31 julho 2019

Vai um gin do Peter’s ?

FACETA E NOME DESCONHECIDOS, EM MARIA RUEFF

A actriz que trabalha há mais tempo com o Herman revelou, numa conversa(1) com a Maria João Avillez, decorrida no auditório da paróquia do Campo Grande  no final de Março de 2019, quanto Deus é marcante e presente na sua vida. 



Percebe-se o diálogo regular de Maria Rueff com Deus, o seu «amigo de almofada». Entram juntos em palco e atravessam juntos grande parte do dia-a-dia da actriz. Até o humor, que lhe corre nas veias, foi depurado pela fé, a partir de um livro esclarecedor, que intitulou de «O sorriso de Deus», apenas lembrando bem que o autor era jesuíta. Assim, é possível que o título seja antes «DEUS RI: Alegria, Humor e Riso na Vida Espiritual», de James Martin, SJ. Mas, qualquer que seja o canhenho, aprendeu naquelas páginas a esquivar-se da piada trocista, maldosa, que fere e humilha o caricaturado, para redescobrir o lado vitamínico e catártico da comédia, capaz de iluminar um pouco uma existência pejada de claros-escuros. Passou a destrinçar os dois territórios do cómico pela fronteira que as preposições demarcam: rir com, nunca rir de. E concluiu: «Sinto-me ao serviço do outro e foi assim que resolvi [a questão] no meu coração. Encaro o humor como espelho do outro e não como uma farpa». 

Como se cruzou com Deus? – perguntou-lhe a Maria João. Bebeu no berço, sobretudo com a mãe, a grande mestra em tudo, inclusive na fé. Conta que a mãe, preocupada com a saúde da filha mais nova, colocou-a sob a protecção divina, insistindo em ter um bebé que seria defeituoso. Como nasceu no Dia do Corpo de Deus, recebeu o nome de Maria de Deus Rueff!  



Lembra ainda um conselho maternal que mais ninguém da sua geração terá recebido, tal a originalidade da senhora: quando faltaram a Rueff umas décimas para entrar em medicina, disse à filha – ‘Ainda bem, porque a tua vocação é o teatro. Vai antes p’ró Conservatório’.  Identifica a marca de Deus na família pela facilidade em falarem uns com os outros: «Em casa, sempre mantivemos o hábito de conversar, que é das coisas que mais adoro na vida e nos fez ultrapassar a desgraça da descolonização. (…) Deus está muito, muito presente, é como se estivesse ao meu lado. É uma relação absolutamente íntima, próxima.» [citada por aproximação]

A conversa flui com ritmo, percebendo-se que Rueff reflecte a sério sobre a vida e a sua condição. Poucas ou nenhuma pergunta a terão apanhado desprevenida… 

Situa a origem mais profunda da comicidade no sofrimento, nas experiências trágicas, como aconteceu a Chaplin, Totó e a todos os comediantes mais filósofos. No seu caso e à parte da boa componente hereditária, associa-a ao calvário por que a família passou quando se mudou para Lisboa, fugindo à guerra no Norte de Moçambique, na mesma Beira que é hoje açoitada por tempestades calamitosas. Essa dor sublimada deu-lhe (e dá) forças para desencantar um prisma cativante e renovado da realidade, que repara no copo meio cheio. A «arte do ridículo» fê-la crescer humanamente, distanciando-a de uma dor devidamente relativizada, para transfigurar a percepção da vida através da «pirueta» saudável e discernida que o humor opera.

A sua personagem mais famosa – o Zé Manel taxista.

O pintas besuntado em brilhantina, «há 20 anos na praça» e irritantemente assertivo sobre todo e qualquer assunto

Ainda há nervos, quando entra em acção? Claro e são cada vez maiores, como aprendeu com outra referência do teatro – Eunice Munoz – porque há mais noção do que se faz e deseja-se cumprir melhor a «matemática de uma peça (…) com coragem e grande humildade. (…) Cada espectáculo é único.» 

Quando está sob os holofotes: «espero ser veículo de qualquer coisa; sei que não sou bem só eu (ali).» Empenha-se em «mostrar alma, humanidade e revelar os dois lados da vida: comédia e tragédia».

Adoptou o lema do Papa Francisco «levai a vida com humor», entendendo-o como a aceitação do outro, exactamente como ele é. Explicou-o com uma imagem tocante, ligando o Papa a um contratempo parvo com uma catequista da infância, quando veio para Lisboa, depois da família perder tudo em África. Queria excluí-la de uma procissão como figura de relevo, por não ter sapatos pretos! À data, a criatividade da mãe solucionou-lhe o problema. E hoje, Rueff vê Francisco como alguém que saberia sempre acolher aquela pequenina com os sapatos da cor que fossem. Foi a vez da experiente entrevistadora ser apanhada pela comoção, depois da ‘pirueta’ magistral feita a partir de um episódio apoucado de outrora, numa criatividade benigna.

O santo da sua devoção é, naturalmente, uma escolha pessoal, muito pensada, que lhe serve de bússola no trabalho: o pouco conhecido S.Filipe Nery (1515-1595), à parte da rua junto ao Largo do Rato – um italiano jocoso, ‘buffone’, nas suas palavras,  que não se coibiu de brincar com o Papa e Santo Inácio de Loyola. Nem acha suficiente ser conhecido por o ‘santo da alegria’ alguém que levou bem mais longe a graça. Maria chegou a ir à Igreja dedicada a Nery, em Roma, onde lhe pediu ajuda para saber ultrapassar a dor e depois manter-se nesse trilho exigente e sub-reptício da comédia bondosa. Evocou a bondade inúmeras vezes, procurando-a e convocando-a constantemente. 
  
O que Deus lhe pede? «Acho que Ele nos pede escuta. E a comédia é uma arte muito barulhenta.»

O que lhe falta fazer?  «Deus sabe! Agradeço tanto a Deus. Não fiz nada, só recebi, embora trabalhe muito. Tenho de estar atenta a tudo, tudo. Não sou ambiciosa. (…) Os meus pais acreditavam mais em mim do que eu própria. (…) As coisas vão-me acontecendo. Mas tudo o que faço é com paixão. Tenho de pôr o coração nas coisas.» 

Está preparada para um dia partir? «Faço muito o exame de consciência, dos jesuítas, e o exercício do perdão. Já pedi perdão a figuras com quem brinquei e poderei ter magoado… Também agradeci a quem devia. Estou preparada para Deus me dizer ‘vá, está na hora’.»

O que pede à vida? «Só peço para a minha filha uma estrada que possa ser tão florida como foi a minha.»

Correm em acelerado aqueles 50 minutos de flashes sobre uma vida com garra, graça e enorme atenção aos outros. O olhar lúcido e meigo dá uma imensa frescura ao seu humor, que entra naquele registo raro, imune ao cinismo que cede à piada fácil e amargo-corrosiva. Em Rueff, a vontade de viver aproxima-a de quem a rodeia, para «amar o outro como ele é. É isso que o humorista faz de alguma forma».  Afinal, parte tudo do mesmo Epicentro.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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30 julho 2019

Duas Últimas

Sou fã de Anne Hathaway. Há qualquer coisa nela que me encanta - e não será, seguramente, uma beleza óbvia que não tem. Domingo, ao fazer zapping, cruzei-me com um concurso onde uma concorrente imitava a actriz a cantar uma parte da peça Les miserables. Ontem fui ver o original e gostei muito: pareceu-me uma interpretação poderosa, num texto igualmente poderoso (convém seguir a letra) suportado por uma música muito bonita.

JdB


29 julho 2019

Da (falta de) limitação

Na sua crónica de sábado, no Observador, Alberto Gonçalves diz: "[r]ecentemente, deparei na internet com uma senhora que se considera “guerreira”, casada com um “marido guerreiro” e mãe de dois “filhos guerreiros”.

