Volto de uns dias fora de Lisboa, passados numa Vila onde a maioria das pessoas se conhece pelo nome, pelo que facilmente se imagina a dimensão e o número de pessoas do local. Gostava de partilhar dois pensamentos sobre o tempo que lá passei.
Pensamento #1
Acabo de almoçar e vou ao café, três portas ao lado. 'Churrasqueira Xico: comida take-away', anuncia uma faixa em letras grandes e orgulhosas. Sentados na esplanada estão dois senhores de alguma idade a olharem atentamente, quais falcões em busca da presa, para uma estrada deserta.
Entro e sou atendido pelo homem, atrevo-me até a dizer a lenda, que dá o nome ao estabelecimento. O Xico apresenta-se sorridente, com uma t-shirt que realça (e deixa um pouco a descoberto) uma barriga que chega a qualquer lado com alguns segundos de avanço. A testa está ligeiramente lustrosa e os cabelos de lado molhados. Enquanto os mecânicos comprovam, com as manchas de óleo, que estiveram a trabalhar num carro, os donos das churrasqueiras apresentam o suor como prova do calor das frituras.
Depois da conversa 'então, tudo bem?' inicial, faço o meu pedido. Era um café cheio e um copo d'água, se faz favor. Agora vai ter de esperar um bocadinho, que está na hora do meu, responde-me o Xico, enquanto se senta. Bebe o seu café, fuma o seu cigarro, conversa com o companheiro de mesa sobre cheiros. O tema pareceu-me apelativo, mas infelizmente não consegui ouvir o conteúdo da discussão.
Passados dez minutos, depois de ter bebido, fumado e espreguiçado, dirige-se calmamente para dentro. Põe o chapéu de cozinheiro com muito cuidado, fazendo lembrar os preparativos dos cirurgiões antes de entrarem no bloco operatório. Depois dessa cerimónia, lá atende o meu pedido.
Isto sim!, é o verdadeiro café (no sentido de local, não da bebida). Não são cá esses estabelecimentos que a maioria das pessoas costuma frequentar, onde são servidas logo que se sentam.
Acabei por lá voltar antes de me ir embora, mas desta vez depois de uma análise cuidada das horas. Não queria interromper nenhum ritual pós-jantar ou a novela da noite.
Pensamento #2
Durante estes dias aproveitei para ler. Adorava dizer que devorei um enorme carregamento de livros, mas o pouco tempo em que lá estive deu apenas para um. "Aprender a rezar na Era da Técnica", do Gonçalo M. Tavares, que recomendo vivamente.
Como disse na introdução, a Vila é muito pequena, com pouca gente, por isso presume-se que também com muito silêncio. Mas não é isso que se verifica. A vista da casa onde fiquei é aberta e desafogada sobre o rio, mas tem algo deste género que perturba o equilíbrio. E o barulho que faz é tão agressivo / incomodativo como a imagem.
É por isto que nestes dois dias em que lá estive faria muito mais sentido se o livro se chamasse "Aprender o silêncio na Era da Técnica".
SdB (III)
5 comentários:
Olá SdB(III),
Deixe-me avançar no tempo socorrendo-me de Foster a quem acho imensa piada (um bocadinho louco, é verdade, mas fica-lhe bem)
http://www.youtube.com/watch?v=ovly1dQGKH4&feature=player_embedded
diz-se no clip 'one day all cities will be built like this'.
Acho q é capaz de ser verdade.
Adorei o seu primeiro pensamento! Quase fotográfico. Pareceu-me "ver" a barriga do dono do café e a sua testa lustrosa. Então o ter pedido ao cliente para esperar porque era a hora do seu cafézinho... achei o máximo!!! Giríssimo. pcp
C,
Caramba que tem razão: a mim faz-me lembrar a brasa do Eça.
ML
Os americanos chamam-lhe coffee brake, e êsse brake é sagrado.
SdB (I)
marialemos,
Espero ansiosamente por essa cidade carbon free. Confesso que tenho as minhas dúvidas, mas espero que sejam desfeitas eventualmente.
pcp e ML,
Obrigado pelos comentários, espero que nos voltemos a ver daqui a quinze dias.
SdB(I),
Ainda bem então que o senhor Xico não teve o seu coffee brake perturbado pela minha chegada, não me apetece nada estragar momentos sagrados.
Enviar um comentário