Uma destes dias, por causa da iminente partida de alguém que me era próximo, diziam-me: há-de ser quando Deus quiser. Fernando Pessoa, comentando a morte de Mário de Sá-Carneiro, começava um texto com as palavras: morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. É muito vulgar ouvir expressões como foi Deus que o quis salvar, ou foi Deus que assim o quis. A expressão mais corriqueira será até amanhã, se Deus quiser.
Já há muito tempo que, enquanto católico convicto, me confronto com estas expressões. Em bom rigor, o problema não está nas expressões, mas no facto das expressões moldarem (ou poderem moldar) um pensamento. Quando uma amiga me disse há-de ser quando Deus quiser, não resisti a perguntar: acha que é Deus que quer? Quando, em diversas circunstâncias, me falam de crianças que se salvam, acrescentando foi Deus que a salvou..., não resisto a perguntar: falamos do mesmo Deus que não quer salvar outras crianças que morrem?
Deus quer que isto aconteça? Se Deus quer que sim, qual é o Seu critério? Basta-nos dizer que os caminhos de Deus são imperscrutáveis? Como discernimos a justiça que é deixar que malandros vivam até aos 90 anos e que crianças morram aos 7? E como discernimos a justiça entre taxas de sobrevivência em países ricos e em países pobres? Qual é, de facto, o critério de Deus para regular o mundo?
A pessoa que me era próxima morreu há dois dias; não morreu quando Deus quis, mas quando o seu corpo foi incapaz de sobreviver a uma doença grave e ao peso de 94 anos. A criança que morre com 7 anos não morre quando Deus quer, mas quando a técnica existente é incapaz de resolver um problema grave. Acreditar na mão de Deus em tudo o que nos acontece é, confesso, um exercício de enorme dimensão: como concebemos a mão de Deus por trás de um tsunami que mata milhares de pessoas? Onde está Deus no que concerne à Venezuela ou à Coreia do Sul ao à Alemanha nazi ou à Rússia estalinista? Onde está Deus nas disparidades económicas ou sociais ou nas mulheres que morrem vítimas de violência?
A ideia de um deus por trás de tudo não me é agradável. Acredito no Deus que pôs o mundo em movimento, que não está por trás do que acontece, mas que sofre com o que acontece. Dizer que é Deus que salva é dizer, também, que é Deus que não salva. Não sei se estou preparado para acreditar num Deus que permite que um homem doente, demente, ausente, por vezes violento e que desgasta uma família (pai de uma pessoa que me é próxima) viva até ao 80 e muitos, enquanto jovens morrem, bebés morrem, gente inocente morre.
O problema das expressões não está no facto de serem verdade ou não, mas no perigo de elas conformarem o nosso pensamento. Serei um mau católico?
JdB
1 comentário:
Podemos viver (ter) uma religião. Podemos não querer (ter) religiões. Podemos negar a existência de uma divindade (ou de várias).
Se tivermos uma religião, podemos seguir as suas regras, os seus 'mandamentos'.
Contudo, na religião cristã podemos viver de uma das nossas capacidades, daquelas que Deus nos ofereceu, chamada de 'livre arbítrio'. Esta liberdade de decisão teve sempre um 'preço'. A história de Eva e Adão mostra que foram os percursores na área. É uma história contada oralmente, durante milénios, como as boas histórias devem ser transmitidas.
No cristianismo temos essa liberdade doada por Deus. Também quase todos os seus pensadores registaram que o importante não passa pelo comportamento entre nós e Deus. O importante é cuidar dos outros melhor do que a nós mesmos.
Como gosto de citações aqui vai, de um pensador:
Lewis, Clive Staples: I didn’t go to religion to make me happy. I always knew a bottle of Port would do that. If you want a religion to make you feel really comfortable, I certainly don’t recommend Christianity.
Abraço do ao
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