No seu livro 12 Regras para a Vida, com subtítulo Um Antídoto para o Caos (Lua de Papel, 2018), Jordan B. Peterson diz a dada altura: "[c]ontei-lhe uma antiga história judaica, que acredito ser parte do comentário à Torá. Começa com uma pergunta estruturada como uma máxima zen. Imagine um Ser que é omnisciente, omnipresente e omnipotente. O que falta a tal Ser? A Resposta? Limitação." 

***
Os dois excertos - um de um artigo de jornal, outro de um livro - têm mais em comum do que possa pensar-se. Não comparo Jordan Peterson com Alberto Gonçalves (estão em planos distintos), menos ainda comparo a senhora guerreira, que não sei quem é, com Deus (estão em planos ainda mais distintos). Em que se intersectam então ambos os textos? Na ideia de limitação ou, melhor ainda, na ideia de falta de limitação.

Há um certo horror à limitação nos dias que correm. Por um lado, as revistas cor de rosa estão cheias de pessoas felizes, guerreiras, com sucesso, a viverem permanentemente o seu grande amor, a terem dias de grande cumplicidade com o(a) último(a) parceiro(a) ou com o filho que lhes dá uma sensação de completude, de alegria e de proximidade. Isto aplica-se, obviamente, àquilo que as pessoas dizem de si, não o que as revistas dizem dessas pessoas.

Num certo sentido falta limitação à sociedade. Falta pessoas que digam que não conseguem, que têm dificuldades, que erraram, que escolheram caminhos inadequados, pessoas incertas, carreiras desajeitadas. Falta pessoas que digam que desistiram, ou que não desistiram, não porque eram lutadoras, mas porque tiveram ao lado alguém que não as deixou desistir. 

Já vivi a idade do sucesso profissional; a minha rede social é composta por muita gente que está reformada ou que para lá caminha. Mas houve o tempo em que as conversas eram sobre as promoções, sobre os benefícios, sobre as respostas que inpunham respeito ou, como me disse um gestor de conta com um gabinete com vista para um beco: ainda ninguém percebeu que...  

A propósito de limitação, ou de falta dela, vale a pena reler os primeiros versos do Poema em Linha Recta, de Fernando Pessoa. Até porque o que aproxima as pessoas são as fragilidades, não são os sucessos.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. 
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
(...)

JdB  

28 julho 2019

17º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lc 11,1-13

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Estava Jesus em oração em certo lugar.
Ao terminar, disse-Lhe um dos discípulos:
«Senhor, ensina-nos a orar,
como João Baptista ensinou também os seus discípulos».
Disse-lhes Jesus:
«Quando orardes, dizei:
‘Pai,
santificado seja o vosso nome;
venha o vosso reino;
dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência;
perdoai-nos os nossos pecados,
porque também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende;
e não nos deixeis cair em tentação’».
Disse-lhes ainda:
«Se algum de vós tiver um amigo,
poderá ter de ir a sua casa à meia-noite, para lhe dizer:
‘Amigo, empresta-me três pães,
porque chegou de viagem um dos meus amigos
e não tenho nada para lhe dar’.
Ele poderá responder lá de dentro:
‘Não me incomodes;
a porta está fechada,
eu e os meus filhos estamos deitados
e não posso levantar-me para te dar os pães’.
Eu vos digo:
Se ele não se levantar por ser amigo,
ao menos, por causa da sua insistência,
levantar-se-á para lhe dar tudo aquilo de que precisa.
Também vos digo:
Pedi e dar-se-vos-á;
procurai e encontrareis;
batei à porta e abrir-se-vos-á.
Porque quem pede recebe;
quem procura encontra
e a quem bate à porta, abrir-se-á.
Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe,
em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente?
E se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião?
Se vós, que sois maus,
sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
quanto mais o Pai do Céu
dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem!».

27 julho 2019

Do tempo real *

- Compadre! Sabe como se chamam os habitantes de Évora?
- Todos todos na sê!

***

Antes de se ter inventado, nas suas múltiplas vertentes, o conceito de tempo real, já existia o conceito de tempo real - eram os maçadores. Esta ideia de tempo real está mais divulgada como operações que são executadas e mostradas no exacto instante em que ocorrem. Podemos falar de uma videoconferência, mas podemos falar de um programa de televisão em directo.

A anedota acima talvez seja, de entre as divertidas que vou ouvindo, a mais curta. Nunca uma anedota - género humorístico que deveria ser usado parcimoniosamente, como o tamarindo - atingiu um patamar tão elevado na relação custo benefício: é curta e faz rir. Mais do que isto maça e prejudica a saudável relação entre as pessoas que se querem bem.

Ora, se imaginarmos este diálogo em tempo real, e não como anedota contada ao café, ele demora mais tempo. Dois velhos reformados à sombra do toldo no café central local, uma mão lenta a enxotar as moscas na fase poisante, o cumprimento à vizinha, o cigarro que se acende, a pergunta que se faz e a resposta por que se espera. Ia dizer anseia, mas talvez seja demais. Há, no diálogo, um vagar que o Saint-Exupery apreciaria. 

Um homem saudável, no domínio das suas funções cerebrais - pelo menos essas - conta a anedota em 10 ou 15 segundos. O maçador socorre-se do conceito de tempo real e torna-se num manoel de oliveira da tradição oral. Enquadra, agita os braços, corrige a anedota a meio (o que será o meio de uma piada com duas frases) indaga se os presentes imaginariam a temperatura, faz alusões jocosas aos possíveis nomes dos intervenientes. Quando chega ao fim, há cortes de veias e esgares de ódio. Mas ele - o maçador - usou em pleno o conceito de tempo real, porque a anedota, na sua mente, demorou o mesmo tempo que o diálogo entre os velhos, com o toldo, a sombra, a mosca e o vagar de tudo...

Escusado será dizer que o raciocínio se aplica igualmente ao contar de histórias. Enquadrar uma história sobre o avô que bebeu, a tia que caiu ou o primo que era herói é enquadrar uma história brevemente. Não precisamos do tempo real, da lentidão com que o vizinho empurrava o barco, do cão que ladrava, do gelado que derretia nas mãos de uma criança feliz ao longe. Enquadrar é enquadrar, porque uma história não tem - nem deve ser - uma ópera de Wagner.

Quando perceberem que eu agarrei o conceito de tempo real dêem-me uma palmada nas costas. Se eu não reagir, batam-me com uma pá de ferro. Obrigado.

JdB

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* publicado originalmente a 20 de Novembro de 2014

26 julho 2019

Duas Últimas

Cascais, 24 de Julho de 2019
Graças à generosidade de alguém próximo, fui ver Diana Krall ao vivo em Cascais. Sou fã dela, e nunca a tinha visto ao vivo, o que foi uma boa experiência, não fosse o tempo de espera e o barulho de uns americanos (que mandei calar, confesso o arrojo) que não paravam de falar durante a actuação do artista que abriu o concerto. 

O que tenho a dizer? Coisas positivas, obviamente: uma grande intérprete, uma grande pianista, interpretações fantásticas, de cujo repertório retiro A Case of You, de Joni Mitchell, da qual retiro estas linhas:

I met a woman, she had a mouth like yours, she knew your life
She knew your devils and your deeds and she said
Go to him, stay with him if you can
But be prepared to bleed

 Do que não gostei? Do saxofone (não nesta música) demasiado presente. O saxofone é invasivo, quanto a mim. Bastava-lhe o piano, o contrabaixo, a bateria. Se Diana Krall me perguntar a opinião, não hesitarei em dizer-lhe isto...

