidade e gosto. Pediu-lhe desculpa pela interrupção e, debruçando-se sobre a gaveta da mesa de cabeceira, olhou brevemente lá para dentro, retomando o afago, o beijo, o elogio.

Terminaram ofegantes, como o vento na rua que tudo transportava. Antonino fora fazer um chá de gengibre e limão e Vânia, debruçada sobre uma nudez que provocava inveja e perturbação, abriu rapidamente a mesa de cabeceira, vencida por uma curiosidade que só na mente dos mais perversos seria travestida de desconfiança. Na gaveta, lado a lado, encontrou uma lista de pintores com nomes começados por V e que faziam ioga e / ou meditação e / ou voluntariado e uma lista traduzida do indiano e intitulada catálogo de posições felizes para uma noite carnal. Encontrou, por fim,  a capa do livro Penitencial, de Martim Pérez, que abriu ao acaso. Se alguum se banhou en banho com as molheres e as vyo nuas e ainda a sua molher meesma, jajue dous dias em pan e augua

Antonino assomou ao quarto, precedido pelo aroma do chá, e perguntou-lhe: vamos tomar um banho? Vânia perguntou, sorrindo: gostas de pão e água?

JdB

* publicado originalmente a 23 de Março de 2017

07 abril 2024

2º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 20,19-31

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu-lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois,
estavam os discípulos outra vez em casa,
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou-Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

05 abril 2024

O fado, canção de vencidos

Estranho Fulgor 

Deu-me Deus bodas vermelhas
E palavras como abelhas
Esquecendo-se de mim
Deu-me a paz de alguns minutos
E palavras como frutos
Esquecendo-se de mim 

Deu-me as ideias formosas
E palavras como rosas
Esquecendo-se de mim
Deu-me a voz que persuade
Muito mais do que a verdade
Esquecendo-se de mim 

Mas um dia, veio a dor
Veio o castigo sem fim
Veio esse estranho fulgor
Apartando o bem do mal
E vi que Deus afinal
Já se lembrava de mim

Pedro Homem de Mello

04 abril 2024

Luxúria *

 António Maria passava férias no Mónaco, hóspede frequente e requisitado de amigos ricos para quem a palavra tristeza (como outras) tinha uma conotação muito própria, porque algumas pessoas usam as palavras dando-lhes sentidos específicos:

Estou triste, sabes? O Dow Jones fechou em queda e o Euronext não está a ajudar. Não achas uma tristeza?

Mas a tristeza bolsista era secundarizada pelos barcos manobrados por mãos hábeis que aproveitavam o vento brando e a rotina mansa das marés, pelas tripulações vastas, almoços surpresa, camas abertas, gin and tonic ao fim da tarde, roupas bonitas e corpos bem tratados.

Em Portugal era conhecido em S. Carlos onde era frequentador assíduo, assim como na Gulbenkian, nos leilões de arte, nos melhores restaurantes, nas festas mais deslumbrantes, nas famílias mais finas, nas revistas mais cor-de-rosa, nos casamentos mais luxuosos.

Tinha uma casa com uma vista deslumbrante sobre o Tejo, cuja decoração tinha sido facilitada por uma imensidão de quadros herdados e mobílias compradas, tapeçarias adquiridas após negociações criteriosas onde a dureza e a educação caracterizavam por igual o seu estilo.

Dizia quem tinha passado pela sua cama de solteirão inveterado que o sexo era magnífico. Atento aos ritmos de quem estava consigo, era virtuoso, criativo, ágil, aberto a novas experiências, demorado quando necessário, rápido quando exigido. Acendia velas, punha uma música suave e que se ouvia o bastante para não incomodar, e a noite acabava com o raiar do sol, com um pequeno-almoço de hotel de luxo e uma olhar burguês sobre os cacilheiros.

