"No melhor dos mundos possíveis, todos os acontecimentos andam encadeados; porque, afinal, se o senhor não tivesse sido expulso de um belo castelo com grandes pontapés no traseiro por amor da menina Cunégonde, se não tivesse sido encarcerado pela Inquisição, se não tivesse corrido a América a pé, se não tivesse dado uma boa estocada ao Barão, se não tivesse perdido todos os carneiros do bom país do Eldorado, não estaria agora aqui a comer pistácios e cidra cristalizada."
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"- Strangely enough, it all turns out well.
- How?
- I don't know, it's a mistery..."
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A primeira citação é de Cândido ou o Optimismo, de Voltaire [1694 - 1778]. A segunda citação, que já visita este estabelecimento ad nauseam, é do filme A Paixão de Shakespeare. [o escritor viveu entre 1554 e 1616]. Embora as citações pareçam ter semelhanças, são diferentes. E no entanto, embora pareçam ser diferentes, são muito semelhantes. Não nos autores (se bem que a frase "it's a mistery" não deva ser do dramaturgo), um inglês e um francês que nunca se cruzaram no tempo e no espaço, pois nasceram com 150 anos de diferença.
A primeira citação fala de optimismo; a segunda de confiança. Ao longo do livro, o sábio Pangloss afirma repetidamente que "este é o melhor dos mundos possíveis". O personagem do filme não sabe como tudo se resolverá, mas sabe que se resolverá. "É um mistério" constitui uma manifestação de confiança no futuro - seja no alinhamento dos astros, seja na mão divina que tudo rege.
Consegue ser-se um sem o outro? A minha intuição inicial é que, talvez não sendo irmãs, confiança e optimismo são, ou primas direitas, ou filhas de primos direitos, que é uma espécie de fim-de-curso de interesse na genealogia dos tempos modernos - não ligamos pessoas mais afastadas. Mas a minha intuição - e por isso não assente em nada vagamente demonstrável, menos ainda científico, é que a confiança é um sentimento com uma profundidade diferente, seguramente maior. Não a confiança no médico e na mão que não treme, mas a confiança que é precedida pela certeza "não sei".
Optimismo pode ser uma fezada, uma característica de gente muito alegre, contente, que entende, como Pangloss, que este é o melhor dos mundos possíveis. Mas a confiança e a fé são irmãs, talvez siamesas, seguramente de braço dado, sempre. O que define o personagem do filme não é o optimismo, mas a confiança, e esta confiança assenta no desconhecimento, não na ignorância, pois são coisas diferentes. Parafraseando um pequenino texto que me enviaram um destes dias, é como andar de avião: entregamo-nos à confiança, não ao optimismo. Desconhecemos como "aquilo" voa - se soubéssemos éramos apenas engenheiros aeronáuticos, e não mortais crentes.
Pode ser-se confiante sem optimismo? Não sei, mas se tiver de escolher um dos conceitos para me dar o braço já escolhi. Mesmo que ninguém se interesse pelo tema, o que se afigura pensamento de grande inteligência. A actualidade está repleta de temais mais interessantes - mas talvez não tão desafiantes, digo eu...
JdB
1 comentário:
Este desafio é já nosso conhecido e ao ler o seu escrito associei (não porque seja pessoa dessas, mas porque tinha o livro entre as mãos) a Vigotsky que diz que "a palavra não se refere a um objecto, mas a todo um grupo ou classes de objectos. Por conseguinte, toda a palavra é uma generalização escondida". Juntando os dois conceitos a par num contínuo de opostos, ou seja num grupo ou classe de objectos, o que esconde o optimismo e que desvenda a confiança? O que esconde a confiança o que desvenda o optimismo? Serão estes também primos direitos?
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