JdB  

25 julho 2019

Textos dos dias que correm

A teologia da prosperidade

Em abril de 2016, no Rio de Janeiro, atravessávamos de automóvel a cidade de automóvel com o arcebispo, o cardeal João Tempesta Orani, em direção ao célebre Cristo do Corcovado para uma cerimónia inter-religiosa, quando fiquei surpreendido ao ver a construção de uma espécie de imponente catedral. A resposta do cardeal foi ainda mais surpreendente: tratava-se do templo que estava a erigir Marcelo Crivella, “bispo” da Igreja Universal do Reino de Deus, um milionário brasileiro então candidato a presidente da câmara da metrópole, cargo que obterá nas eleições de poucos meses depois.

É sabido que uma das fontes de votos mais amplas para a ascensão ao poder do presidente brasileiro Jairo Messias Bolsonaro foi precisamente esta área religiosa em forte expansão um pouco por toda a América Latina. Trata-se de uma constelação de grupos espirituais que nascem como cogumelos sobretudo nos bairros pobres, e que têm à cabeça proprietários ricos, dotados de redes de rádio e televisão, como no caso da Rede Record, fundada por um pastor da mesma “Igreja” de Crivella, Edir Macedo, também ele milionário

Estamos na presença de um fenómeno em expansão, que tem como matriz o protestantismo “pentecostal”, dito também “evangélico”, que não deve ser confundido com as confissões “evangélicas” clássicas (no Brasil denominadas também “de missão”), como os luteranos, os presbiterianos, os metodistas, e assim por diante.

A galáxia pentecostal, fluida e difusa em mil ramificações e agregações, tendencialmente de matriz conservadora e integralista, tem simbolicamente um início já nos séculos XVIII-XIX, com o chamado “Despertar”, uma reforma na Reforma protestante de cariz espiritual e carismático.

O nascimento mais ou menos lendário do fenómeno tem como berço uma data emblemática, a noite de 31 de dezembro de 1990 para 1 de janeiro de 1901, quando uma aluna da escola bíblica de Topeka (Kansas) começou a “falar em línguas”. Trata-se de um fenómeno extático, diversamente interpretado, que remontaria às origens cristãs sob o termo equivalente grego de “glossolalia”. Na realidade, fazia-se então referência não tanto a um perfil poliglota, mas sobretudo à capacidade de propor discursos de intensa e alta espiritualidade, com uma linguagem complexa e algo esotérica.

A par desta componente, registava-se o poder de realizar prodígios, sobretudo terapêuticos, acompanhados por uma oralidade emotiva intensa que privilegiava o corpo, com cantos, danças, pregações enfáticas segundo modalidades de génese afro-americana.

Do ponto de vista mais teológico, incluíam-se outros dois temas. De um lado, a “holiness”, a “santidade” – evocada já no protestantismo clássico metodista (com o fundador John Wesley) –, colocada em paralelo com a famosa doutrina luterana da “justificação da fé”, e que se exprimia através do “batismo no Espírito Santo”.

Por outro lado, as comunidades pentecostais eram atravessadas por frémitos milenaristas: Cristo voltaria rapidamente à Terra, no meio de epifanias catastrófico-apocalípticas, para inaugural um reino de mil anos, destinado a desembocar no Juízo Final.

É curioso notar que uma enciclopédia das religiões, publicada em Itália em 2001, elencava e descrevia nada menos que 95 denominações de matriz pentecostal presentes no país. Mas a especificidade dos grupos latino-americanos (em particular brasileiros) está ligada a uma teoria que é habitualmente classificada como “teologia da prosperidade”.

A ela fizemos referência há algum tempo nesta página, no contexto da apresentação da figura de Gustavo Gutierrez, fundador da “teologia da libertação”, que daquela é o exato antípoda. Já então um nosso leitor nos tinha pedido para particularizar esta conceção que exerce grande atração em contextos sociais pobres, e dá vigor ao crescimento dos movimentos pentecostais.

É incrível, mas a citada “catedral” do autarca do Rio, como me fazia notar o arcebispo Tempesta , surge numa avenida com o nome de Hélder Câmara (1909-1999), bispo de Recife, conhecido defensor da justiça e da libertação social.

A “teologia da prosperidade”, por seu lado, canoniza uma conceção neoliberal e meritocrática, segundo a qual a riqueza seria o sinal de uma bênção divina que premeia a fé do sujeito com bem-estar, o sucesso económico-social, a saúde, a prosperidade precisamente. Pobreza, doença, miséria, infelicidade são, ao contrário, expressões do juízo e da maldição divina, pelo que é necessária a conversão e o discipulado diante daqueles que são exaltados por Deus com a riqueza.

Por isso, não deve haver empenho nas mudanças sociais, na redenção das classes miseráveis, na libertação da opressão económica, mas dedicação ao seguimento dos protegidos de Deus, à procura do lucro pessoal, na prevalência do individualismo sobre o bem comum.

A espiritualidade destes grupos religiosos (chamá-los “Igrejas” é teologicamente incorreto) é em determinados elementos alienante e ilusória, mas fascina muitas pessoas simples, que se sentem orgulhosas por serem acolhidas num ambiente tão prestigiante, e desejosas de imitar estes personagens de sucesso tão triunfal.

As raízes da “teologia da prosperidade”, que esvazia as igrejas católicas e protestantes clássicas, são remotas, e, através da mediação de uma certa visão calvinista, remontam a uma tese presente sobretudo no Antigo Testamento, e conhecida como “teoria da retribuição”. Tratava-se de um expediente rápido para resolver o escândalo do mal e do sofrimento: estes mais não eram do que uma punição divina por uma culpa do sujeito atingido. Na prática, os binómios “delito-castigo” e “justiça-prémio” determinariam com uma simples mudança de rota ético-teológica o desconcerto que o mal gera na história.

A esta visão reagirá veementemente Job, no seu diálogo com os amigos teólogos no célebre livro bíblico homónimo. E o próprio Jesus será claro ao rejeitar esta teoria simplista quando, perante o caso limite do cego de nascença, à pergunta segundo o cânone “retributivo” dos seus discípulos - «quem pecou, ele ou os seus pais, para que tenha nascido cego?» -, replicará invertendo a asserção: «Nem ele pecou nem os seus pais, mas é para que nele se manifestem as obras de Deus».


Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Cortile dei Gentili
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 24.07.2019

24 julho 2019

Crónicos de um doutorando tardio - ofertas para o 1º semestre 2019 / 2020

Questões canónicas (João Figueiredo)

A partir de exemplos práticos de análise literária, a realizar nas sessões, e da discussão de textos habitualmente classificados como teóricos, o curso pretende discutir um conjunto de questões centrais ao estudo da literatura. Algumas das perguntas a que se tentará dar resposta são:
     -Qual a diferença entre descrever e interpretar?
     -O que fazemos quando tentamos perceber um poema?
     -O que torna uma interpretação boa?
     -Há factos nos estudos literários?
     -Como escolhemos entre várias interpretações de um mesmo texto?
     -O que é, afinal, a teoria da literatura?
O conjunto dos textos a discutir, composto por ensaios críticos e ensaios que reflectem sobre o que fazem os críticos, propõe um cânone mínimo da crítica e da teoria literárias, e entre os autores a estudar encontram-se I. A. Richards, Frank Kermode, E. D. Hirsch, Stanley Fish, W. K. Wimsatt & M. C. Beardsley, Michael Riffaterre, T. S. Eliot, Stanley Cavell, Steven Knapp & Walter Benn Michaels, Richard Rorty.


Shakespeare e dívida (Miguel Ramalhete Gomes)

Na sequência da crise financeira de 2007/2008, o peso da dívida veio a sentir-se não apenas nos orçamentos dos estados, mas também na literatura e no seu estudo. Contudo, a dívida é uma das relações económicas mais antigas que conhecemos: está na linguagem que usamos e na literatura que lemos. Neste seminário discutiremos a presença e implicações da dívida em três peças de Shakespeare: The Merchant of Venice, Timon of Athens e Coriolanus (assim como em duas fontes desta peça, Plutarco e Tito Lívio). Partindo da experiência contemporânea da dívida e do trabalho de Marc Shell e de David Graeber, entre outros, exploraremos o efeito do dinheiro que é devido na conceptualização do valor, nas relações sociais e nos corpos dos endividados. A frequência do seminário não depende de literacia financeira prévia.