Porque o destino nos faz trilhar caminhos que se suporiam vedados ao estilo de vida que cada um escolhe, António Maria veio a apaixonar-se. Não por uma baronesa, mas pela Adélia, uma estudante de Engenharia do Ambiente e monitora do curso de boleros que o gestor decidira frequentar para satisfazer o capricho de uma advogada, rapariga da baixa nobreza do Liechtenstein, por quem se apaixonara ao assistir ao Anel dos Nibelungos. Adélia tinha uns olhos escuros, um corpo esquivo e um nariz ligeiramente levantado. O artista cantava


e Adélia encostava-se, colava-se num requebro permanente, e o aluno sentia o peitinho dela a estremecer por baixo de um vestido de lycra que revelava formas escaldantes. Acabou por levar a dançarina a sua casa. A professora fascinou-se com as velas, os quadros, as tapeçarias, a temperatura ambiente, a cozinha, a organização dos armários, a vista sobre a outra banda onde vivia desde que nascera.

Sabe, doutor António

diria ela, estirada numa cama com duzentos anos, revelando uma nudez juvenil, firme, sem pudores nem receios. E ele, o gestor herdado que desenvolvera a fortuna e semeara contactos nos vários cantos do mundo, beijava-a ao de leve pelo corpo todo, como quem descobre, reconhece, regressa e descansa.

Diz, Adelita

Aprecio esta luxúria em que vive.

Luxúria? Eu acho que é luxo, não é luxúria...

E não é a mesma coisa? Olha, achei que era... A sério que não é?

JdB

* publicado originalmente a 12 de Abril de 2010

03 abril 2024

Poemas dos dias que correm

Possibilidades

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes de jornais. 
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão. 

(Wisława Szymborska, em “Poemas”; tradução de Regina Prazybycien. Companhia das Letras, 2011)

02 abril 2024

Poemas dos dias que correm

 À ESPERA DOS BÁRBAROS

O que esperamos nós em multidão no Forum?


Os Bárbaros, que chegam hoje.


Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?


Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.


E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?


Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.


E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?


Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.


Porque, sùbitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?


Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.


E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.


(Antes de 1911)

Constantino Cavafy
(1863 - 1933)
In "90 e Mais Quatro Poemas"
(Tradução de Jorge de Sena)

01 abril 2024

Dos índios educados como judeus

Vejo uma série canadiana chamada Little Bird. O primeiro episódio passa-se em dois cenários totalmente diferentes: num cenário, duas crianças pequenas, uma delas chamada Bezhig, brincam no campo; no outro cenário, uma festa de noivado de David, médico, e de Esther Rosenblum, uma estudante de Direito. Bezhig é índia; David e Esther são judeus. Numa dada altura percebe-se que Bezhig e Esther são a mesma pessoa separados por 20 anos, talvez.

A série tem um fundo histórico, relacionado com adopções forçadas de crianças indígenas que eram retiradas aos pais. A mim, o que me suscita a curiosidade é a diferença / semelhança entre Bezhig Little Bird (assim é o seu nome) e Esther Rosenblum. A diferença / semelhança entre uma criança índia que vive numa reserva e que acaba por ser educada na religião judaica, porque é adoptada por uma família judia. Não há ciência na minha curiosidade  - ou não me parece que haja. Bezhig, criança índia, transporta consigo genes dos Pais que também são índios. Mas os genes não lhe dão uma atracção pela pradaria; isto é, transportada em adulta para a reserva, não tem um impulso de viver como uma índia. 

Esther, como muitas crianças adoptadas, vai à procura do seu passado. Não sei como termina a série, porque vou apenas a meio. Acaba por encontrar uma irmã e irá perceber de onde vem, a que tribo pertence. Num dia (já adulta) é Berzhig e está na reserva, a contemplar uma paisagem que se perde no horizonte e a imaginar o que foi a sua infância; no outro dia (também adulta) é Esther que tem uma reunião marcada com o rabi para casar segundo a tradição judaica. O salto é quântico! 

Todos nós conhecemos pessoas adoptadas, pessoas que adoptaram. Na sua grande maioria, os adoptados serão filhos de gravidezes indesejadas, qualquer que seja o motivo. Mas, talvez também na sua grande maioria, serão "transições" culturais relativamente semelhantes, pese embora toda a diferença. Mas aqui, na série Little Bird, falamos de mudanças radicais. Não são filhos de agnósticos que são educados como filhos de crentes ou vice versa: falamos de índios educados como judeus. 

O que acontecerá a todas as Esther, advogadas judias, que um dia perceberão que são / foram Bezhig, crianças índias?

JdB 

31 março 2024

Domingo de Páscoa

EVANGELHO – João 20,1-9

No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predileto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

 

29 março 2024

Sexta-feira Santa

 

The Raising of the Cross, 1633 por Rembrandt

PRECE 

Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não. 

