13 março 2010

A esperança de Margarida (cont)

Chegou a casa cedo pela tarde e buzinou para cumprir um ritual estabelecido: Philip, o seu filho querido pequenino de um pai qualquer, francês para aí, se houvesse bancos de esperma era onde tinha recorrido com certeza, mas pronto foi o que surgiu, corria a rir para os seus braços sempre sólidos mas não muito presentes, com a ama nervosa atrás com ar preocupado. Era a Philip que competia todos os dias guardar o carro na garagem pelo caminho do jardim não muito longo mas sempre generoso entre grama e canteiros, ao colo da mãe que o ia enchendo de beijos e de festas. Entre eles sabiam que estavam perto do que mais forte havia na vida de ambos; entre os carrinhos match box de Philip por um lado e os brokers da Bolsa de Valores onde Ruth se mexia por outro. Entraram em casa a rir, com Philip agarrado ao pescoço da mãe e sentaram-se no balcão da cozinha a beberem Coca-Cola e a prepararem hambúrgueres com molhos de cores gritantes sob o olhar reprovador da ama com as mãos atrás das costas. Depois de Philip se ter deitado, Ruth entrou na sala, tirou os sapatos e os brincos e agarrou a alcatifa com os pés. Pôs um disco do Fausto Papetti e sentiu fortemente, em frente das portas de vidro que davam para o jardim, como todos os dias, a enorme solidão que morava no seu peito. Deitou-se na mais fria, longínqua, branca e áspera das camas!

Num dos sábados seguintes foram ambos ao circo conforme prometido, com Philip sem mais mãos para pipocas, latas e balões. Sentaram-se, pouco depois as luzes apagaram e começaram os palhaços, que aos olhos de Ruth eram como desenhos animados; depois os trapezistas e os equilibristas; as meninas loiras com plumas no rabo em cima de elefantes e tudo mais que o circo dá! Quando entrou Ramón, El Grande, “O Maior Mágico do Mundo vindo directamente da América do Sul”, Ruth não queria acreditar no que estava a sentir e o seu coração começou a bater descontrolado! Depois de uns momentos de dúvida; será não será; ficou com a certeza que apesar dos anos não podia deixar de se tratar do soldado Ângelo, número não-sei-quantos da Cabreira, aquele irmão perdido da Dona Domingas que tinha sido o homem mais marcante que tinha passado pelos seus braços, omnipresente no seu dia-a-dia e na sua intimidade.

O olhar de Fellini sobre o mundo era realmente do mais simples que havia, afinal! O ar sólido que mantinha não deixava margem para dúvidas! A alma dele muito para além do corpo que habitava abraçou ternamente o espírito de Ruth quando entrou no palco seguro de que nada durante o espectáculo iria correr mal. Era ele completamente, e apesar de todos aqueles anos, reparou que continuava a deixá-la fora de si, com acessos de suor e sem defesas para olhar em frente. O cheiro, o tom da pele, a maneira como mexia as mãos, regressaram a si no minuto em que o viu, dentro de um smoking sob holofotes, a tirar coelhos do chapéu e a serrar meninas todas brilhantes ao meio. No fim, sem querer e sem saber porquê, viu-se com Philip pela mão a bater com os nós dos dedos e a tremer, à porta do furgão que servia de casa a Ramón ou a Ângelo, tanto fazia. Tinha sido desde sempre o seu homem, para sempre! Quando ele abriu a porta de t-shirt branca o mundo caiu e Ruth viu estrelas, cavalos a correr, bombas atómicas a explodir. Ia dizer alguma coisa, mas só viu o sorriso e os braços dele para cima, onde se perdeu por uns minutos. Afinal era claríssimo para si que não queria mais nada no mundo, apenas aquele calor!

Combinaram então jantar em casa dela essa noite. Foi logo a correr Datsun fora tratar de tudo e com uma inexplicável vontade de dar um ar de solteira a todo o ambiente geral! Pôr o Philip na cama e arranjar a mesa com copos altos, velas, frutas e essas coisas! Pôs também um vestido preto e justo com elastano de modo a que se sentisse apalpada sempre que se mexesse; chegar um frasco de perfume atrás das orelhas, enterrar os dedos no cabelo para soltar a laca e partir à abrir quando a campainha tocasse, e tocou! Correu para a porta enquanto calçava uns sapatos de tacão alto. Ângelo entrou, enorme no seu peito, tirou o casaco, deu-lhe um beijo forte e ela irritou-se com a sua própria insegurança diante aquele sorriso provocador com qualquer coisa de erótico até, dum cheiro que a fazia sentir pequenina e duma voz que não a deixava falar. Era impressionante como estava, quer quisesse quer não, nas mãos daquele homem mágico, artista de circo, de um nível social e cultural indefinido, mas que apenas com a sua presença conseguia fazê-la sentir totalmente mulher, com desejos de ser possuída, controlada, propriedade de! Assustava-a o facto de ser tão claro que por ele abandonaria tudo, e que o que mais queria era esperar tempos a fio o seu regresso à noite de cada dia para uns minutos de amor que de certeza a tornariam na mulher mais feliz do mundo. Momentos que a fariam sentir amada, desejada, protegida, única. Instantes que o seu mundo de escritórios, de reuniões, de compras e de mãe não lhe dava! Por tudo isso foi inevitável que as velas naquela noite ardessem até à última, o jantar ficasse frio na mesa, e Ruth entrasse no seu quarto ao colo de Ângelo aos beijos, com o mundo lá fora e bem longe. É óbvio que com a luz da manhã seguinte era-lhe impossível pensar sequer em partir com ele estrada fora, circo dentro, por isso restou-lhe nos meses seguintes apenas a sensação de ter sido bem amada uma vez mais.

Passados anos a deambular pelo mundo, aqui e ali, Ângelo viu-se aterrar em Charles de Gaulle, finalmente numa temporada muito esperada por ele no Olympia; e logo no aeroporto conforme combinado, esperava-o Jean Paul, um velho amigo de farras que já tinha tido um número de tigres, mas agora contentava-se com um de pombas amestradas porque já tinha aprendido a ganhar dinheiro com mulheres e com a noite. Jean Paul já com a cabeça cheia de esquemas para os dias que se aproximavam, com os óculos escuros e brilhantina, casaco de couro e brinquinho, pôs a mala de Ângelo no banco de trás do seu Nissan 200 SX amarelo, todo quitado, enquanto se riam alto, contentes de se verem e de estarem juntos. Era bom aquele vento depois de sair do ar comprimido do avião!

Mitterrand era o novo presidente e não era Paris que era deles, era o mundo todo! A solidez de Ângelo assentava nas Ruths que ia deixando pelo mundo; na Domingas que estaria eternamente na Cabreira; e nos amigos como Jean Paul que estariam sempre a esperá-lo pelos aeroportos e estações. Gostavam da vida de ambos, acreditavam e contavam completamente consigo próprios e riam-se às gargalhadas enquanto o bólide amarelo galgava passeios e passava por sentidos proibidos em direcção ao pequeno apartamento de Jean, perto da Porte d’Auteil. É sempre muito forte a sensação de estar com amigos às duas da tarde em cuecas, a beber champanhe e a falar de mulheres que vão passando, dos contratos que vão conseguindo e da barriga que vai aparecendo. Há uma linguagem comum nas casas dos homens solteiros, mundo por aí: revistas aos montes na casa de banho, meias a secar no micro ondas e embalagens abertas de comida chinesa estragada no frigorífico, por isso nada parecia estranho a Ângelo, apenas a porcaria do telefone que não parava de tocar. Tomaram banho, estilaram-se e saíram para jantar.

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