Teoria geral da interpretação (Miguel Tamen)

A maior parte das teorias sobre interpretação defende que a palavra designa uma única actividade; tal actividade será linguística, quase de certeza mental, possivelmente “artística.”  A palavra ‘interpretação’ designa porém muitas coisas diferentes, nem todas linguísticas ou mentais ou artísticas.  O seminário será dedicado aos vários sentidos em que falamos de interpretação; a partir deles tentará encorajar uma imagem mais geral do tópico e das suas dificuldades.

Procederemos em cada sessão por analogia com actividades ou descrições familiares; os assuntos serão apresentados por uma ordem crescente de complexidade que permitirá relações com discussões anteriores.  Não será usada bibliografia específica, ou expostas teorias bem-conhecidas sobre o assunto; embora possa eventualmente vir a ser indicada bibliografia de apoio a propósito de questões particulares.

No fim de cada uma das primeiras dez sessões cada participante será convidado a escrever um ensaio de menos de 500 palavras: esses ensaios não serão classificados.  Quem tiver entregue dez desses ensaios poderá depois escrever um ensaio final, de cerca de 2000 palavras, durante as últimas quatro semanas do semestre.   Além disso, cada participante terá que formular pelo menos uma objecção oral a uma das analogias usadas para motivar a discussão.  A nota do seminário será o resultado da ponderação do ensaio final e da participação oral.


Analogical Words and Analogical Thinking (Brett Bourbon)

The most basic and powerful mode of thinking proceeds by means of analogy. Analogy drives poetry, creativity, and human insight.  Analogical thinking is literary thinking. And it is much more.  It remains, however, poorly understood, linked somehow with metaphor it remains suspect.  On the other hand, much of what we imagine we know depends on analogy (the idea that we have a mind, e.g., we know only by analogy).

In this course, we will explore analogy as a mode of thinking and as an aspect of language and art.  We will begin with ancient Greek modes of thinking and then jump forward into ideas of language and poetry in the 18th century and in modernity.  We will also examine examples of analogy in science, in poetry, in philosophy, and in our everyday lives.  We will also explore the following four related concepts—metaphor, caricature, parody, and salience.

23 julho 2019

Música e poema para os dias de hoje



Lugares da Infância

Lugares da infância onde
sem palavras e sem memória
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.

Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?

Venderam a casa, as flores
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.

O quarto eu não o via
porque era ele os meus olhos;
e eu não o sabia
e essa era a sabedoria.

Agora sei estas coisas
de um modo que não me pertence,
como se as tivesse roubado.

A casa já não cresce
à volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.

Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois,
já o jantar tinha arrefecido.

E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e eu cubro a cabeça com os lençóis.

Manuel Pina, in 'Um Sítio onde Pousar a Cabeça'

22 julho 2019

Da ideia juvenil de casa comum

Aqui há algumas semanas falei com alguém que me é próximo sobre a ideia de casa comum. A ligação ao texto do papa Cuidar da Casa Comum foi óbvia, ainda que o horizonte da minha dissertação mental fosse mais modesto... Mas o facto é que o conceito - sei lá eu por que motivo - me andava a pairar no espírito até ter aproveitado um momento para sair da mente para fora.

A ideia de casa comum é aplicável a muitas dimensões: os sócios de uma empresa, os habitantes de um mesmo espaço, os cuidadores de uma mesma pessoa, uma relação conjugal. Ter presente a ideia de casa comum pode dar uma conotação diferente a muito do que fazemos. Dito de uma forma simples, a aplicável a uma dimensão familiar pode transformar uma tarefa num gesto de amor. Num instante, levar um velho a um médico, fazer um jantar, engomar umas calças ou substituir alguém que está cansado deixa de ser algo de maçador, e que pode não apetecer, para ser o cuidar de algo que é comum - e uma camisa que é preciso lavar-se para que outro vá a um evento importante pode ter essa dimensão. 

Recuo 45 anos para os anos de uma juventude normal, com paixonetas adolescentes que variavam equilibradamente entre o sucesso e o insucesso. Hoje, por uma associação qualquer de ideias, veio-me à memória uma rapariga por que me apaixonei com 15 ou 16 anos. Estávamos numa casa de amigos comuns e eu pedi-lhe para me guardar os cigarros, a chave de casa, uma caixa de fósforos, não sei. Podia ter posto tudo isso em cima de uma cómoda, que por aí ficariam. Não obstante, quis entregar-lhe a ela. Foi há 45 anos, mas foi - olhando para trás - a primeira ideia que tive de casa comum: alguém que olhava por algo que era meu, por mais insignificante que fosse esse algo.

JdB

21 julho 2019

16º Domingo do Tempo Comum

Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus entrou em certa povoação
e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa.
Ela tinha uma irmã chamada Maria,
que, sentada aos pés de Jesus,
ouvia a sua palavra.
Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço.
Interveio então e disse:
«Senhor, não Te importas
que minha irmã me deixe sozinha a servir?
Diz-lhe que venha ajudar-me».
O Senhor respondeu-lhe:
«Marta, Marta,
andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
quando uma só é necessária.
Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada».

***

Marta e Maria: Deus não procura servos, mas amigos *

Enquanto estavam a caminho… uma mulher de nome Marta hospedou-o na sua casa (Lucas 10, 38-42). Tem a exaustão da viagem nos pés, a fadiga da dor de muitos nos olhos. Por isso, repousar na frescura amiga de uma casa, comer em companhia sorridente é um dom, e Jesus acolhe-o com alegria.

Imagino toda a variada caravana recolhida na mesma sala: Maria, contra as regras tradicionais, senta-se aos pés do amigo, bebendo uma a uma todas as suas palavras; os discípulos, à volta, escutam; Marta, a generosa, está sozinha na sua cozinha, acocorada ao braseiro encostada à parede aberta do pátio interior. Alimenta o fogo, controla o caldeirão, levanta-se, passa e volta a passar diante do grupo, a preparar pão e bebidas e mesa, só ela afadigando-se por todos.

Os hóspedes são como os anjos junto aos carvalhos de Mambré, por isso é preciso oferecer-lhes o melhor. Marta teme não o conseguir, e então adianta-se, com a liberdade que lhe dita a amizade, e interpõe-se entre Jesus e a irmã: «Diz-lhe que me ajude!».

Jesus tinha observado longamente o seu trabalho, seguiu-a com os olhos, viu o reverberar das chamas no seu rosto, ouviu os ruídos do espaço ao lado, sentiu o odor do fogo e da comida quando Marta passava, era como se tivesse estado com ela, na cozinha.

Naquele lugar que nos recorda o nosso corpo, a necessidade do alimento, a luta pela sobrevivência, o gosto das coisas boas, os nossos pequenos prazeres, e depois a transformação dos dons da terra e do sol, também aí habita o Senhor (J. Tolentino).

E Jesus, afetuosamente, como se faz com os amigos, chama Marta e acalma-a («Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas»); não contradiz o coração generoso, mas a agitação que a “distrai” e a impede de ver de que é Jesus tinha verdadeiramente necessidade.

Jesus não suporta que a amiga esteja confinada num papel subalterno de serviços domésticos, queria partilhar com ela muito mais: pensamentos, sonhos, emoções, sabedoria, beleza, até fragilidade e medos. «Maria escolheu a parte boa»: Marta não se detém um minuto, Maria, ao contrário, é seduzida, completamente absorta, olhos líquidos de felicidade; Marta agita-se e não pode escutar, Maria, no seu aparente nada fazer, colocou no centro da casa Jesus, o amigo e o profeta (R. Virgili).

