27 março 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 GRANDEZA HUMANA NA SÍNDROME DE DOWN 

Em vésperas do Natal de 2021, um conjunto de produtores espanhóis e um português (Luís Matta de Almeida) lançaram um filme de animação sobre uma criança com um sonho improvável, uma condição difícil (para a maioria, incapacitante), mas uma vontade férrea e uma avó inspiradora, ou melhor, uma avó que a olhava com especial afeição, fazendo-a reconhecer-se única pelos melhores motivos. Aquela neta de olhos rasgados e minúsculos, por detrás de uns óculos redondos gigantes, chamava-se Valentina e sonhava ser trapezista. Mas atrapalhava ter síndrome de Down. 

As peripécias por que passa, bem acompanhada por amigos fiéis (brinquedos incluídos) e uma família estimulante, levaram Valentina a acreditar que seria capaz de concretizar os desejos mais ousados, até para crianças sem a sua anomalia cromossomática. As inúmeras incursões musicais e coreográficas do filme acentuam o tom construtivo do argumento, percebendo-se que flui sob um horizonte de infinitas oportunidades, alimentadas e viabilizadas pela ternura que envolve a protagonista: 


A dobragem para o italiano teve um requinte especial, porque a voz da heroína foi assumida por uma estudante de design gráfico com síndrome de Down – Alice di Gennaro – a primeira pessoa da sua condição a dobrar desenhos animados. A agenda muito concorrida de Alice confirma quanto a sua disfunção não a impede de ter um dia-a-dia cativante, ao jeito da sua idade. 

Alice di Gennaro também aposta alto e sonha ser cantora, modelo, influencer.

As estatísticas sobre as crianças com trissomia 21 são demasiado expressivas para poderem ser ignoradas. No mundo contabilizam-se 5 milhões e 400 mil pessoas e em Portugal conhecem-se 15 mil casos. 

Felizmente, na multiplicação de efemérides em que a ONU é perita, fez-se coincidir o início da Primavera com o Dia Internacional da Síndrome de Down – 21 de Março – instituído, em 2012, pela Assembleia das Nações Unidas. Felizmente que o aborto (vigente em inúmeros países) não conseguiu erradicar estas crianças do planeta. Ironicamente, era um dos objectivos do programa nazi de purificação da raça e descarte dos mais vulneráveis. Felizmente que, há várias décadas, ter trissomia 21 deixou de ser um estigma para a família e as crianças passaram a aparecer em público, com naturalidade. Felizmente que, no Ocidente, estas crianças podem frequentar o ensino normal, de modo a mitigar as suas dificuldades cognitivas e conseguir saídas profissionais válidas. Felizmente, há maior predisposição para reconhecer igual dignidade em cada indivíduo, mesmo os mais diferentes, reconhecendo que também eles são habitados por esperanças, desejos, talentos e fraquezas, merecedores de todo o apoio. Toda a sociedade sai beneficiada com a maior abertura à diferença, empenhando-se em ajudar cada qual a crescer, segundo as suas capacidades e características. Especificamente, os avanços na compreensão da trissomia 21 permitiram aumentar a longevidade média para os 60 anos, quando nos anos de 1980 rondava os 25!

O testemunho feliz de um miúdo brasileiro de 5 anos, ao colo da mãe, mostram a beleza que qualquer situação humana pode comportar. O vídeo emocionou o Brasil e inúmeros famosos comentaram-no, como a cantora Ivete Sangalo, que partilhou estas linhas: «Mães que transformam! Um vídeo maravilhoso para nos dizer o quanto o amor vê além»

Quantas vezes, são estas crianças os elementos mais divertidos e sociáveis da família, com maior apetência para se relacionar com todos, imunes a entraves e preconceitos sociais?  São, pelo menos, um sinal vivo de uma réstia de humanidade que persiste nas sociedades competitivas, onde é demasiado forte a tentação de descartar os menos produtivos, como tem alertado o Papa Francisco. Em meados do século XX, o grande (e heróico) geneticista francês Jérôme Lejeune dava o seguinte conselho aos pais das Valentinas: o que poderão perder em comodidade, vão centuplicar em humanidade! Ao invés, as cedências ao utilitarismo e a supostos ganhos de eficiência criam uma espiral de desumanização, em que, tarde ou cedo, todos seremos descartáveis, i.e., alvos a abater. 

