ASSALTO AO PODER N’«A MORTE DE ESTALINE» E PIANISTA HEROÍCA
A avidez descontrolada por açambarcar o comando percorre o núcleo duro de Estaline (1878-1953), em graus diferentes, vigiando-se mutuamente, a começar pelo próprio déspota, que todas as semanas assinava tenebrosas listas com o nome da nova fornada de vítimas. Todos, sem excepção, constituem alvos em potência, pois a voragem sanguinária do bolchevismo permanece insaciável, desde a sua instauração, em 1917. Claro que o fazedor das listas – o supremo manipulador Beria – teve quota-parte de responsabilidade na escolha dos caídos-em-desgraça. Mas, pontificando o grande líder com mão de ferro e coração de pedra, nem Beria se atrevia a tentar ludibriá-lo seriamente, à parte de gente insignificante para o ditador.
É este o contexto histórico da trama de «A MORTE DE ESTALINE»(1) , que o realizador escocês e co-argumentista Armando Iannucci (filho de italiano) concebeu como comédia negra. Recheada de picardias à Monty Python, o argumento concentra-se no descarado assalto ao Kremlin, mal o tirano se começa a apagar. Flui como um jogo de regra única e sumamente simples: vale tudo, desde logo, matar ou torturar sem freio. É impressionante, por exemplo, a eliminação de todo o staff de Estaline, mal este fecha os olhos, embora a maioria fosse gente de enorme préstimo e desarmada. Mas tinham visto demais, como bem sabiam os novos candidatos ao poder, sem ilusões sobre o calibre de mal consignado naquele regime destituído de limites!
Embora citassem obsessivamente Estaline, não tinham dúvidas sobre a sua perversidade. Entendiam como o preço para alcançar os píncaros. Estranhamente, mostravam-se dispostos a pagá-lo, sem pudor nem rebates de consciência. Replicavam, assim, a faceta mais sinistra do terrífico defunto. No fundo, tudo se cingia a orgulho e vaidade, seguindo a esparrela clássica avisada no Antigo Testamento.
A habilidade do realizador está na caracterização da atmosfera empestada pelo medo, mas abstendo-se da violência explícita. Apesar disso, no patchwork bem montado de flashes sobre a actuação da temível KGB (com outra sigla, à época), percebemos quanto o homicídio imediato chega a ser castigo menor, por comparação com os graus sádicos de tortura física e psicológica. Semelhantes ou piores do que a Gestapo, que não era suposto igualarem. Iannuci consegue a proeza de não contaminar o lado de cá do ecrã.
Nas exéquias fúnebres organizadas por Krushchev, a contra-gosto, jogam-se as últimas cartadas dos aspirantes ao lugar de Estaline, pelo que o burlesco coabita com os assassinatos em massa. |
Sem ceder à tentação mais comum, que abusa do suspense e das cenas sanguinárias, o escocês prefere apostar no discernimento do público, oferecendo um distanciamento tácito através de um excelente sentido de humor, no formato possível: corrosivo e cru. Nas suas palavras: «One's instinct is to laugh because the alternative is to cry.» Seria irrealista suavizar o nível de humor, sob pena de apoucar a denúncia mordaz aos totalitarismos, que desaguam no endeusamento do chefe e na abolição da verdade. A verdade torna-se no principal alvo a abater, logo que urge descartar os resquícios de autoridade objectiva e distinta do líder. Descartada a verdade, seguem-se os seres humanos, já sem valor próprio, reduzidos a meros joguetes do regime. O processo repete-se ad nauseam, na tentativa de converter a vida numa extensão das chefias. Para esta clonagem acrobática, embarca-se num esforço insano que, rapidamente, atinge uma artificialidade grotesca, apenas sustentável pela força. Desmedida e galopantemente embrutecida, até à derrocada do ditador e seus sequazes, em geral, por implosão. Assim se chega à receita universal das tiranias, cumprindo à letra as etapas descritas por George Orwell em «1984», profeticamente publicado em 1949, em Londres.
