Todos os dias levantava-se e sentia um prazer ingénuo, quase infantil, em ir de t-shirt branca com as mãos nos bolsos, ao Café Central do Aníbal ler o jornal e ouvir os velhos dizer que o Salazar é que era bom e que deviam pôr uma bomba em tudo o que não funcionasse, como a Caixa de Previdência ou o Notário! Rapidamente se tornou no “aí Jesus” das solteiras todas, claro! Um dia chegou ao café como sempre por volta das dez, dez e qualquer coisa, pegou no jornal e ia sentar-se quando sentiu uma mão forte a bater-lhe no ombro.
Torcato Pereira mantinha-se o cromo de serviço na Cabreira, o seu amigo com quem tinha subido aos muros, com quem se ria do Abade e com quem enganava pelas noites a irmã para irem correr todos os bares próximos possíveis de Simca enquanto era novo e ambos bêbados, claro! Torcato tinha-se conseguido manter exactamente o mesmo depois daqueles anos confusos na vida dos dois: sempre grande e corado a rir e com as mangas arregaçadas, a camisa aberta até ao umbigo e disponível para beber copos onde fosse e com quem fosse. Tinha-se tornado agente imobiliário naquela terra que não parava de crescer e toda a Cabreira tinha-se habituado a falar-lhe sempre que alguém queria comprar ou vender alguma coisa. Tinha ganho muito dinheiro com os lotes da quinta da Condessa e achava que os sobrinhos dela eram uns selvagens. Conhecia toda a gente e ria-se à grande facilmente.
Não pediram contas um ao outro quando se encontraram, apenas trocaram um olhar terno que apenas o tempo explica, no meio de palavrões, janelas fechadas, madeiras de mesas e de bancos sempre com oleados de morangos e melancias com quadradinhos, calendários de mulheres nuas a venderem pneus pelas paredes e pelas portas; tudo entre gritos, abraços e gargalhadas! Aquele palerma tinha voltado! Torcato tinha um Mitsubishi Colt já fora de moda, mas que ele achava que funcionava imenso com as pequenas, era estiloso, dizia! Mas na sua vida não tinha pequenas nenhumas, apenas uma namorada persistente: a Ilda Carrelhas que levava tudo à sua frente com berros e palavrões e que era dona do primeiríssimo supermercado da Cabreira. Fazia um esforço daqui à China para ir às terças a casa do Abade Afonso, que era o que a tornava respeitável como mulher tardiamente solteira e o seu contributo para o lanche resumia-se a passar a mão pela prateleira das bolachas e levar um pacote de Marias ou de Água e Sal ou o que tivesse mais por ali, o que fosse! Irritava-se sempre no momento em que se tinha de se arranjar, vestir coisas que lhe caiam mal com flores ou folhos e sapatos apertados que lhe deviam dar o ar que era necessário naquelas terças tormentosas em que o Torcato a levava, a zelar pela dignidade de todos, a casa do Abade para aturar aquele mulherame cada semana. Mas Ilda tinha sempre muito presente no seu peito que a grandeza e o respeito que lhe eram devidos se devia a outros mundos e a outras entidades.
Mas era certo que chegada lá via-se no meio das amigas que sempre conhecera desde que nasceu com sangues e idades confusas e eram com quem contava no fundo. Sentia-se bem e todas gostavam daquela querida que tinha uma atitude de mulher divorciada sem o ser, porque não tinha vergonha de se deixar amar, mesmo por um atolambado que todos também adoravam como o Torcato. Respeitava o calote de todas, fosse porque precisassem ou porque deixavam andar. Era a única entre as confrades das terças que não tinha vergonha de gritar que lhe doíam os calos e que estava farta da vida, porque sabia que todas a compreendiam e se sentiam por perto, mas não diziam. Afinal a querida Ilda era apenas dona do supermercado, por isso identificavam-se, mas não se acusavam!
A propósito, A Esperança da Margarida ou Margareth’s Hope é um chá de sabor delicado, muito caro e famoso mundo dentro e também atractivo, dizem os rótulos para quem percebe; de folha verde acastanhada a que se juntam outras folhas quaisquer colhidas no princípio do Verão. É feito na Primavera entre Abril e Maio, por isso. Foi sempre de longe o chá favorito do Abade Afonso Bento, que esperava pelas terças-feiras em que todas se matavam para o conseguirem nas mercearias chiques de Lisboa ou do Porto, menos a Ilda, claro, que achava que os pacotes coloridos que tinha no seu super chegavam, sobravam e recomendavam-se.
Fim
(para a semana são apresentadas fotografias que, à semelhança deste conto, fazem também parte do "Splendid Garage")
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