24 fevereiro 2010

Vai um gin do Peter’s ?

A dica de hoje – pensando neste Inverno chuvoso e frio, que faz apetecer assistir à tempestade, lá fora, protegidos por uma janela com boa vista – é para uma tarde ou um serão de boa música, em casa (nossa ou de amigos, até porque resulta num presente bem apetecível), ao som de Chopin, tocado pelo talentosíssimo Maurizio Pollini ou pela Maria João Pires, que também tem uma interpretação magistral dos Nocturnos (*)!

Lembrei-me da sugestão, porque este Sábado Pollini tinha agendado um concerto na Gulbenkian(**), que foi cancelado por problemas de saúde do pianista... Tive assim de me desforrar nos CDs, em casa... E é isso mesmo que vos sugiro, porque um compositor que plasmou a sua alma na música que escreveu, é imperdível, creio: «I tell my piano the things I used to tell you» (sic, Chopin)

Antes de abrir mais o apetite para o músico do séc. XIX, avanço uma pequena nota biográfica sobre Maurizio Pollini: nasceu em Milão, em plena II Guerra Mundial – Janeiro de 1942 – numa Itália muito massacrada pelos combates. Oriundo de uma família de artistas – o pai arquitecto, a mãe pianista e cantora, o tio materno escultor (Fausto Melloti) – teve uma carreira fulgurante, recheada de prémios internacionais, com um repertório vastíssimo, que se estende de Bach aos contemporâneos. Não por acaso, o primeiro prémio foi ganho no Concurso Internacional de Chopin, em Varsóvia, nos tempos arrefecidos da Guerra Fria – 1960. Aliás, há quem o considere o melhor intérprete deste compositor, concorrendo com Rubinstein e outros nomes míticos do piano.

Frédéric François Chopin (1810-1849) nasceu perto de Varsóvia, mas deve o seu nome tão francófono ao pai, um francês que se radicou na Polónia como professor de liceu e tutor de famílias aristocratas, vindo a casar-se com uma polaca. Menino prodígio, aos 7 anos, Frédéric compôs as primeiras Polonaises (danças polacas), além de já actuar em concertos, onde era aclamadíssimo. Pelos 20 anos, mudou-se para Paris, tornando-se insustentável o regresso à sua terra natal, que acabava de ser invadida pela Rússia. Em Paris, integrou logo o grupo de artistas mais fervilhante da Cidade das Luzes, mentores da revolução romântica: Liszt, Berlioz, Balzac, Bellini, Victor Hugo, Schumann… Através de Liszt, tornou-se íntimo da célebre escritora, que assinava pelo pseudónimo literário, George Sand (Mme Dudevant), começando uma relação tumultuosa, marcada por fases de indigência, onde até um teclado lhe faltou. Aos 39 anos, corroído pela tuberculose, apagou-se o pianista mais venerado pelos parisienses. Ainda hoje, a sepultura é local de peregrinação, sempre coberta de flores frescas, no célebre Cemitério de Père-Lachaise, onde repousam outras figuras lendárias, como Oscar Wilde ou Jim Morrison (na sua campa, os parisienses colocam cigarros e cervejas!), Victor Hugo, Gustave Eiffel, Mme.Curie, Edith Piaf...

Honrando os seus pergaminhos, os franceses costumam ser generosos com a memória dos artistas, mais ainda se forem românticos, nostálgicos e lúcidos, clássicos mas ousados, sofisticados e maximamente universalistas. Chopin foi tudo isso! A sua música respira poesia e charme, profundidade e emoção. Nos Nocturnos como que se excede e inflama o piano, qual «Fogo que arde sem se ver», faz as teclas chorar lágrimas que nos chegam à alma como cristais de água luminosos. A declaração do compositor a um pianista sobre a desejável entrega à música é o seu auto-retrato: «Põe toda a tua alma na peça, toca-a como a sentes!»

Conta-se que o pianista italiano, Orazio Frugoni, sugeriu a uma das suas alunas, com dificuldade em executar um dos Nocturnos, que passasse mais tempo, à noite, junto à catedral de Siena: «Sim, é muito romântico. E nós impregnamo-nos destas percepções, que alimentam a nossa criatividade; e se nada acontecer, é porque não somos artistas!» Só não ficou para a história se a comunicação da arte por osmose funcionou com a aluna...