A propósito de desmontar estereótipos segregadores e redutores: que lugar nos caberia no cortejo do Crucificado? Teríamos olhos para descortinar a verdade mais profunda e menos evidente no rosto desfigurado e, por isso, difícil de encarar do último dos Condenados? Ou nas Valentinas também diferentes ou nos milhões de enjeitados do planeta, de aspeto menos atraente? Somos um mundo estranho, capaz de alunar e desbravar o cosmos, mas incapaz de acabar com a pobreza e de reintegrar os proscritos da abundância. 

Conseguiremos alcançar toda a verdade contida na interpelação híper lúcida do poeta e diplomata brasileiro Guimarães Rosa: «Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo»? Aplica-se na perfeição a muitos dos que subiram até ao Calvário sem nada entender, naquela Sexta-feira tornada santa por um dos Réus. Talvez os parias, especializados em humilhações, calhem ser dos primeiros a conseguir vislumbrar algum sentido na humilhação suprema de uma morte na cruz. Aquela teve o especial dom de ser aceite e vivida por amor. Apenas por amor, numa medida infinita, que é a medida de Deus. Esse amor, que costuma inspirar uma paz expectante perpassa na magnífica tela de Domingos Sequeira «Descida da Cruz», recentemente comprada pela Fundação privada Livraria Lello, que aceitou emprestá-la ao Estado português para ficar (temporariamente) exposta em museus nacionais: 

«Descida da Cruz» (1827) - do quarteto de telas sacras executadas por Domingos Sequeira (1768-1837), em Roma.  Súmula biográfica do pintor considerado a mais talentoso da sua geração:  de ascendência pobre, foi educado na Casa Pia, onde frequentou o curso de Desenho e Figura. Seguiu para Roma com uma bolsa de estudo concedida por D. Maria l, onde cursou pintura com Antonio Cavallucci. De volta a Lisboa, foi nomeado pintor da corte pelo futuro rei D. João VI, ficando corresponsável pela pintura do Palácio da Ajuda e professor de Desenho e Pintura da Família Real. Durante as invasões napoleónicas, tornou-se amigo de oficiais franceses, como o Conde de Forbin, o que lhe valeu a encomenda da famosa tela de Junot a proteger Lisboa (1808). Tais amizades levaram-no a ser alvo de condenações posteriores, de que se reabilitou a custo. Viveu os últimos anos em Roma, dedicando-se à pintura sacra. [dados no site do Museu Soares dos Reis, onde está a tela de homenagem a Junot]. 

Impressiona as portas da Salvação da humanidade terem sido escancaradas pelo mais humilhado dos homens. Como observava lapidarmente Paulo de Tarso sobre aquela insólita escolha, que não cabe nos critérios humanos: é «escândalo para os judeus e loucura para os gentios». Ainda hoje se mantém repugnante para muitos, misteriosa para todos, mas incontornável e salvífica para quem se deixe tocar pelo Crucificado.  

Santa Páscoa, sob o mistério do Amor infinito e inexplicável de Jesus por nós (em grande medida, experimentado pelo pequeno Marcelinho), olhados e amados para lá dos nossos erros, reincidências desengraçadas e injustas… 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) FICHA TÉCNICA

Título original: Valentina 
Título traduzido em Portugal: Valentina - despertando para os sonhos
Realização: Chelo Loureiro 
Argumento: Chelo Loureiro e Lúa Testa
Produzido por: Chelo Loureiro, Luís da Matta Almeida, Brandán de Brano, Mariano Baratech e Noa García
Estúdios: Abano Producions, El Gatoverde, Antaruxa  e Sparkle Animation
Banda Sonora: de Nani Garcia
Duração: 1h10
Ano: 2021 (Dez.)
Países de origem: Espanha e Portugal
Elenco:
Vozes de: Jeanne Metivier (Valentina), Laetitia Casta, Eric Mie
Prémios (em 2022): Melhor Filme Animado pelo CEC Award, vencedor do Prémio Goya na categoria de Animação.

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