EDUCAR COM E PELA ARTE
Uma reflexão magnífica, partilhada por mão amiga, interpela-nos sobre o papel que a arte deveria ter no currículo escolar, sendo quase omissa. Com a autoridade de quem está associado a colégios de renome, desde há vários séculos, saberá avaliar como poucos o real impacto destas interrogações e recomendações.
No argumentário apresentado, a arte surge como meio para se atingir um conjunto amplo de objectivos pedagógicos, em geral, de natureza mais subtil e profunda do que a transmissão pura e dura de novos conhecimentos.
Para vários dos objectivos visados poder-se-iam acrescentar outros métodos complementares como, por exemplo, uma maior interacção com a natureza. É eloquente a tradição (hoje, em desuso) em países germânicos e nórdicos de incumbir crianças de tenra idade do cultivo de plantas ou do cuidado de animais domésticos. Tratava-se de uma tarefa responsabilizante e não de um hobby ligeiro e inconsequente. Aliás, era frequente exigirem-se resultados, havendo relatos autobiográficos sobre os castigos aplicados aos pobres filhos, quando uma planta, por exemplo, não medrava capazmente. Em muitos dos reinos e Estados que vieram a integrar a Alemanha, no século XIX, assim como na Áustria, era comum haver gaiolas de madeira decorativas penduradas nas janelas dos quartos das crianças, bem visíveis da rua, para exibir os pássaros que estavam ao cuidado dos seus pequenos donos. Quem tinha jardins costumava consagrar um canteiro à responsabilidade da miudagem. Ressalvando os exageros, os perfeccionismos ou, pior ainda, os pretextos para a agressividade paterna/materna com os mais novos, percebe-se que persistem inúmeros aspectos onde a educação escolar e familiar tem enorme potencial de enriquecimento. Mas para lá das melhores receitas didácticas, o principal factor-chave de sucesso na educação continuará a residir e depender das pessoas envolvidas – educandos e educadores – como a História confirma com clareza meridiana.
«A arte é urgente
O que andamos a perder por relegarmos a arte para segundos e terceiros planos (ou para plano nenhum)? Ou, pela positiva, o que é que poderíamos ganhar se déssemos espaço à arte?
Não sou um entendido de arte, estou longe de o ser. Nem sequer me parece que tenha uma sensibilidade particular ou mais apurada do que a média das pessoas que pisam este mundo. No entanto, considero que a arte é urgente. Tão urgente como a matemática e a engenharia.
Pergunto-me muitas vezes porque razão no nosso sistema educativo não é dada a mesma importância à educação visual, à literatura, à pintura, à música, que é dada à matemática, ao português, à ciência, à fisico-química. Porque razão consideramos a arte como matéria secundária? O que é que isto diz da forma como olhamos para nós próprios, para a vida e para o mundo? Não significará que o nosso olhar se tornou demasiado técnico e que as nossas preocupações se prendem sobretudo com questões de eficácia e de produtividade? É assim queremos viver?
E ainda mais importante: o que é que andamos a perder por relegarmos a arte para segundos e terceiros planos (ou para plano nenhum)? Ou, pela positiva, o que é que poderíamos ganhar se déssemos espaço à arte?
A atenção e o tempo
A atenção é um bem preciosíssimo, porque é aquilo capaz de nos ancorar ao presente. Nestes tempos que vivemos, a nossa atenção é alvo de uma competição feroz e, geralmente, muito bem sucedida. Vivemos muitas vezes atentos ao que não interessa, que é o mesmo que dizer: vivemos desatentos.
A arte é, sobretudo, atenção. É a capacidade de olhar com intenção, é a capacidade de o olhar se demorar. É uma rebelião contra a voracidade. A arte ensina a atenção.
Mas desaprendemos a demorar-nos. Tornámos a espera numa fraqueza nossa, como se fosse necessariamente algo a combater.
Temos publicado no instagram da @provocasj uns vídeos com umas canções originais e é assustador ver as estatísticas das visualizações: a percentagem de pessoas que chega aos seis segundos de vídeo ronda os 50%. Independentemente da qualidade da canção, aguentar apenas seis segundos é nem sequer dar hipótese! Não me parece nada sustentável viver com um spam de atenção de seis segundos.
A profundidade
Sem tempo não existe profundidade. A profundidade precisa de tempo. Não são precisos mais do que uns segundos para nos darmos conta da vastidão do nosso mundo interior, do nosso avesso, mas são precisos muitos anos (provavelmente a vida toda) para entrarmos nessa vastidão.
A arte é uma porta de entrada na profundidade, é uma linguagem que procura decifrar o avesso das coisas. A arte dá-nos vocabulários e gramáticas para lermos a vastíssima experiência humana que não fica à superfície e para olharmos as coisas a partir da profundidade.
A tensão das perguntas não respondidas
Temos dificuldade em conviver com o inacabamento e com a incerteza. Preferiríamos banir da nossa vida tudo o que é fonte de dúvida. Gostaríamos de poder controlar a existência e ter as respostas certas de antemão, sem corrermos o risco de falhar. Inevitavelmente vivemos na tensão das perguntas não respondidas e estas perguntas não serão respondidas da mesma forma que se resolve uma conta matemática.
