20 dezembro 2010

Vai um gin do Peter’s ?

Vem a propósito do Natal o óptimo filme francês – O CONCERTO(1) – com muito Tchaikovsky, músicos eslavos sem amarras, q.b. excêntricos e, sobretudo, maximamente livres. Aliás, pagaram com a vida o preço da liberdade de consciência, na Rússia implacavelmente comunista e anti-semita de Brejnev.

A paixão pela música, que levara o maestro do Bolshoi a proteger uma genial violinista judia, valeu-lhe a obstrução de um concerto promissor e já em curso, a destituição imediata do cargo, a dissolução da orquestra e um emprego humilhante no serviço de limpezas do Bolshoi!

Mas a sorte que coubera à solista judia tinha sido bem mais radical: deportada para a Sibéria com o marido, foram consumidos, como fósforos, pelo frio e pelo desgosto, simulando com as mãos a sua actuação magistral no concerto que ficara a meio. «Louca» fora a alcunha recebida no Gulag. Pois ninguém mais ouvia aquele sonho musical a que ela e o marido se tinham devotado, extraindo da sua paixão artística forças para sobreviver. Só que no inferno branco das estepes russas, apenas os flocos de gelo e as tempestades de neve tinham som. E venceu o silêncio...

Toda a narrativa flúi com leveza e imenso humor, parodiando tudo o que era, insiste em ser mas, simplesmente, já não é, logo a começar pelo comunismo ou o oportunismo dos do Partido, que se instalam nos postos que outros merecem, alavancados por uma pseudo-fidelidade ideológica.

Nas encruzilhadas da vida, tudo mudara, e adivinhava-se a hora de voltar a haver tempo de antena para o concerto interrompido pela KGB. Ironicamente, era no mesmíssimo KGB em quem podiam confiar a possibilidade de realização do sonho de outros tempos, beneficiando do seu empreendedorismo e do francês à LaFontaine… que só mesmo o escritor de há 4 séculos reconheceria. Aquele implacável agente dos serviços secretos era, afinal, o primeiro favorecido pela política anti-segregacionista do bom maestro, castigado por se ter recusado a excluir os talentosos elementos judeus do Bolshoi dos anos 70.

O KGB e os músicos do antigo Bolshoi do mesmo lado da barricada

Assistimos, então, ao despertar da antiga orquestra – qual Bela Adormecida– reacordando em cada músico o gosto que sempre lhes ficara pela arte e, mais ainda, pela memória da violinista ostracizada, ou a legítima desforra de concluir o concerto inacabado. Desta vez, era na Cidade das Luzes que o sonho se poderia concretizar, apesar das incontáveis peripécias que quase deitavam tudo a perder, até ao último segundo (com algumas cenas inverosímeis mas cómicas, como a dos ciganos a intimidarem a polícia russa, no aeroporto de Moscovo – obviamente, pura fantasia). A história oferecia-lhes uma nova oportunidade de ser feita justiça, talvez em condições ainda mais gloriosas, guindando-os a um palco maximamente cosmopolita e mediático.

Trailer: http://www.europacorp.com/dossiers/leconcert/

O grande realizador italiano, Roberto Rosselini, dizia que a humanidade se dividia em dois tipos de pessoas: as que têm esperança e as que não têm! De facto, esta película confirma como o tempo pode jogar sempre a favor de quem acredita. Por isso, vale a pena espreitar e explorar janelas de oportunidade, voltar à luta, reconciliando-nos com tudo e com todos, em nome de valores mais altos.

Os talentos mais imprevistos e multiétnicos

Ainda a propósito do Natal, no Dia D da tão desejada actuação em Paris, há um crescendo de gaffes e de momentos burlescos, que são bem o retrato da amálgama de ingredientes que compõem a trama da vida, com possibilidade de happy-end. Num momento especialmente expressivo, o indefectível KGB (que estava de manager) levanta os olhos ao céu, em misto de prece e de desafio: Se existes, oh Deus, faz um milagre. Ele bem precisava, porque as primeiras notas da orquestra faziam temer o pior. Sobretudo é gira a volta dos acontecimentos, a mostrar como a realidade é tão surpreendente que até o impossível, por vezes, acontece. O próprio usurpador do lugar do Maestro estava, naquela noite histórica, nas masmorras do Châtelet a testemunhar (contra vontade) o êxito rotundo do Concerto. Um concerto que acabaria por atingir mais do que uma harmonia musical suprema, condensando harmoniosamente a história adversa de inúmeras vidas, pois reunira muitos homens de Boa Vontade. Tornara-os assim capazes de recuperar o sentido de quase tudo, até da dor mais injusta e cruel. De redimir os reveses do passado. De reabrir o futuro à esperança.

E que outra coisa é o presépio?



O mítico concerto de Tchaikovsky para Violino em Ré Maior, Op.35 (1878)

Que melhor posso desejar a cada um, nesta quadra, do que a noite de estrelas de há dois mil anos, para nos iluminar a alma de Esperança e caminharmos a favor do tempo, sempre que confiamos? Também nas palhinhas de Belém, Alguém espera por nós conhecendo-nos por dentro, como dizia Vinicius de Moraes a propósito da amizade: «Os Amigos não se fazem, reconhecem-se».

BOAS-FESTAS,

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Segunda)

_____________

(1) FICHA TÉCNICA

Título original: Le concert

Realizador: Radu Mihaileanu (judeu romeno, radicado em França)

Elenco: Mélanie Laurent, Aleksei Guskov, Dmitri Nazarov Valeriy Barinov François Berléand,

Argumento: Radu Mihaileanu e Matthew Robbins

Línguas: Francês | Russo

Ano: 2009 Pais: França Duração: 120 min

Prémios – Melhor Banda Sonora nos Césares de 2010.

Locais de filmagem: Moscovo, Paris (Hotel Le Bristol, Théâtre du Châtelet) e Bucareste.

Banda sonora: de Armand Amar, com uma ária composta pelo realizador: “Le Trou Normand”, o concerto para Violino de Tchaikovsky, além de peças de Mozart e Mahler.



3 comentários:

marialemos disse...

Maria Zarco!!!!!!
Ah:)

Anónimo disse...

Nem me vou alongar sobre o texto. O que escreves é sempre um "plus". Pelo menos para mim. Vou só comentar a frase do Vinicius. Alguém que já partiu há uns anos dizia exactamente o mesmo e faço o seu quote de seguida - e de certeza absoluta que não sabia da frase do Vinicius -: "As almas reconhecem-se". É engraçado, ou melhor, fascinante, constatar que quem PENSA, seja brasileiro, português ou jamaicano, acaba por chegar sempre às mesmas conclusões. A cultura, o sexo, a religião, o estrato social, acaba por ser um mero invólucro no que toca ao mais profundo. Thanks a lot. pcp

Anónimo disse...

Obrigadíssima à Maria Lemos e à pcp pelos vossos comentários tão encorajadores. Em relação à frase de Vinicius, lembro-me bem de quem dizia uma frase semelhante, talvez com mais força ainda, imensa profundidade e universalidade. Penso que a ouvi dita pelo próprio, em Londres... Bjs e BOM NATAL a ambas, MZ

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