Teve de queimar-lhe o coração naquele dia. E ela tornou-se, como e antes dos discípulos, verdadeira amiga; e depois ventre onde se guarda e de onde germina a semente da Palavra. Porque Deus não procura servos, mas amigos; não procura pessoas que façam coisas para Ele, mas gente que o deixe fazer coisas, que o deixe ser Deus.


* Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 18.07.2019

20 julho 2019

Pensamentos Impensados

Acordo, esse aborto
Se o Adão e a Eva andavam nus, como é que tiveram uma relação de "fato"?

Dandy
Era tão requintado que a pasta de dentes tinha de condizer com os atacadores dos mocassinos.

Tãobalalão
O martelo que bate nos sinos das torres sineiras chama-se moca-sinos.

Avarias
O meu telemóvel ficou sem bateria; empurrei-o mas não pegou.

Frase desfeita
Não há pior cego do que aquele que quer ver.

Recatados
Cidadãos "low profile" vão fundar o Grupo Onomástico Os Anónimos, sendo padroeiro o Soldado Desconhecido.

SdB (I)

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* publicado originalmente a 9 de Novembro de 2013

19 julho 2019

Textos dos dias que correm *

Ser si mesmo como outro

«Nunca está só quem é pessoa. [O ser humano] torna-se pessoa numa correspondência de reciprocidade e de relação. É ser si mesmo como outro que torna o ser humano uma pessoa.»

Por mais de meio século, o filósofo francês Paul Ricoeur foi um ponto de referência nobre do pensamento contemporâneo. Entregamo-nos a estas suas palavras para comentar uma locução, o si mesmo como outro, que indica a relação que intercorre entre duas pessoas.

É famoso o apelo de Cristo: «Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei» (João 15,12). A mulher do Cântico dos Cânticos exprime de maneira fulgurante este ligame: «O meu amado é meu, e eu sou sua. Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu» (2,16; 6.3).

Não se é ainda plenamente pessoa humana se não se sai de si mesmo para encontrar o outro. A mónada fechada em si mesma, ou a porta blindada que te isola dos outros na suspeição e no medo, são imagens que representam uma situação bastante comum.

É verdade que há riscos de cada vez que se abre a porta do coração ou se estende o braço a um outro, mas desgraçado de quem decide optar pelo isolamento e pelo autismo espiritual.

Já Qohélet, sábio bíblico deveras cético no que diz respeito ao próximo, reconhecia que «é melhor dois do que um só:tirarão melhor proveito do seu esforço. Se caírem, um ergue o seu companheiro. Mas ai do solitário que cai: não tem outro para o levantar! E se dormirem dois juntos, dormem quentes; mas se alguém está só, como se há-de aquecer?» (4,9-11).

O egoísmo, a solidão forçada, o fechamento como um ouriço, no fim, tornam o ser humano já não uma pessoa, mas um prisioneiro de si mesmo, um infeliz autorrecluso, um segregado sem amor.


* P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 18.07.2019

18 julho 2019

Textos dos dias que correm *

Livros. 30 anos depois, talvez, de ter tentado ler, na língua original, o Ulisses de James Joyce – e ter desistido na página 2 – leio o Retrato do Artista quando Jovem (Relógio D’Água, tradução de Paulo Faria). Estou a gostar muito, sendo que tem de ser lido em pedaços parcimoniosos, porque a escrita é densa. Terminado em 1914, a novela descreve a infância em Dublin de Stephen Dedalus e a sua busca de identidade (da contracapa). Muito se passa num colégio interno de  jesuítas, e percebe-se que durante séculos o Céu dos católicos foi ganho, não à custa da procura do Bem, mas porque as pessoas tinham o pavor do Inferno e do castigo de Deus. Atente-se numa pequeníssima parte da pregação do orientador de um retiro para jovens de dezasseis anos: Sim, um Deus justo! Os homens, raciocinando sempre como homens, ficam estupefactos por Deus aplicar um castigo eterno e infinito no fogo do inferno como pena por um único pecado grave. Raciocinam assim porque, cegados pela grosseira ilusão da carne e das trevas do entendimento humano, são incapazes de apreender a infâmia hedionda do pecado mortal. Raciocinam assim porque são incapazes de perceber que mesmo o pecado venial tem uma natureza tão sórdida e tão hedionda que, ainda que o Criador omnipotente pudesse pôr fim a toda a maldade e infelicidade no mundo, as guerras, as doenças, os roubos, os crimes, as mortes, os assassínio, na condição de permitir que um só pecado venial ficasse impune, um único pecado venial, uma mentira, um olhar irado, um momento de preguiça deliberada, Ele, o grande Deus omnipotente, não o poderia fazer, porque o pecado, seja por pensamentos, seja por actos, é uma transgressão da lei d’Ele, e Deus não seria Deus se não punisse o infractor.

JdB

* excerto de um post publicado em 13 de Julho de 2012 

17 julho 2019

Vai um gin do Peter’s ?

ARTE EM CÉU ABERTO COM VHILS

Nascido na periferia de Lisboa, em 1987, treinado em graffiti desde os 10 anos e curso de Belas-Artes em Londres, Alexandre Farto rapidamente ganhou fama mundial. Mas com outro nome – o pseudónimo artístico Vhils. Este Verão, está a participar numa exposição em Nova Iorque ao lado dos cracks da arte urbana. 

Poucas são as grandes metrópoles que ainda não exibem um grande mural do artista. Presente em Londres, Paris, Berlim, Xangai, Sidney, Roma, múltiplos pontos do Brasil, EUA, Alemanha, França, Grécia, Noruega… merece uma viagem de circum-navegação, tal o grau de internacionalidade do seu património.



Criado na cintura industrial lisboeta, viveu a dureza de um país saído de uma revolução político-militar e falido duas vezes, no curto espaço de uma década. A utopia socialista-marxista foi a primeira paixão. Mas a idade e o mundo mostraram-lhe alguns dos senões das derivas ideológicas radicais, que tentam sobrepor-se à realidade atrás da miragem do ‘homem novo’. Ficou-lhe, pelo menos, o hábito (bom) de querer passar mensagens, ao jeito da ‘arte de intervenção’. Nesse afã de comunicar, por vezes, prefere a fórmula directa da frase provocatória: «Even if you win the rat race, you’re still a rat”. 

Para a capital alemã, escolheu a imagem da líder europeia que considera a mais lúcida da actualidade – a Chanceler Merkel. Recordou-a em olhar atento, ciente dos desafios homéricos, firme, sem ilusões e algum sofrimento. Quis também enquadrá-la no arco de estrelas da bandeira da UE, em homenagem à estadista e pelo futuro da Europa.



Em Lisboa, já há um roteiro possível para visitar as suas principais instalações, começando no berço da cidade:

ALFAMA
Amália posa em calçada portuguesa, no qual Vhils quis ter o apoio dos calceteiros da cidade.
Rua dos Cegos, nº 42.

SANTA APOLÓNIA
«Underdogs» data de 2013 e resultou no contributo do português para uma parceria sobre Arte Urbana, com PixelPancho, um artista de Turim. Lx Factory, na Avenida Infante Dom Henrique - Cais do Jardim do Tabaco.

ROSSIO
Intitulado «Memória (1964)», recorda o incêndio que devastou o Teatro D. Maria II, na madrugada de 2 de dezembro de 1964.
Salão Nobre do Teatro D. Maria II, na Praça Dom Pedro IV.

CHIADO
No interior do restaurante «O Honorato», a obra de Vhils destaca-se na parede junto ao balcão.
Largo Rafael Bordalo Pinheiro, desde Maio de 2015.

SANTA CATARINA 
A esplanada de um restaurante vegetariano de Santa Catarina soube aproveitar a marca muito humana que Vhils deixou impressa na fachada do nº 8 da Rua das Gaivotas

ALCÂNTARA – I       
«Dissecção» começou por integrar uma exposição de Vhils (Jun.2014), para continuar exposto no número 28 da Avenida da Índia, perto da antiga FIL.

