05 março 2010

polaroids de figuras extintas*

#1 - cesário

a professora sussurrou-nos, dentro da escola primária,
(cheiro a lenha a arder, o aquecimento improvisado que havia)
que nesse dia não irias estar connosco,
que ficaras doente ou a acompanhar a tua mãe
(a memória faz-me escrever viúva, mas a memória não é sempre amiga)
- trabalhos do campo ou lá o que era.

no dia seguinte, voltaste à escola,
frágil como quase todos os meninos e meninas desses dias,
em que fazia frio em todas as casas
(e fome nalgumas, mas tenho vergonha de o escrever..).
voltaste à escola e a professora deu-te as boas-vindas do regresso,
perguntando-te qualquer coisa, em voz alta.

lembro-me, cesário, que te levantaste do teu lugar,
meio metro de gente agarrada a uma capucha que brilhava,
e que disseste assim:
- ontem, a minha mãe fez-me esta capucha,
enquanto me pedia que rezasse um terço por ela.

acho que nunca recuperei dessa frase.
tantos anos depois, décadas sem te ver,
vens-me à memória, uma e outra vez,
tal como essa dignidade que não sei dizer,
tantos livros e tantos discos e tantos beijos depois.

eu sei, cesário, que ontem como hoje,
houve meninos e meninas, naquela sala,
que te esqueceram, que nem repararam
na profunda beleza do que ali acontecera.

eu sei, cesário, que hoje como ontem,
há meninas e meninos, que vão ler estas palavras,
e seguir em frente, encolhendo os ombros e largando um
'que horror, tanto sentimentalismo enjôa..'.

- ontem, a minha mãe fez-me esta capucha,
enquanto eu rezava um terço por ela.

o diabo me leve se há padre-nosso mais bonito, cesário.

* polaroids de figuras extintas (polaroids from the dead, no original) é o título de um livro do escritor canadiano Douglas Coupland (1961-), que usamos aqui com respeito e gratidão.

gi.

4 comentários:

Anónimo disse...

Super interessante. E bonito. Para variar. Curiosamente um amigo falava-me recentemente sobre obituários. E, de repente, o gi escreve nessa linha. Engraçada a coincidência. Fico à espera de mais polaroids! Obrigada. pcp

Ana CC disse...

E de repente o Gi tem coisas (ou flores?) assim.

Anónimo disse...

Belissimo texto.
Que sensibilidade. Obrigado.
fq

Anónimo disse...

o meu muito obrigado.
as contas afectivas são sempre as mais difíceis de fazer; os ajustes de contas do coração, em sentido lato, são os duelos mais dolorosos. e mais libertadores.
um abraço grato,
e flores.

gi.

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