O próprio déspota não deixou dúvidas sobre as intenções que o animavam, qual serial killer, sumamente desinteressado dos demais seres humanos, família incluída. |
Naquele início de Março de 1953, o filme abre com um magnífico concerto da pianista Maria Yudina, emitido pela rádio. Encantado, Estaline manda vir uma gravação que, por azar, não tinha sido feita. Como imperava o clima de «roleta russa», assiste-se ao pânico de quem recebe a ordem contagiando, de seguida, toda a sala de concertos – do palco à plateia – numa paródia quase mórbida, reveladora do terror que o alegado «pai» da nação inspirava.
Na trama, o bilhete corajoso que a pianista envia ao ditador confere um cunho épico ao argumento, precipitando o fim de Estaline, consumado a 5 de Março de 1953. Porém, simplifica a realidade, mais grandiosa e heroica do que esta boa ficção. É caso para dizer que só a realidade faz jus à escala russa – tendencialmente agigantada, no pior e no melhor.
Os factos: num serão de 1944 (a uma década da morte do czar vermelho), a pianista russa Maria Yudina tocou na rádio o concerto para piano nº 23 de Mozart. Mal a ouviu, o líder pediu a gravação do concerto. Como não a tinham, arranjaram maneira de o reproduzir em estúdio e gravar clandestinamente. Nessa madrugada, tal era o pavor entre os maestros tirados da cama à força, que só o terceiro conseguiu dirigir a orquestra em condições. Por junto, apenas a pianista – também acordada a altas horas da noite – manteve uma serenidade olímpica. O disco pôde ser entregue de manhã, sem que Estaline descobrisse diferenças em relação ao que ouvira. De tal modo o apreciou, que na hora derradeira era o disco que enchia de música o seu quarto.
A pianista preferida do lider nascido na Geórgia (como Beria) foi poupada, apesar de criticar Estaline. |
Passados uns dias desse penúltimo ano de guerra, Yudina foi surpreendida com um cheque chorudo de 20 mil rublos, a mando do ditador. Sem hesitar, enviou-lhe um cartão destemido, que todos pensaram ser um passaporte directo para a Sibéria: «Agradeço a sua ajuda. Rezo por si, dia e noite, e peço ao Senhor para lhe perdoar os grandes pecados que cometeu contra o povo e o país. O Senhor é misericordioso e perdoar-lhe-á. Doei o dinheiro à Igreja que costumo frequentar.» No seu estilo desassombrado, a pianista preferida do tirano encarava a música como expressão de fé e permitia-se interromper as récitas para declamar poesia crítica do regime ou ler passagens de autores proscritos como Boris Pasternak. Shostakovitch afirmava que «Yudina tocava como se estivesse a pregar um sermão.»
No filme, esse episódio inaugural começa por arrasar alguns dos mitos mais disseminados, desde o século XVIII. Aliás, em 2017 /18, vimo-lo ressurgir no formato de perseguição puritana a derrubar VIPs de Hollywood, com o selo inatacável do «politicamente correcto»:
- Primeiro, é chato mas não há incompatibilidade entre barbárie e requinte artístico, o que desfaz a crença de que a arte, só por si, chega para incensar e “santificar” a humanidade. O nazismo já o tinha clarificado. Ou seja, convém não endeusar artistas, nem cientistas nem outros intelectuais (nem ninguém), pois há muitos génios com comportamentos inaceitáveis. Estaline prova que se pode ser brutal mas não-acéfalo, nem desprovido de sentido artístico, como daria jeito para o desclassificar por completo. A complicar: escolheu morrer ao som de um concerto maravilhoso de Mozart, interpretado por Yudina! Mais chiquismo era difícil…
- Segundo, a qualidade de uma obra não se mede pela qualidade humana do artista, cuja biografia interessa zero quando se avalia Arte, pura e dura.
- Terceiro, a qualidade intelectual não é garantia de carácter, nem grandeza humana, nem sequer clarividência e sabedoria de vida. As elites bolchevique e nazi demonstraram-no à saciedade.
- Quarto, pode não implicar morte certa defender valores em contra-corrente, mesmo sob o pior despotismo. Por vezes, esses heroicos denunciadores batem em longevidade os mais astutos vira-casacas. O filme desfia um rol impressionante de nomes, que soçobraram décadas antes de Yudina (1970!). Podíamos acrescentar Andrei e Elena Sakharov, Soljenitsin, etc. Nem o acesso directo à KGB valeu aos super-sobreviventes.