ALCÂNTARA – II
Obra de Fev.2011, pertenceu ao festival de arte urbana Crono e ficou gravada na rua Cascais.

PÇ ESPANHA
Peça exterior de uma exposição da galeria de arte Vera Cortês, em Maio de 2012.
Avenida Calouste Gulbenkian, junto à Praça de Espanha.

BENFICA
Segunda peça da mesma exposição da galeria Vera Cortês, implantada no Eixo Norte-Sul, na rua Padre Carlos dos Santos, Bairro das Furnas - Lisboa.

BRAÇO DE PRATA
Concluída em Dez.2010, foi cenário do vídeo "M.I.R.I.A.M." da banda Orelha Negra, gravado em 2011. Rua Fábrica do Braço de Prata.

Vale a pena ampliar o circuito e fazer uma viagem(1), ao menos virtual, às centenas de instalações que Vhils espalhou pelas ruas movimentadas de outros pontos do globo. Ter encontrado uma linguagem para falar a todos… é Arte! 


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

 (1) https://www.vhils.com/

16 julho 2019

Poemas dos dias que correm

Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão, in 'Máquina de Fogo' 

***

Poema da Auto-estrada

Voando vai para a praia 
Leonor na estrada preta. 
Vai na brasa, de lambreta. 

Leva calções de pirata, 
Vermelho de alizarina, 
modelando a coxa fina 
de impaciente nervura. 
Como guache lustroso, 
amarelo de indantreno, 
blusinha de terileno 
desfraldada na cintura. 

Fuge, fuge, Leonoreta. 
Vai na brasa, de lambreta. 

Agarrada ao companheiro 
na volúpia da escapada 
pincha no banco traseiro 
em cada volta da estrada. 
Grita de medo fingido, 
que o receio não é com ela, 
mas por amor e cautela 
abraça-o pela cintura. 
Vai ditosa, e bem segura. 

Como um rasgão na paisagem 
corta a lambreta afiada, 
engole as bermas da estrada 
e a rumorosa folhagem. 
Urrando, estremece a terra, 
bramir de rinoceronte, 
enfia pelo horizonte 
como um punhal que se enterra. 
Tudo foge à sua volta, 
o céu, as nuvens, as casas, 
e com os bramidos que solta 
lembra um demónio com asas. 

Na confusão dos sentidos 
já nem percebe, Leonor, 
se o que lhe chega aos ouvidos 
são ecos de amor perdidos 
se os rugidos do motor. 

Fuge, fuge, Leonoreta. 
Vai na brasa, de lambreta. 

António Gedeão, in 'Máquina de Fogo' 

15 julho 2019

Textos dos dias que correm

«Espiritual sim, religioso não»: Tendência continua a crescer, sobretudo nos jovens

Atualmente são numerosos aqueles que afirmam ter interesses “espirituais”, mas não são se declaram “religiosos”, ou seja, ligados a uma religião, e desejam viver a sua espiritualidade privadamente, sem compromissos com qualquer instituição.

O fenómeno está espalhado em particular entre os jovens. A religião não tem quase nenhum influxo na sua vida. Na sua escala dos valores, a religião é considerada um assunto pessoal, e não ocupa sequer o primeiro lugar.

No primeiro lugar colocam os problemas “seculares”, como o bem-estar, a família, o tempo livre, etc. E mesmo aqueles que estão em busca, já não se dirigem à Igreja, mas preferem encaminhar-se para aquilo que é chamado “o mercado das religiões”, com particular atenção às do mundo oriental asiático.

O alemão Detlef Pollack, sociólogo das religiões, observa que o fenómeno não compreende a maioria das pessoas, mas está em expansão contínua. Tudo isto constitui um grande desafio para a Igreja.

«Espiritual sim, religioso não»: é a resposta à pergunta de fundo que regressa continuamente na vida de todos os dias. Em particular os adolescentes são os mais relutantes em comprometerem-se nas coisas respeitantes à religião e na pertença confessional.

Uma sondagem [na Alemanha] do ano passado referente ao ensino religioso e ético, dava os seguintes resultados: 52% acredita em Deus, mas só 22% se declara religioso, enquanto que quase o dobro se define simplesmente «crente».

De acordo com o sociólogo, o facto de as pessoas se definirem “espirituais”, e já não “religiosas”, não é um fenómeno de massa. Pollack evoca vários estudos segundo os quais entre 6 e 13% dos indivíduos na Alemanha diz ser só espiritual mas não religioso. Trata-se de uma minoria, mas que ganha consenso sobretudo entre os jovens.

Os motivos, continua o especialista, dependem dos muitos matizes do conceito de “religião”: a maior parte pensa no cristianismo e nas grandes (ainda) Igrejas. O ir à igreja e os dogmas estão aqui estreitamente ligados à fé em Deus.

«A distinção entre “espiritual” e “religioso” exprime a tentativa de colher formas de religiosidade que não têm uma conotação eclesial», assinala. Com efeito, as normas respeitantes à fé ditadas do alto gozam de boa reputação só num número cada vez menor de pessoas. A pessoa quer sentir-se sobretudo livre e realizar escolhas individuais e pessoais. Trata-se de uma tendência percetível a múltiplos níveis.

 A expressão chave que neste contexto é muitas vezes mencionada é a de “mercado”, ou “mosaico das religiões”. De facto, sobretudo as religiões do Extremo Oriente, como o budismo ou as formas de meditação ou de espiritualidade de países longínquos, encontram no Ocidente um grande interesse. O “mercado das religiões” torna-se mais variado. Isto, todavia, observa Pollack, não deveria ocultar o facto de que «o protagonista principal no mercado das religiões é constituído ainda pelas Igrejas».



Crentes conscientes de si

A atitude de autoconsciência diante das religiões não é um fenómeno novo. Já nos inquéritos dos anos 70 se notava uma alta percentagem de inquiridos que se definiam católicos, mas com a cláusula «à minha maneira».

É evidente uma mudança de perspetiva em relação à religião: os crentes de hoje consideram-na sobretudo uma questão pessoal – é a pessoa a colocar-se no centro do interesse religioso; isto, naturalmente cria uma tensão com os organismos como as Igrejas, que se consideram possuidoras de importantes mensagens, e pedem a docilidade do seu “rebanho”.

A raiz desta visão pessoal da fé remonta, de acordo com o perito, à Idade Média e ao tempo de Reforma. Os buscadores religiosos e os místicos da medievalidade tardia dedicavam-se, individualmente, à procura de Deus no exterior dos percursos tradicionais.

Lutero, sobretudo, coloca a relação individual com Deus no centro da sua teologia. O individualismo receberá depois forte impulso com o pietismo, que separou a piedade pessoal dos dogmas e da metafísica, e com o iluminismo, que colocou no centro a decisão pessoal em relação ao estado e à religião.

Na sequência da industrialização e do concomitante aumento do bem-estar social, da educação e da certeza do Direito, a principal preocupação das pessoas já não se coloca diretamente na sua sobrevivência.

As exigências pessoais tornam-se cada vez mais afirmadas relativamente ao estado e à opinião pública. No seguimento desta forte focalização sobre o eu, emerge o desejo da autenticidade.
As pessoas já não se querem submeter, mas permanecer autênticas, e isto reflete-se também na religião.



Um mercado variado de religiões

Por estes motivos, muitos voltam-se com interesse para o “mercado das religiões”. As fronteiras entre religiões, técnicas espirituais e práticas de bem-estar são eliminadas. Cada pessoa pode também procurar escolher o melhor para si, fazer opções personalizadas; o ioga, por exemplo, é uma perspetiva religioso-espiritual holística, mas em muitos casos concentra-se só sobre elementos desportivos e relaxantes.

