GRANDEZA HUMANA NA SÍNDROME DE DOWN
Em vésperas do Natal de 2021, um conjunto de produtores espanhóis e um português (Luís Matta de Almeida) lançaram um filme de animação sobre uma criança com um sonho improvável, uma condição difícil (para a maioria, incapacitante), mas uma vontade férrea e uma avó inspiradora, ou melhor, uma avó que a olhava com especial afeição, fazendo-a reconhecer-se única pelos melhores motivos. Aquela neta de olhos rasgados e minúsculos, por detrás de uns óculos redondos gigantes, chamava-se Valentina e sonhava ser trapezista. Mas atrapalhava ter síndrome de Down.
As peripécias por que passa, bem acompanhada por amigos fiéis (brinquedos incluídos) e uma família estimulante, levaram Valentina a acreditar que seria capaz de concretizar os desejos mais ousados, até para crianças sem a sua anomalia cromossomática. As inúmeras incursões musicais e coreográficas do filme acentuam o tom construtivo do argumento, percebendo-se que flui sob um horizonte de infinitas oportunidades, alimentadas e viabilizadas pela ternura que envolve a protagonista:
Alice di Gennaro também aposta alto e sonha ser cantora, modelo, influencer. |
Quantas vezes, são estas crianças os elementos mais divertidos e sociáveis da família, com maior apetência para se relacionar com todos, imunes a entraves e preconceitos sociais? São, pelo menos, um sinal vivo de uma réstia de humanidade que persiste nas sociedades competitivas, onde é demasiado forte a tentação de descartar os menos produtivos, como tem alertado o Papa Francisco. Em meados do século XX, o grande (e heróico) geneticista francês Jérôme Lejeune dava o seguinte conselho aos pais das Valentinas: o que poderão perder em comodidade, vão centuplicar em humanidade! Ao invés, as cedências ao utilitarismo e a supostos ganhos de eficiência criam uma espiral de desumanização, em que, tarde ou cedo, todos seremos descartáveis, i.e., alvos a abater.
A propósito de desmontar estereótipos segregadores e redutores: que lugar nos caberia no cortejo do Crucificado? Teríamos olhos para descortinar a verdade mais profunda e menos evidente no rosto desfigurado e, por isso, difícil de encarar do último dos Condenados? Ou nas Valentinas também diferentes ou nos milhões de enjeitados do planeta, de aspeto menos atraente? Somos um mundo estranho, capaz de alunar e desbravar o cosmos, mas incapaz de acabar com a pobreza e de reintegrar os proscritos da abundância.
Conseguiremos alcançar toda a verdade contida na interpelação híper lúcida do poeta e diplomata brasileiro Guimarães Rosa: «Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo»? Aplica-se na perfeição a muitos dos que subiram até ao Calvário sem nada entender, naquela Sexta-feira tornada santa por um dos Réus. Talvez os parias, especializados em humilhações, calhem ser dos primeiros a conseguir vislumbrar algum sentido na humilhação suprema de uma morte na cruz. Aquela teve o especial dom de ser aceite e vivida por amor. Apenas por amor, numa medida infinita, que é a medida de Deus. Esse amor, que costuma inspirar uma paz expectante perpassa na magnífica tela de Domingos Sequeira «Descida da Cruz», recentemente comprada pela Fundação privada Livraria Lello, que aceitou emprestá-la ao Estado português para ficar (temporariamente) exposta em museus nacionais:
Impressiona as portas da Salvação da humanidade terem sido escancaradas pelo mais humilhado dos homens. Como observava lapidarmente Paulo de Tarso sobre aquela insólita escolha, que não cabe nos critérios humanos: é «escândalo para os judeus e loucura para os gentios». Ainda hoje se mantém repugnante para muitos, misteriosa para todos, mas incontornável e salvífica para quem se deixe tocar pelo Crucificado.
Santa Páscoa, sob o mistério do Amor infinito e inexplicável de Jesus por nós (em grande medida, experimentado pelo pequeno Marcelinho), olhados e amados para lá dos nossos erros, reincidências desengraçadas e injustas…
Sem comentários:
Enviar um comentário