A arte não tem medo de habitar esta tensão. Não tem a pretensão de resolver a vida de uma forma simples e mágica, mas cria espaço para que a incerteza e a dúvida sejam acolhidas como companheiras de caminho. A arte sabe ver a beleza da imperfeição das coisas e das perguntas por responder.
O silêncio
A ausência de silêncio é, talvez, das maiores perdas dos tempos recentes. Existe hoje uma incapacidade muito maior para enfrentar o silêncio e o que de bom e de duro o silêncio traz. Tenho medo que vivamos enterrados em analgésicos que contornam o silêncio e a possibilidade de escutar o lado de dentro da vida.
A arte ensina o silêncio, de alguma forma, convoca-o e exige-o. É evidente que posso ir ao Louvre e tirar uma selfie com a Monalisa, mas para ver bem e para ouvir bem é preciso silêncio. De outro modo, eu estarei a tapar a vista do que vejo e a gritar-me ao ouvido do que ouço. Com o seu silêncio, a arte ajuda-me a tirar-me da frente e a escutar verdadeiramente o que me está a ser dito.
A imaginação e a criatividade
Sustento a tese de que, por vivermos inundados de imagens e de estímulos, a nossa imaginação empobreceu-se e a nossa criatividade está entorpecida. Sermos bombardeados continuamente de imagens e ruído ocupa muito espaço. Dá a sensação de que estamos a ser constantemente entretidos e que já não há espaço para o tédio e para o aborrecimento.
Acredito que uma parte da arte nasça do tédio, deste espaço que se abre, que não está ocupado, onde há lugar para o novo. Parece-me que todos precisamos deste espaço desocupado: não é um lugar fácil para os nossos olhos habituados a tanto espetáculo, mas é um lugar importante para não nos deixarmos viver meramente entretidos.
Não acho que a arte seja entretenimento, diria que é muito mais uma provocação, um confronto, um grito, e, por isso, pode ser incómoda e desconcertante. Mas é exatamente isso que nos diz que a vida é demasiado preciosa para a perdermos em passatempos.
A paixão
Lembro-me bem da paixão que sentia quando, há uns anos, conseguia comprar ou me ofereciam um álbum novo ou quando apanhava na rádio alguma música de que gostava verdadeiramente. Estou bastante certo de que nesse tempo, em que não estava tudo simplesmente disponível ou que não tinha constantemente todas as possibilidades à mão, a minha paixão pela música era incomparavelmente maior. De alguma forma, parece-me que ter tudo disponível e garantido, sempre e em todo o lado, tira valor às coisas e rouba-nos a paixão, torna-nos apáticos, no sentido etimológico da palavra: sem paixão.
Esta “tirania das possibilidades” também nos chega aos olhos e sinto que é hoje muito mais difícil maravilhar-nos com alguma coisa. Porque se estamos em overdose de informação e entretenimento, dificilmente nos conseguiremos deter para saborear o que quer que seja. Tornámo-nos extremamente impacientes.
Ao dar-nos atenção, a arte devolve-nos o olhar das crianças que se deixam assombrar por tudo, para quem tudo é novidade. Devolve-nos gosto pelas coisas simples e vulgares que, para os olhares desimpedidos, ganham a carga de milagres. A arte pode-nos sacudir e acordar-nos de uma vida desapaixonada.
Curiosamente, quase tudo aquilo que foi dito acima poderia ter sido dito em relação à fé e às dificuldades que encontramos hoje para a viver e a transmitir. Tenho a impressão de que o problema não está tanto nos conteúdos nem na forma como evangelizamos. Está no passo anterior: no terreno em que queremos semear, que tem pouco espaço para acolher. Sinto que, muitas vezes, a nossa ação deveria situar-se em criar espaço e disponibilidade nos outros (e em nós): abrir à sensibilidade e ao silêncio, cultivar a atenção e a profundidade, ajudar a ver e a escutar, desenvolver a imaginação e a criatividade para acolher o novo.
Portanto, considero que a arte é urgente, não apenas como forma de expressar a fé, mas também como antecâmara, como preparação do terreno, como lugar de fecundidade.»
Uma experiência cheia de humor e ironia, levada a cabo há década e meia, expos as incongruências de muitos especialistas em arte, suscitando perguntas sobre aquele conceito e o mundo infindo que lá cabe. Tudo começou pelo convite a 12 crianças de 2 e 3 anos para colorirem, com as mãos, uma tela em branco. Cumprida a primeira tarefa, o quadro preenchido a manchas policromáticas foi sorrateiramente pendurado numa parede da célebre feira de arte contemporânea europeia – a ARCO de Madrid. Depois, gravaram-se os comentários estarrecedores (para dizer o menos) do público erudito, entre artistas e galeristas, q.b. reveladores dos equívocos a que a pintura dita abstracta se presta:
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