19 fevereiro 2010

o amor como bela arte

atrás de si, os habituais clientes deixavam de tudo. peúgas sujas, pares de meias por estrear, um ou outro casaco de cabedal, garrafas de mau whisky, todo o género de roupa interior, cintos sem fivela, fivelas sem o respectivo cinto, um arco-íris de objectos sem préstimo evidente, cigarros meio-fumados, cigarros por fumar, cigarros sugados como se disso dependesse amanhã nascer o sol, livros baratos, luxuosas colecções de artigos científicos, exemplares de toda a imprensa portuguesa e de alguma estrangeira, uma dentadura, molhos de chaves, uma canadiana e duas bengalas, sobretudos cossados nos cotovelos, terços e um ou outro missal. 

com o que ela nunca tinha dado era com um coração em carne viva, deixado para trás, sobre o cobertor encardido. sim, ela suspeitara desde o mais tenro início: ele era aquele de quem todas as colegas de ofício falavam baixinho, um serial killer muito especial: o homem que semeava corações.

quando, anos depois, ela me contou esta história, achei-a (como sempre a tinha achado, confesso) levemente louca. eu, cínico glacial desde o berço, não poderia acreditar nisso. seria ir contra tudo aquilo para que, intelligent design ou simples mão-de-ferro em menino, me haviam programado para ser: um homem regrado, espartano, uma espécie de quintessência do bom-senso, com braços e pernas. 

mas desta vez algo me dizia para acreditar, mesmo que eu não soubesse exactamente de onde vinha esse sopro de fé, essa pulsão improvável e raríssima. quer dizer, saber eu sabia, não podia era aceitar que soubesse. afinal, frio e cortante, seco e enxuto, como eu me habituara a ser, havia treinado com afinco e zelo inultrapassável, para me conseguir apagar a mim próprio da minha própria memória.

o homem que semeara corações não se lembrava já desses seus dias de outrora. era agora um homem voluntariamente sem memória, na companhia de uma velha amiga de maus costumes mas muito bons fígados - e só eu e Deus sabemos como estes últimos escasseiam.

levantei-me, de mansinho, e dei-me ao mundo, como a ele havia chegado, umas já valentes décadas atrás. nú e sem vícios. de cabeça limpa e sem o menor vestígio de um coração.

(chegados aqui, impôe-se dizer-vos que tudo isto é metáfora - melhor ou pior manejada, mas ainda metáfora. só as partes que metem coração é que não o serão inteiramente, como se passa com aquela melancia que guardamos no sítio de todos os tesouros e que todos saboreámos em criança - quem vai acreditar que esse suco vermeho e doce, essa textura precisa e preciosa, não passam de metáfora? ninguém, pelo menos ninguém no seu perfeito juizo, se esquece do maravilhoso sabor de um coração de melancia..)

o sol brilhava agora, vertical e soberano como só ele sabe, como só ele pode. acolheu-me nos seus longos e largos braços, como se acolhe um filho que regressa de um ano, de um lustre, de um século, de incertas aventuras e cruel desabrigo. sem perguntas, sem rudeza, sem brusquidão. com lágrimas e voz embargada e aquela certeza funda de que a vida é possível, outra vez.

o homem que semeava corações ficara lá atrás, no file dos casos insolúveis. daqui a uns quantos anos, não mais seria recordado senão como uma anomalia, uma maçada para gente séria e honrada, um desaforo para todos os pragmáticos do mundo, um mito para as novas gerações de senhoras da vida que hão-de suceder às contemporâneas mestres de tão sui generis arte.

um crime perfeito - foram as palavras que lhe dirigi, antes de levantar a gola da gabardine príncipe-de-gales e me fazer ao caminho. continuava a ser inverno, como sempre, nesta cidade quase fantasma. mas o sol era agora uma possibilidade. e isso - só isso - fazia toda a diferença.

epílogo:

no seu leito de moribundo, ele sabia, bem no fundo de si, que o homem que semeava corações preparava a sua última visita, a sua derradeira obra-de-arte. e ele esperava-o, agarrado a um espelho triste, com um resquício de coragem e de dignidade, como já não se usava. como nunca se chegou a usar.

o amor como o mais perfeito dos crimes - foram as suas verdadeiras últimas palavras. e, bem vistas as coisas, as únicas que alguma vez realmente proferira.

gi.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não sei se prefiro a sua prosa ou a sua poesia. A prosa para mim é mais fácil, não leio muito poesia (passo o pecado...). Mas este seu texto, mais uma vez, é muitíssimo bonito. Bem ao jeito do gi. Sombrio, melancólico, em tons de cinzento esbatidos, mas com uma réstia de sol salvífico a furar o frio. Muito bom. As usual. pcp

marialemos disse...

Atrevo-me a comentar...

Vejo pinceladas utilizando palavras que se saboreiam quando ditas
para compor um quadro
de nome
'o amor como o mais perfeito dos crimes'

Acerca de mim

Arquivo do blogue