Os 21 Nocturnos, compostos entre 1827 e 1846, são quase todos dedicados a senhoras, sendo umas mais lembradas que outras… De facto, Chopin tinha uma personalidade cativante e a sua natural timidez parecia conferir-lhe um charme especial, que lhe granjeou enorme sucesso entre o público feminino e a correspondente inveja no masculino… isto contado por cronistas da época. Aliás, o seu monumento no Parque Monceau (Paris) mostra uma admiradora em êxtase devocional, enquanto o pianista vai dedilhando ao piano.

Apesar de aclamado em vida (em 1848, deslocou-se a Londres, onde foi aplaudidíssimo pela Rainha Vitória e toda a corte britânica), Chopin era de uma humildade invulgar, como o atestam os seus desabafos, alguns de uma ironia deliciosa: «Não percebo como é os alemães estão tão fascinados comigo – por mim, fico fascinado com eles por encontrarem razões para se fascinarem!» ou, na mesma linha «Sei que me falta tanto para atingir a perfeição». Talvez não se imagine que nas suas obras, verdadeiras filigranas musicais, o compositor apreciasse sobretudo a «Simplicidade (que) é o objectivo final. Depois de se tocarem quantidades imensas de notas, é a simplicidade que emerge como o maior dom da arte.» (sic, Chopin)

Testemunhos de artistas do seu tempo:
- Eugène Delacroix: «Chopin (…) é o maior artista que já conheci. (…) Às vezes, acontece entrar-me pela janela, que dá para o jardim, a música de Chopin, a trabalhar mesmo ao lado, misturando-se com o cheiro das rosas e o canto do rouxinol.»
- George Sand: «O seu trabalho criativo era espontâneo, puro dom! Brotava sem esforço nem pré-aviso… Mas depois vinha um trabalho árduo, como nunca antes tinha visto. Multiplicavam-se as tentativas (…) Fechava-se no quarto, durante dias, percorrendo-o de rés-a-lés, partindo as canetas, repetindo e modificando um pequeno trecho, centenas de vezes.»
- Franz Liszt: «Nos seus poéticos Nocturnos, Chopin cantou não apenas as harmonias, que são fonte de inefável prazer, como também a tumultuosa agitação que costumam provocar»

Bom Inverno, desejando que a chuva lá fora resulte inspiradora e… se não sintonizarem logo com os Nocturnos, experimentem passar boa parte da noite a ver os Jerónimos…

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

__________________

(*) Para ser mais concreta, indico um dos CD possíveis, da dupla fantástica, Chopin e Pollini, com os imperdíveis NOCTURNOS. Também há a interpretação óptima da Maria João Pires, gravada pela Deutsche Gramophon:
http://www2.deutschegrammophon.com/cat/result?SearchString=Maria+Joao+Pires
Chopin: Nocturnes: Frederic Chopin (Composer),

4 comentários:

Anónimo disse...

Para seres grande, põe-te todo em tudo o que fazes ... se não é bem assim, é parecido. Dizia-o Fernando Pessoa. Também o Rilke, ao aconselhar um aspirante a poeta, dizia exactamente o mesmo no que toca à literatura. Chopin, pelos vistos, à música. É assim... Por isso são grandes. Nas suas respectivas artes. Giro era que o aplicássemos à "arte de viver". Bjs, e obrigada por este momento de cultura. pcp

Anónimo disse...

Cara Maria Zarco,

Com efeito você não brinca em serviço hein?

Gostei imenso do drik desta semana. Parabéns!

E vá-se habituando porque não se livrará dos tão temidos comentários ih!ih! - é que é impossível resistir a dar-lhe este eco. Tb não precisa de se dar ao trab de responder, ok? :)))

Maria BCC

Anónimo disse...

Que luxo ter estes apports tão fantásticos! Sabem àqueles cubinhos de gelo, de luxo, que tornam deliciosos e únicos os gin tónicos do Peter's! Também esses são feitos com "arte de viver", que, no fundo, pode contagiar toda a nossa vida, para ficar muito mais apetecível!
MªZ.

Anónimo disse...

Maria Zarco,


… deleitada a “ler” o meu gin! e embalada por Chopin … satisfiz inteiramente os meus sentidos!!… plena, essa minha happy hour no Peter`s!!! Que interessante o seu artigo, muitos factos históricos e biográficos, repleto de curiosidades; aprendi imenso, de forma tão leve e concisa! Gostei mesmo muito!

Lá fora a escuridão; o bater agreste da natureza revoltada teimava arrasar mundo fora…eu, uma privilegiada nessa invernosa noite de sexta… obrigada!!

Um Bj,

Catarina L V

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