A rivalidade entre o General herói da Segunda Guerra e a KGB lembra as guerras de alecrim e manjerona, embora se diferencie e muito no patamar de violência. |
- Quinto, a verdade acaba por ser a arma mais fiável e resiliente, suplantando a precariedade do relativismo imposto pelas modas e slogans do dia que, mal vira a maré, chega a afogar os mais fervorosos adeptos.
- Sexto, infelizmente as revoluções costumam fazer ricochete sobre os próprios revolucionários, acabando a devorar uns quantos. A relação é directa, sem atenuantes em qualquer latitude, revelando-se tanto mais mortíferas, quanto mais “puras” e radicais.
Talvez o menos conseguido na obra de Iannucci sejam as pronúncias anasaladas norte-americanas e outros tiques de descontração excessivamente ocidental (à Monty Python), sem equivalente na Rússia de nenhuma época. Basta ouvir Tchaikowski para perceber este erro absurdo.
Não é certo que o timing de lançamento desta sátira política seja irrelevante, co-produzido por três países de peso: as duas potências nucleares europeias e o que alberga a sede da Comissão Europeia. Vivendo-se em ciclo de desencontro entre a Europa ocidental e a Rússia, aquele Kremlin de 1953 ajuda a reevocar a tradição discricionária das actuais cúpulas, não por acaso, sob a batuta de um antigo dirigente da KGB. Indiferente às ideologias, perpetua-se há séculos o ambiente despótico herdado dos primeiros Romanov e da tradição tártara. Curiosamente, noutro filme de 1944 ressalta igual modalidade de poder absoluto, gerido impiedosamente. Trata-se da obra-prima de Serguei Eisenstein – «Ivan o Terrível» (1944) – em resposta a uma encomenda de Estaline, que demorou a perceber (cego pela vaidade) que só replicava os defeitos do mítico Czar, sem partilhar a menor das virtudes.
É significativo que o filme tenha sido proibido, na Rússia de Putin.
Este diagnóstico empolgante à maior obsessão humana – a sede de poder, neste caso, especialmente sedutor por ser absoluto – abate em cascatas quaisquer veleidades de haver espaço para gestos dignos, intenções puras ou algum assomo de humanidade.
São indisfarçáveis os fácies cínicos do Politburo, apenas a precisar de garantir que abrira a época de caça… ao poder. Cada um por si e todos contra todos. |
Tudo se reduz a vilanias e mesquinhezas em cadeia, à base de habilidades e chicanas obscuras, que favorecem o mais feroz ou, quando muito, o bafejado pela sorte. Para o povo, o post-mortem de 1953 terá resultado num raro momento de distensão, uma vez que os candidatos procuravam um mínimo de popularidade.
Bem diz Iannucci: rimos para não chorar, nesta descida aos infernos da malícia humana, quando se deixa enfeitiçar pelo orgulho e tropeça na miragem megalómana mais esparvoada, voraz e auto-fágica. Ao fim e ao cabo, humilhante como expõe lucidamente «A MORTE DE ESTALINE».
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
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(1) FICHA TÉCNICA:
Título original: «THE DEATH OF STALIN»
Título traduzido em Portugal: «A MORTE DE ESTALINE»
Realização: Armando Iannucci
Argumento: Armando Iannuci, David Schneider, Ian Martin e Peter Fellows.
Baseado na obra homónima de Fabien Nury e Thierry Robin: «La mort de Staline».
Produtores: Yann Zenou, Laurent Zeitoun, Nicolas Duval Adassovsky e Kevin Loader.
Banda Sonora: Chris Willis
Duração: 107 min.
Ano: 2017
País: França, Reino Unido e Bélgica
Elenco:
- Simon Russell Beale (Beria)
- Steve Buscemi (Nikita Krushchev)
- Olga Kurylengo (a pianista)
- Jeffrey Tambor (Malenkov)
- Andrea Riseborough (filha de Estaline)
- Jason Isaacs (Gen.Zhukov)
- Paddy Considine (Andreyev)
- Michael Palin (Molotov), etc.
Local das filmagens: Londres e estúdios/ateliers de pintura – 2 na Polónia e 1 na Grécia.
Prémios: Melhor comédia pelo Empire Award, Melhor Actor Secundário, 4 galardões do British Independent Film Award (Melhor Actor Secundário, Melhor elenco, Melhor caracterização, etc.)
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