Fernanda conhecera Alberto e tinha-se apaixonado por tudo: por um cabelo negro despenteado, por uns olhos castanhos em perpétuo movimento, por umas mãos marotas e, não menos importante, por uma cultura geral errática. Na verdade, Alberto, o homem formado em estudos comparatistas, não se lembrava de quem tinha sido o primeiro presidente da república portuguesa, não fazia ideia de quando tinha começado o Verão quente ou o que era a maioria silenciosa, mas sabia, de cor, estrofes inteiras de Os Lusíadas, parágrafos completos de Os Maias e poesias infindas de Fernando Pessoa. Era ainda detentor de outra informação inútil, tal como o número dos sapatos de Cesário Verde ou a alcunha por que era conhecido um tio de Cecília Meireles.
O início da convivência foi fácil - e entusiasmante. Fernanda falava em Alexandre Herculano e Alberto, de olhos em alvo, gemia: Dez anos! ... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando, no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e, depois, desfechar do céu nas profundezas do nada? Fernanda abria a boca, espantada, e inquiria: mas sabes isto tudo de cor?
Noutra altura Fernanda, atenta à saúde de Alberto diria: querido, tens os olhos inchados... E Alberto olharia para ela, sorrindo: os meus olhos são uns olhos / e é com esses olhos uns / que eu vejo no mundo escolhos / onde outros com outros olhos / não veem escolhos nenhuns... Fernanda abria a boca, espantada, e inquiria: mas sabes isto tudo de cor?
À medida que o tempo decorria Fernanda começou a cansar-se. Falava numa porta empenada e Alberto declamava Herberto Hélder, referia-se a uma camisola verde e Alberto cantava Pedro Homem de Mello. Imaginou se ele teria uma resposta caso ela mencionasse fezes moldáveis ou urinas carregadas. Alberto era um manancial de erudição - e tornou-se um maçador.
Um dia Fernanda chegou a casa e foi encontrar Alberto a fazer arrumações na cozinha: tachos, panelas, frigideiras, varinhas mágicas, cataplanas. Sentou-se e disse-lhe: entrou hoje um estagiário novo para o serviço, que diz que fez o curso contigo. David Espada diz-te alguma coisa? Alberto olhou para ela e, agitando uma batedeira, citou em voz grave: Todo começo é involuntário. / Deus é o agente, / O herói a si assiste, vário / E inconsciente. / À espada em tuas mãos achada / Teu olhar desce. / «Que farei eu com esta espada?» A batedeira agitou-se no ar e, antes que o culto errático pudesse citar o último verso Ergueste-a, e fez-se., já Fernanda se erguia, de mãos na cabeça. O que fazes tu com essa espada? Experimenta bater claras em castelo, sempre tem alguma utilidade...
JdB
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