A visão capitalista também tem um papel: muitos setores do esoterismo ou da espiritualidade prometem a descoberta de fontes ocultas ou potencialidades por expressar pelo eu, seja do ponto de vista profissional, seja privado. Segundo Pollack, também isto «não é estranho à religião». No fim de contas, trata-se sempre de um meio para reforçar o eu e os recursos neles contidos.

Estas tendências têm conotações muito diferentes nas pessoas que são religiosamente interessadas. Os esotéricos convictos representam uma exceção. A necessidade de espiritualidade é, todavia, muito sentida, e as Igrejas procuram responder-lhe, indagando nas fontes espirituais do cristianismo, e oferecendo percursos espirituais. O objetivo é atrair as pessoas que se distanciaram das formas tradicionais da fé.



Uma espada de dois gumes

Esta estratégia é, pelo menos em parte, frutuosa: com efeito, a espiritualidade, sobretudo na Igreja católica, tem um papel importante. Um estudo encomendado pela arquidiocese alemã de Colónia, o ano passado, revelou que os componentes espirituais podem ter um «grande peso» no que respeita à força de vinculação à Igreja.

Pollack considera que, no processo de individualização e de desaparecimento das fronteiras religiosas, a secularização tem um papel importante. Com as instituições religiosas permanece apenas uma relação muito frágil, com laços relutantes. Isto acontece não só nas Igrejas, mas também nos partidos e no estado, assim como nos próprios grupos esotéricos, cujo núcleo duro é frequentemente muito pequeno.

Em relação às Igrejas, a maior parte dos seus membros é distante. Apreciam, contudo, os valores religiosos para a educação dos filhos, mas para o resto mostram pouco interesse por Deus e pela vida após a morte. São mais importantes os âmbitos seculares: uma família que funcione, um trabalho gratificante, e a realização de si no tempo livre.

A religião nos vários âmbitos da vida é só um aspeto entre os outros, e muitas vezes não ocupa sequer, entre estes, o primeiro lugar. A vida secular oferece um número tão grande de possibilidades, que a atenção é desviada dos problemas religiosos. Para os mais jovens, até a política é mais importante do que a religião.

As pessoas que se definem “espirituais”, mas não “religiosas”, são incapazes de se opor à tendência geral da secularização. Afirmam menos do que os outros que se sentem «uma só coisa com o divino». Raramente vão à igreja. Espiritualidade significa por isso sobretudo que a religiosidade se desvanece e se torna vaga. Esta forma de religiosidade, salienta Pollack, tem pouco influxo sobre estilos de vida pessoal, sobre a educação dos filhos e sobre as opções eleitorais políticas.

Para as Igrejas, esta situação complexa constitui um duplo desafio: estar próxima com novas propostas que suscitem o interesse inclusive entre aqueles que estão à procura, mas que até agora permanecem longe da Igreja. Mas depois devem convencê-los com os conteúdos cristãos, e vinculá-los a si de maneira duradoura. De outro modo, a inclusão na Igreja não será mais do que um breve interlúdio.


Christoph Paul Hartmann
In Settimana News
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 12.07.2019

14 julho 2019

15º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lc 10,25-37

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
levantou-se um doutor da lei
e perguntou a Jesus para O experimentar:
«Mestre,
que hei-de fazer para receber como herança a vida eterna?»
Jesus disse-lhe:
«Que está escrito na lei? Como lês tu?»
Ele respondeu:
«Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma,
com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento;
e ao próximo como a ti mesmo».
Disse-lhe Jesus:
«Respondeste bem. Faz isso e viverás».
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
«E quem é o meu próximo?»
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Um homem descia de Jerusalém para Jericó
e caiu nas mãos dos salteadores.
Roubaram-lhe tudo o que levava, espancaram-no
e foram-se embora, deixando-o meio morto.
Por coincidência, descia pelo mesmo caminho um sacerdote;
viu-o e passou adiante.
Do mesmo modo, um levita que vinha por aquele lugar,
viu-o e passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem,
passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão.
Aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada,
levou-o para uma estalagem e cuidou dele.
No dia seguinte, tirou duas moedas,
deu-as ao estalajadeiro e disse:
‘Trata bem dele; e o que gastares a mais
eu to pagarei quando voltar’.
Qual destes três te parece ter sido o próximo
daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
O doutor da lei respondeu:
«O que teve compaixão dele».
Disse-lhe Jesus:
«Então vai e faz o mesmo».

***

Tocar as coisas de Deus no templo, e não tocar as criaturas de Deus na estrada *

A extraordinária inteligência comunicativa de Jesus: desvela o coração profundo, inventando uma história simples, que todos podem compreender, os professores como as crianças!

As parábolas são narrativas que provêm da voz viva de Jesus, é como escutar o murmúrio da fonte, o momento inicial, fresco, espontâneo do Evangelho. Representam o cume mais alto e genial, o mais acabado da sua linguagem, não a exceção. Para Ele, falar em parábolas era a norma. Ensinava não por conceitos, mas por imagens e histórias, que libertam e não constrangem.

Um homem descia de Jerusalém para Jericó (cf. Lucas 10, 25-37). Uma das histórias mais belas do mundo. Um homem descia, e nem um adjetivo: judeu ou samaritano, justo ou injusto, rico ou pobre, pode ser até um desonesto, um bandido: é o homem, cada homem!

Não sabemos o seu nome, mas sabemos da sua dor: ferido, golpeado, terror e sangue, rosto por terra, não se consegue recuperar por si só. É o homem, é um oceano de homens, de pobres derrubados, humilhados, bombardeados, naufragados, bolsas de humanidade ensanguentada em cada continente. O mundo inteiro desce de Jerusalém para Jericó, sempre.

O sacerdote e o levita, os primeiros que passam, têm diante de si um dilema: transgredir a lei do amor ao próximo, ou a aquela do ficarem puros, evitando o contacto com o sangue. Escolhem a coisa mais cómoda e mais fácil: não tocar, não intervir, passar em volta do homem, e… permanecer puros. Pelo menos exteriormente. Enquanto que por dentro, o coração adoece.

Tocam as coisas de Deus no templo, e não tocam as criaturas de Deus na estrada. A sua religião é meramente de fachada, e não fé que acende a vida e as mãos. A mensagem é forte: gestos e objetos religiosos, ritos e regras “sagradas” podem obscurecer a lei de Deus, fingir a fé que não há, e usá-la a bel-prazer. Pode acontecer também a mim, se troco a alma do Evangelho, o seu fogo, por pequenas normas e gestos astutos.

Quem faz emergir a alma profunda é um herege, um estrangeiro, um samaritano em viagem: vê-o, tem compaixão dele, faz-se próximo. São termos de uma carga infinita, belíssima, transbordam humanidade. A compaixão vale mais do que regras cultuais ou litúrgicas (do sacerdote e do levita); mais do que regras doutrinais (o samaritano é um herege); supera as leis étnicas (é um estrangeiro); ignora as distinções moralistas: socorro aquele que o merece, os outros não.

A divina compaixão é assim: incondicional, assimétrica, unilateral. No centro do Evangelho, uma parábola, um homem. E o sonho de um mundo novo, que estende as suas asas aos primeiros três gestos do bom samaritano: viu, teve compaixão, fez-se próximo.


* Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 11.07.2019

13 julho 2019

Pensamentos Impensados *

Margaret Thatcher disse, e cito de cor: o socialismo dura até se acabar o dinheiro dos outrosEla devia chamar-se Teacher.

Arte contemporânea é uma definição bastante vaga. Tenho uma neta com 6 anos que faz uns rabiscos que, pelo menos, são contemporâneos.

Há em Tomar o Museu do Fósforo que, penso, deve ter 2 administradores: um nomeado pelas cabeças e outro nomeado pelas lixas.

Um dia tive comichão no cotovelo direito e só consegui coça-lo com a mão esquerda; felizmente sou canhoto.