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja. 

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser.
Mas lembra-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.

Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte (1959) 

27 março 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 GRANDEZA HUMANA NA SÍNDROME DE DOWN 

Em vésperas do Natal de 2021, um conjunto de produtores espanhóis e um português (Luís Matta de Almeida) lançaram um filme de animação sobre uma criança com um sonho improvável, uma condição difícil (para a maioria, incapacitante), mas uma vontade férrea e uma avó inspiradora, ou melhor, uma avó que a olhava com especial afeição, fazendo-a reconhecer-se única pelos melhores motivos. Aquela neta de olhos rasgados e minúsculos, por detrás de uns óculos redondos gigantes, chamava-se Valentina e sonhava ser trapezista. Mas atrapalhava ter síndrome de Down. 

As peripécias por que passa, bem acompanhada por amigos fiéis (brinquedos incluídos) e uma família estimulante, levaram Valentina a acreditar que seria capaz de concretizar os desejos mais ousados, até para crianças sem a sua anomalia cromossomática. As inúmeras incursões musicais e coreográficas do filme acentuam o tom construtivo do argumento, percebendo-se que flui sob um horizonte de infinitas oportunidades, alimentadas e viabilizadas pela ternura que envolve a protagonista: 


A dobragem para o italiano teve um requinte especial, porque a voz da heroína foi assumida por uma estudante de design gráfico com síndrome de Down – Alice di Gennaro – a primeira pessoa da sua condição a dobrar desenhos animados. A agenda muito concorrida de Alice confirma quanto a sua disfunção não a impede de ter um dia-a-dia cativante, ao jeito da sua idade. 

Alice di Gennaro também aposta alto e sonha ser cantora, modelo, influencer.

As estatísticas sobre as crianças com trissomia 21 são demasiado expressivas para poderem ser ignoradas. No mundo contabilizam-se 5 milhões e 400 mil pessoas e em Portugal conhecem-se 15 mil casos. 

Felizmente, na multiplicação de efemérides em que a ONU é perita, fez-se coincidir o início da Primavera com o Dia Internacional da Síndrome de Down – 21 de Março – instituído, em 2012, pela Assembleia das Nações Unidas. Felizmente que o aborto (vigente em inúmeros países) não conseguiu erradicar estas crianças do planeta. Ironicamente, era um dos objectivos do programa nazi de purificação da raça e descarte dos mais vulneráveis. Felizmente que, há várias décadas, ter trissomia 21 deixou de ser um estigma para a família e as crianças passaram a aparecer em público, com naturalidade. Felizmente que, no Ocidente, estas crianças podem frequentar o ensino normal, de modo a mitigar as suas dificuldades cognitivas e conseguir saídas profissionais válidas. Felizmente, há maior predisposição para reconhecer igual dignidade em cada indivíduo, mesmo os mais diferentes, reconhecendo que também eles são habitados por esperanças, desejos, talentos e fraquezas, merecedores de todo o apoio. Toda a sociedade sai beneficiada com a maior abertura à diferença, empenhando-se em ajudar cada qual a crescer, segundo as suas capacidades e características. Especificamente, os avanços na compreensão da trissomia 21 permitiram aumentar a longevidade média para os 60 anos, quando nos anos de 1980 rondava os 25!

O testemunho feliz de um miúdo brasileiro de 5 anos, ao colo da mãe, mostram a beleza que qualquer situação humana pode comportar. O vídeo emocionou o Brasil e inúmeros famosos comentaram-no, como a cantora Ivete Sangalo, que partilhou estas linhas: «Mães que transformam! Um vídeo maravilhoso para nos dizer o quanto o amor vê além»

Quantas vezes, são estas crianças os elementos mais divertidos e sociáveis da família, com maior apetência para se relacionar com todos, imunes a entraves e preconceitos sociais?  São, pelo menos, um sinal vivo de uma réstia de humanidade que persiste nas sociedades competitivas, onde é demasiado forte a tentação de descartar os menos produtivos, como tem alertado o Papa Francisco. Em meados do século XX, o grande (e heróico) geneticista francês Jérôme Lejeune dava o seguinte conselho aos pais das Valentinas: o que poderão perder em comodidade, vão centuplicar em humanidade! Ao invés, as cedências ao utilitarismo e a supostos ganhos de eficiência criam uma espiral de desumanização, em que, tarde ou cedo, todos seremos descartáveis, i.e., alvos a abater. 