Disseram-me que para bom funcionamento dos intestinos se devia comer fibra; comi umas meias de fibra de vidro e fizeram-me mal; a seguir comi fibra óptica e o resultado foi pior. Quem me deu este conselho foi um madeirense que, se calhar, quis dizer "febra". É o que vou comer.

Se eu tiver a revista CARAS encadernada posso dizer que tenho um "facebook"?

Há tempos perguntei por que é que os ursos não comem pinguins; pela simples razão que os ursos vivem no Árctico e os pinguins na Antárctida.


SdB (I)

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* publicado originalmente a 9 de Abril de 2011

12 julho 2019

Textos dos dias que correm

Vincent Lambert, inumanidade, eternidade
Estou a velar a minha mãe. São, talvez, as últimas horas da sua longa jornada. Extingue-se lentamente por causa da fome e da sede. Deixou de conseguir engolir. Ontem teve uma crise muito forte, pensei que fosse o coração; era a sede. O seu sofrimento atravessou-me a alma, e a mente lembrou-se espontaneamente de Vincent Lambert e aos muitos, como ele, deixados a sofrer tão desumanamente [depois de ter sido privado de substâncias alimentares e de líquidos necessários para a sua existência].

A minha mãe, de 84 anos, tem uma vida plena, uma grande fé. Agora o seu corpo não pode receber soro, mas não queremos levá-la para o hospital, para as mãos de outros. Morre aqui, onde a vimos trabalhar e amar, sofrer por nós. Uma dor, sim, mas também uma glória, um orgulho. Ao contrário, para os Lambert, para os Alfie de ontem e de hoje, com o seu secreto destino interrompido bruscamente, que glória, que dignidade?

Olho à volta. Nas paredes de casa, as fotografias de família trazem de volta a minha mãe como era antes, e como permanece indelével no coração. Entre as imagens está também a reprodução de uma pintura de Dalí: “Persistência da memória”. A minha mãe gostava da arte, vibrava com as coisas belas; muito lhe devo a minha sensibilidade e a minha paixão atual.

Também Dalí, naquela noite, em angustiosa espera da sua mulher Gala, tinha diante dos olhos alguma coisa já vista: a paisagem marinha e rochosa do cabo de Creus, pintado anos antes e nunca concluído. Foi então assaltado por uma dolorosa solidão, e por um instante percebeu a futilidade de todas as coisas. Pegou na tela e começou a pintar sobre as rochas relógios derretidos. Queria exprimir assim o inexorável liquefazer-se de todas as coisas.

Sobre o relógio de bolso, em primeiro plano, formigas em movimento, sinal da matéria corruptível que não resiste ao choque do tempo. Terá Dalí percecionado o drama da eternidade? O nosso corpo não é eterno, mas a exterioridade não é mais do que o invólucro das coisas, como o vidro e o aro não são mais do que o recipiente do relógio. O nosso destino só pode ser outro.

O declínio do corpo não pode ser a última palavra sobre o ser humano, de outra maneira também nós seremos um dia pasto para as formigas. Assim pensam, talvez, aqueles que desprezam o ser humano com deficiência. Mas não, não somos pasto para formigas, e precisamente aqui e agora, à cabeceira da minha mãe, olhando o seu rosto tão semelhante à figura central pintada por Dalí, compreendo o dom enorme recebido, a espessura de uma vida que agora me está a dar à luz de novo na dor, mas uma dor de outro género e de outra natureza.

São por isso para mim muito tristes aqueles que descem às praças embandeirando um progresso que mata os inermes, denegrindo o valor inestimável da família fundada sobre um homem e uma mulher, troçando de princípios não negociáveis em nome de uma civilização finalmente sem Deus.

O tempo nunca acaba quando se está à cabeceira de uma pessoa que sofre, tem-se a sensação de viver minutos eternos. No entanto, é neste tempo dilatado que se oculta a hora da verdade. A hora em que todas as hipocrisias, as teorias, as bandeiras mais ou menos vencedoras que erguemos desaparecem. As batalhas aqui na Terra não valem nada se não combatem pela eternidade, se não lutarem contra caminhos que não são nossos, mas "outros".

«Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum»: a voz do papa Bento traz-me de volta à realidade. A oração em latim acalma a minha mãe. No estado de sonolência em que se encontra, mal responde, movendo os lábios. Sim, tudo é vaidade, diz Qohélet: só restam a oração e a cruz, o verdadeiro mar que nos leva a outras praias, semelhantes à paisagem sem limites por trás dos derretidos relógios de Dalí.


Gloria Riva
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 11.07.2019

11 julho 2019

Do plágio

Num certo sentido, ter um cão apaziguou a minha relação com os cães. O último cão que tive desapareceu correndo atrás de um carro, sem que o conseguíssemos deter. O penúltimo, dizem que com graves problemas de dores de ouvidos, mordia inesperadamente e democraticamente. Ao temor da incerteza quanto à reacção do cão associava-se um horror que tenho, talvez atávico, às surpresas. Na verdade, só gosto das surpresas quando me informo previamente do que serão. A existência do cão com otites, mal que degenerava numa certa violência, fazia suspender a minha mão perante o focinho de um cão. Será que vai morder? Tem problemas de dores inesperadas? Ter um cão manso e simpático em casa pacificou-me: talvez a maioria dos cães seja assim, pelo que hoje me atiro à festa de forma quase universal, com um denodo de que não me sentia capaz.

A introdução é longa e tem um propósito central, que é explicar que as coisas mais prosaicas nos proporcionam uma relação diferente com outras coisas prosaicas. Se o meu cão actual me deu um novo sossego com os cães em geral, a tradução de um livro em que o pensamento de S. Tomás de Aquino (Itália, 1225 - 1274) está muito presente deu-me um novo olhar sobre aqueles que são acusados de plagiadores. Um olhar mais pacífico, apresso-me a dizer. Eu explico.

Um dia escrevi a um amigo que me sentia como a criança a quem dão uma gravata pela primeira vez, e que a põe ao pescoço também pela primeira vez. A gravata existe há muito no mundo, mas, para o miúdo, tudo aquilo é uma novidade, e ele sente-se como se fosse o primeiro homem a usar uma gravata. É uma emoção única, que o mundo só conheceu naquele dia. Depois disso, tudo é uma cópia, um pastiche da emoção juvenil. Sabemos bem que não é assim. Mas eu, adulto feito e direito, tive largos momentos de veleidade intelectual: discorria sobre as coisas como se elas me brotassem frescas na mente; em bom rigor, tudo aquilo em que eu pensava como se fosse um pensamento virgem já existia desde há muito nos livros. Nunca inventei nada, a não ser a veleidade de inventar.

Um dia fiz uns versos singelos, para serem cantados numa melodia de fado. Algo me soava estranho, depois de vê-los escritos. A resposta era simples: uma das frases era de uma música conhecida e eu não me apercebera disso. Nessa linha de pensamento - e socorrendo-me da maior bonomia possível - há muitos plagiadores que não plagiam verdadeiramente: acham que criaram uma linha melódica única - como única é a gravata do miúdo - mas depois percebem que aquela linha melódica já havia sido criada por alguém. A gravata do miúdo, o meu pensamento, a frase musical fazem parte de uma mesmo contínuo, que é o das coisas que já foram potencialmente inventadas.


A Summa Theologica, a obra magna de S. Tomás de Aquino, consta dos pontos da fotografia acima. Pensamos em vidas equilibradas, e S. Tomás escreveu sobre isso; pensamos em preço justo das coisas, e S. Tomás dedica-lhe páginas de pensamento; pensamos em propriedade privada e S. Tomás debruçou-se sobre isso; pensamos em vida boa ou em felicidade e está lá tudo, pela pena e pensamento de S. Tomás de Aquino. Talvez não inventemos nada de muito importante, apenas copiemos o que outros já inventaram. A probabilidade de plagiarmos é muito alta; felizmente o meu cão pôs tudo em perspectiva.

JdB 

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