A propósito de desmontar estereótipos segregadores e redutores: que lugar nos caberia no cortejo do Crucificado? Teríamos olhos para descortinar a verdade mais profunda e menos evidente no rosto desfigurado e, por isso, difícil de encarar do último dos Condenados? Ou nas Valentinas também diferentes ou nos milhões de enjeitados do planeta, de aspeto menos atraente? Somos um mundo estranho, capaz de alunar e desbravar o cosmos, mas incapaz de acabar com a pobreza e de reintegrar os proscritos da abundância. 

Conseguiremos alcançar toda a verdade contida na interpelação híper lúcida do poeta e diplomata brasileiro Guimarães Rosa: «Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo»? Aplica-se na perfeição a muitos dos que subiram até ao Calvário sem nada entender, naquela Sexta-feira tornada santa por um dos Réus. Talvez os parias, especializados em humilhações, calhem ser dos primeiros a conseguir vislumbrar algum sentido na humilhação suprema de uma morte na cruz. Aquela teve o especial dom de ser aceite e vivida por amor. Apenas por amor, numa medida infinita, que é a medida de Deus. Esse amor, que costuma inspirar uma paz expectante perpassa na magnífica tela de Domingos Sequeira «Descida da Cruz», recentemente comprada pela Fundação privada Livraria Lello, que aceitou emprestá-la ao Estado português para ficar (temporariamente) exposta em museus nacionais: 

«Descida da Cruz» (1827) - do quarteto de telas sacras executadas por Domingos Sequeira (1768-1837), em Roma.  Súmula biográfica do pintor considerado a mais talentoso da sua geração:  de ascendência pobre, foi educado na Casa Pia, onde frequentou o curso de Desenho e Figura. Seguiu para Roma com uma bolsa de estudo concedida por D. Maria l, onde cursou pintura com Antonio Cavallucci. De volta a Lisboa, foi nomeado pintor da corte pelo futuro rei D. João VI, ficando corresponsável pela pintura do Palácio da Ajuda e professor de Desenho e Pintura da Família Real. Durante as invasões napoleónicas, tornou-se amigo de oficiais franceses, como o Conde de Forbin, o que lhe valeu a encomenda da famosa tela de Junot a proteger Lisboa (1808). Tais amizades levaram-no a ser alvo de condenações posteriores, de que se reabilitou a custo. Viveu os últimos anos em Roma, dedicando-se à pintura sacra. [dados no site do Museu Soares dos Reis, onde está a tela de homenagem a Junot]. 

Impressiona as portas da Salvação da humanidade terem sido escancaradas pelo mais humilhado dos homens. Como observava lapidarmente Paulo de Tarso sobre aquela insólita escolha, que não cabe nos critérios humanos: é «escândalo para os judeus e loucura para os gentios». Ainda hoje se mantém repugnante para muitos, misteriosa para todos, mas incontornável e salvífica para quem se deixe tocar pelo Crucificado.  

Santa Páscoa, sob o mistério do Amor infinito e inexplicável de Jesus por nós (em grande medida, experimentado pelo pequeno Marcelinho), olhados e amados para lá dos nossos erros, reincidências desengraçadas e injustas… 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

_____________
(1) FICHA TÉCNICA

Título original: Valentina 
Título traduzido em Portugal: Valentina - despertando para os sonhos
Realização: Chelo Loureiro 
Argumento: Chelo Loureiro e Lúa Testa
Produzido por: Chelo Loureiro, Luís da Matta Almeida, Brandán de Brano, Mariano Baratech e Noa García
Estúdios: Abano Producions, El Gatoverde, Antaruxa  e Sparkle Animation
Banda Sonora: de Nani Garcia
Duração: 1h10
Ano: 2021 (Dez.)
Países de origem: Espanha e Portugal
Elenco:
Vozes de: Jeanne Metivier (Valentina), Laetitia Casta, Eric Mie
Prémios (em 2022): Melhor Filme Animado pelo CEC Award, vencedor do Prémio Goya na categoria de Animação.

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